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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo Dec. 2016

 

RESENHAS

 

Filogênese na metapsicologia freudiana

 

 

Eder Schmidt

Psicanalista e professor de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. schmidteder@gmail.com

 

 

 

Autora: Fernanda Silveira Correa
Editora: Unicamp, Campinas, 2015
Resenhado por: Eder Schmidt, Juiz de Fora

Não há narrativas imunes à interpretação, mas, quando se trata de fatos registrados em fontes, fica mais ou menos estabelecido que essas fontes constituirão um preventivo suficiente para infidelidades interpretativas, mesmo quando as fontes registram mitos. Situado fora da realidade histórica, o tempo do mito é o da perenidade, da repetição, oferecendo ao homem um sentido que não pode ser encontrado em sua própria história. Essas advertências se fazem necessárias a cada vez que se empreenda uma leitura da teoria da psicanálise, sendo fundamental que se tenha presente o papel de Freud como propositor de mitos.

A atemporalidade do texto freudiano sustenta-se apenas quando sua leitura preza justamente uma dimensão mítica, sem o que correríamos o risco de nos contentarmos com um apanhado de conjecturas datadas e anacrônicas a respeito da realidade humana. Uma boa parte das acusações de impostura já feitas à teoria da psicanálise foi gestada na inobservância desse pressuposto. Mas - é bom que se diga - ele não é, em si, isento de ciladas. Pelo contrário, uma boa parte das distorções dos fundamentos freudianos foi gestada na observância mais livre desse mesmo pressuposto.

O mito é aberto em sua interpretação, e concordar ou discordar dele é apenas uma questão de se possuir ou não outro mito que o substitua, mas é preciso que ele seja reconhecido como tal. Confortável em relação à realidade histórica, ainda que apto para dialogar com os outros campos da cultura, o discurso psicanalítico, assim como o mito, pode configurar-se como um universo autônomo e prosseguir, alheio a repetidos chavões.

Em Filogênese na metapsicologia freudiana, a princípio uma tese de Doutoramento em Filosofia da Psicanálise, destaca-se a observação das origens, espaço privilegiado do mito. A proposta parte do ensaio metapsicológico descoberto em 1983, enviado a Sandor Ferenczi como apêndice de uma carta datada de julho de 1915, que a autora apresenta como Visão geral das neuroses de transferência. Ali, Freud desenvolve hipóteses sobre a história da humanidade em referência aos tempos glaciais e à horda primordial.

O ensaio é o objeto de uma extensa discussão no primeiro capítulo da tese. Pondo em destaque conceitos básicos da psicanálise, a filogênese na forma proposta por Freud é abordada de forma ampla e transformada em âncora para os elementos da clínica, nas análises que compõem os seis demais capítulos, que são seguidos por uma Conclusão. Privilegiando sempre o papel essencial do conflito na base do pensamento de Freud, a autora delineia um trajeto desde o biológico até o humano inteiramente calcado na mitologia proposta por ele, recortando-a e recompondo-a, equilibrando o ineditismo da interpretação com a fidedignidade da leitura do texto. A psicopatologia freudiana é, então, organizada levando em conta suas diversas vertentes, filogenéticas e ontogenéticas, tópicas e libidinais, narcísicas e objetais, surgindo como uma interseção para cada um dos enfoques e permitindo uma circulação entre todos eles. A origem da linguagem e o recurso à sublimação, igualmente, são abordados com base no mesmo processo, não faltando o cotejo com outros mitos, já que, fiéis à própria psicanálise, sabemos que nenhum deles leva definitivamente a termo a expressão da condição humana ou do que quer que seja. Talvez a própria autora tenha, numa frase, condensado a essência de sua tese: "O esquema filogenético de Freud como uma solução para supor uma disposição que se constitui a partir da relação com o exterior".

É possível que a meticulosidade tenha, em alguns momentos, levado à redundância, mas isso de maneira alguma tornou a leitura difícil. Seguindo uma linha coerente, a autora apresenta a superposição de textos e conceitos, cultura e clínica, num conjunto que oferece ao estudioso recém-chegado um rico panorama do pensamento freudiano. Quanto ao leitor já habituado às discussões em torno daqueles temas, a ele é dada a oportunidade de revê-los de novos ângulos e de deparar com novas questões trazidas pela obra. Nela, encontra-se uma abordagem original, mas, ao mesmo tempo, fiel, didática e sensível da história de Freud contando a história do homem.

 

 

Recebido em: 23/12/2016
Aceito em: 27/12/2016

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