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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora. jornaldepsicanalise@SBPSP.org.br

 

 

Iniciamos as atividades editoriais do Jornal de Psicanálise neste ano de 2017 com alegria pela oportunidade de colaborar com a divulgação do pensamento psicanalítico de colegas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), bem como de outros lugares do Brasil e do mundo.

Agradecemos a Vera Regina J. R. Marcondes Fonseca, diretora do Instituto da SBPSP, pela confiança, a Bernardo Tanis, presidente da SBPSP, pela receptividade, e a Marina Massi, pelo competente trabalho realizado anteriormente neste Jornal e pela transmissão de sua experiência.

Ficam aqui, também, os agradecimentos a Celso Antonio Vieira de Camargo e a todos os colegas do atual corpo editorial, pela agradável parceria, e também aos profissionais da equipe administrativa e da produção gráfica.

O tema da escrita psicanalítica foi muito bem-vindo,1 uma vez que coincidiu com uma crescente motivação pessoal para o aprofundamento do estudo da metapsicologia da aquisição (ou não) da linguagem verbal e da função simbólica da mente, com atenção aos fundamentos imprescindíveis do modelo freudiano. Trata-se de um tipo de estudo que leva a pensar que a psicanálise pode ser considerada uma ciência ainda nova, tamanha a revolução despertada na consciência humana neste pouco mais de um século desde sua criação!

Os desenvolvimentos teóricos e técnicos trazidos por grandes autores da psicanálise pressupõem a familiaridade com os alicerces implementados por Freud, cuja complexidade exige grande disponibilidade intelectual e emocional para ser apreendida. O método psicanalítico envolve conhecimentos de natureza mais intuitiva que racional, para os quais as bases do modelo freudiano em muito contribuem, até porque se guiam por uma lógica multifatorial diferenciada do vértice positivista tradicionalmente adotado, nem por isso menos "científica". Corremos o risco de subestimar o valor desses alicerces, aderindo com certo imediatismo a escolas psicanalíticas contemporâneas, e perdendo de vista seu fio da meada.

Assim como nos últimos anos A interpretação de sonhos de Freud (1900) tornou-se para mim um referencial extremamente útil clinicamente, levando-me a ler esse livro várias vezes do começo ao fim (e não apenas o tão recomendado capítulo VII), o texto freudiano anterior, sobre as afasias (1891), também traz um aprendizado especialmente elucidativo do modelo psicanalítico de mente.

Esse estudo sobre as afasias é geralmente considerado um texto pré-psicanalítico, predominantemente neurológico, que na época de seu lançamento não teve muita repercussão, de modo que o próprio Freud o excluiu da primeira edição da coleção das suas Obras Completas, publicada em 1946.

É possível que Freud tenha submetido esse estudo a uma espécie de "recalque", já que é um trabalho representativo de sua saída do campo da neurologia para começar a conceber a metapsicologia - época caracterizada por conflitos epistemológicos e questionamentos corajosos do pensamento linear, causal e organicista de neurologistas consagrados. Freud apresenta uma abordagem multicausal, dinâmica e dialética dos sintomas das afasias, com significados afetivos associados a alterações sensoriais e de linguagem. As "representações de palavra" são consideradas a aquisição mais sofisticada dos processos secundários, elaborada como linguagem verbal com base nas "representações de objeto" e experiências sensoriais associadas aos processos primários.2

As dificuldades de simbolizar e os fenômenos psicóticos obviamente fazem parte do modelo como evoluções conceituais dos processos de simbolização obstruídos nas afasias.

Vale lembrar que o esquema abaixo, reproduzido pelo editor James Strachey no apêndice "Palavras e coisas" do texto de Freud "O inconsciente" (1915), foi originalmente publicado nesse livro sobre as afasias.

 

 

Após esse breve histórico, resgatado com o intuito de reavivar os fundamentos da função analítica associados à escrita, é um prazer compartilhar a composição do presente número, que nos traz desde um relato do "Encontro com Sapienza" - realizado com o objetivo de iniciar esta discussão temática - até os mais variados vértices (clínico, teórico, artístico) sobre a experiência de escrever e de simbolizar, adotados pelos demais autores que colaboraram com esta edição.

Levando em conta a função institucional do Jornal de Psicanálise de estabelecer um espaço interativo científico para divulgar, principalmente, trabalhos de membros filiados ao Instituto da SBPSP, contamos neste número com uma síntese do Simpósio Anual da Associação dos Membros Filiados (AMF), de 2017, elaborada por dois de seus presidentes: o anterior, Rodrigo L. Leite, e o atual, Eduardo S. T. Martins. Tendo por tema o custo da formação analítica, esse Simpósio quebrou um tabu ao pôr em pauta vários ângulos em torno do custo financeiro da formação psicanalítica, além dos custos emocional e de tempo, inerentes ao modelo Eitingon, instituído há décadas e revalidado em 2010 em nossa Sociedade, no qual a análise do psicanalista em formação é tida como essencial e regulamentada com frequência intensiva (mínimo de quatro sessões por semana), favorecendo o desenvolvimento do contato íntimo com a vida psíquica.

Como destacado pelos autores do artigo da AMF, a exclusão econômica de pretendentes à formação psicanalítica no Instituto da SBPSP priva o grupo institucional do talento de inúmeros colegas financeiramente menos favorecidos. Vera Regina J. R. Marcondes Fonseca apresenta nesse Simpósio um enfoque inclusivo, aqui reapresentado na seção Notas internacionais, com exemplos de problemas financeiros comuns a institutos de diversos países, trazendo propostas práticas voltadas à ampliação do acesso à formação na SBPSP e ao rompimento do rótulo de elitista que lhe é socialmente atribuído. Marielle K. Barbosa contribui com a objetividade da discussão ao apresentar um levantamento dos preços da análise didática pelo mundo. Ainda na seção internacional, Carmen Mion relata sua rica experiência em comissões de ensino da SBPSP, da Fepal e da IPA.

Cabe, nesse contexto, ponderar sobre a desigualdade econômica em nosso país, determinante da elitização da educação em todas as áreas de conhecimento. A seleção econômica ocorre nas mais variadas instituições educativas, até mesmo nas universidades públicas, o que indica que o rótulo de "elitista" associado à SBPSP pode camuflar sua posição dentro de uma realidade brasileira mais ampla, na qual a exclusão socioeconômica generalizada boicota à maioria da população não só o acesso à formação profissional especializada, mas também direitos humanos básicos. Continuaremos mobilizados para encontrar alternativas que viabilizem maior acesso à formação psicanalítica em nossa instituição, devido, justamente, ao compromisso social de promover a qualidade no atendimento de demandas que se configuram dentro e fora do setting psicanalítico convencional. Essa qualidade depende, como sabemos, de uma apropriação consistente do método, inviável sem a experiência de análise pessoal intensiva e prolongada.

O psicanalista tem muito a colaborar no mundo globalizado, atualmente em momento crítico com o avanço de movimentos neofascistas, como temos visto no Brasil, com sinais claros de extremismos antidemocráticos. A decadência ética nas instituições governamentais, cada vez mais explicitada, revela perversões no exercício do poder político e econômico, tal como uma lente de aumento nos núcleos psicopáticos inerentes à natureza humana voraz, do indivíduo e do grupo. O aprendizado decorrente dessa explicitação serve como alerta para o cuidado com a ética institucional, para que impulsos primitivos (princípio de prazer) não prevaleçam sobre os movimentos de evolução e de refinamento do pensar psicanalítico, lembrando que, como seres humanos, os psicanalistas inevitavelmente se manifestam grupalmente como qualquer grupo.

Na psicanálise, olhar para dimensões inconscientes torna-se uma experiência de contato profundo com a atemporalidade do avesso do nosso ser consciente e do outro, intersubjetivamente, daí a imensa responsabilidade das instituições psicanalíticas na transmissão desse tipo de conhecimento tão dependente da conexão com as experiências emocionais.

Numa conferência proferida em 2010, citada na abertura da seção temática a seguir, Antonio Sapienza se refere ao valor da prevalência de criatividade, fraternidade e cordialidade nos rituais de "passagem de bastão" para a geração seguinte, bem como da capacidade de gratidão criativa a nossos ancestrais e benfeitores, incluindo cientistas, filósofos, poetas, artistas e psicanalistas. Nesse espírito, Antonio Muniz de Rezende comunica suas ideias sobre a escrita psicanalítica na seção Diálogo com um jovem colega, seguido por uma série de autores que tratam o tema da escrita em diferentes estilos, dos mais livres, com forte influência artística, até os tipicamente teóricos, didaticamente elaborados.

Na seção Temas livres, textos de inspiração bioniana expressam com sensibilidade clínica o pensamento desenvolvido na escola inglesa de psicanálise, bastante vivo e presente na Sociedade de São Paulo, com desdobramentos interessantes na psicanálise de crianças e na clínica de 0 a 3 anos, como podemos ver nos artigos da mesma seção.

A aula inaugural do Instituto ministrada por Paulo Duarte Guimarães Filho trata do tema "atitude psicanalítica", em que o autor contrasta a conhecida "Babel psicanalítica" com as concordâncias teórico-clínicas significativas entre diferentes grupos, mais recentemente reconhecidas, por exemplo, em relação ao conceito de contratransferência e à importância técnica da mente do analista. Paulo Duarte faz ressalvas à circularidade que pode contaminar os processos de construção de conhecimento psicanalítico, destacando a necessidade de "retas de progressão" que preservem sua vitalidade.

No fechamento deste número soubemos do falecimento de Victor Guerra, psicanalista uruguaio cujo trabalho sobre "objetos tutores" em muito nos honra pela publicação na seção Tradução, generosamente revisada pelo autor em delicadas condições de saúde que o acometeram recentemente. A equipe editorial reitera, aqui, a importância da escrita.

O caráter vivo do conhecimento psicanalítico depende da intimidade com dimensões não sensoriais da experiência humana, muitas vezes desagradáveis e doloridas, o que leva a evasões ou a abordagens desconectadas dos afetos. Todo o cuidado é pouco...

Boa leitura!

 

 

1 Tema proposto por Vera Regina J. R. Marcondes Fonseca, em sintonia com o interesse da diretoria da SBPSP em abordá-lo em vários espaços institucionais.
2 Como esclarece Emiliano Brito Rossi em sua tese de doutorado (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2012), em 1900 Freud faz uma modificação terminológica em A interpretação de sonhos, adotando "representação de coisa" em substituição a "representação de objeto", anteriormente utilizada (1891), passando, então, a conceituar "representação de objeto" como a integração de "representação de coisa" e "representação de palavra". Esses detalhamentos conceituais em sua evolução histórica e epistemológica podem ser interessantes para elucidar as contribuições trazidas por Klein (teoria das relações de objetos internos) e Bion (teoria da função alfa), entre outros autores.

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