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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Uma conversa fictícia,1 mas real

 

 

Antonio Muniz de Rezende

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Em 1990, ministrou um curso sobre "Símbolo, simbolismo e simbolização". Em 1991, "Psicanálise e filosofia da linguagem". Publicou vários livros sobre a obra de Bion: Bion e o futuro da psicanálise (1992), A metapsicanálise de Bion (1993), Ser e não ser sob o vértice de O (1994), Wilfred R. Bion, uma psicanálise do pensamento (1995), A questão da verdade na investigação psicanalítica (1996) e Investigação e escrita psicanalítica (1997)

 

 

Investigação e escrita psicanalítica segundo Bion

Professor, sabemos que no mês de março o senhor completou 89 anos, mas costuma dizer que já entrou na casa dos 90. Com toda sua experiência hoje, de psicanálise e de vida, o que o senhor nos diria sobre a psicanálise sob o ponto de vista de Bion? E aproveitando: como podemos refletir sobre a escrita psicanalítica? Já que fazer psicanálise no consultório e escrever sobre o que se viveu nos parecem atividades complementares.

O encadeamento das ideias é o seguinte: tendo estudado os três modelos (científico-filosófico, estético-artístico e místico-religioso) propostos e utilizados por Bion (1992), tentamos investigar o que acontece quando, depois de usados, estes modelos são abandonados (1993). Abandonando os modelos, Bion nos põe em contato com a Realidade última, por meio da fé científica e da capacidade negativa (1994). Nesse contexto, faz-se necessária uma psicanálise do pensamento, a partir de uma experiência da frustração, com a possibilidade de expansão da mente (1994). Nessa expansão, ocorre a busca da verdade como "questão fundamental" (1996). Encarnando a investigação na escrita psicanalítica (1997), Bion situa-nos dentro do movimento psicanalítico, com a possibilidade de um diálogo com outros analistas e outros cientistas.

Como o senhor vê a relação entre realidade última e frustração?

A Realidade última nos faz experimentar uma frustração básica; se tivermos capacidade negativa, a frustração estimula o pensamento, desenvolvendo nossa capacidade para pensar; como a incógnita permanece desconhecida, o próprio pensamento faz-se busca permanente, suscitando a questão da verdade.

Essa busca, como investigação, por escrito, constitui-se num corpo estável e consistente, supondo a teoria e a experiência, podendo ser analisado de maneira especial, lido e relido, pensado e repensado (Second thoughts).

Como costumo dizer e repetir, nem tudo que se escreve sobre psicanálise, ou em nome dela, é psicanalítico. Por outro lado, vocês mesmos têm provavelmente que redigir seus textos psicanalíticos (tais como supervisões, relatórios clínicos, comunicações etc). Ora, podemos constatar a dificuldade inerente à escrita psicanalítica, a tal ponto que muitos adiam o mais que podem a redação de seus trabalhos clínicos. Bion, por seu lado, diz mais ou menos o seguinte: só escreve psicanaliticamente quem fez a experiência psicanalítica. Ou, noutros termos, uma coisa é falar "sobre" psicanálise, outra é falar psicanaliticamente por experiência.

Insisto, portanto, que a procura da verdade prolonga-se na investigação psicanalítica por escrito.

Explicito um pouco mais o sentido do título que dei à nossa conversa: "A investigação e a escrita psicanalítica segundo Bion". Aparentemente, estamos nos colocando em oposição aos conselhos dados pelo mesmo Bion. Ele nos fala do princípio "sem memória, sem desejo, sem compreensão". No entanto, essa frase deve ser bem entendida como dizendo respeito ao momento da sessão. Naquele momento, você tem que estar isento, em total disponibilidade. Depois da sessão, no entanto, "à noite, quando pensa na experiência feita", o analista recolhe o que guardou em sua mente, recordando, numa tentativa de entender melhor o que aconteceu.

Há, portanto, depois da sessão, a possibilidade de um analista continuar exercitando sua função analítica a partir do que aprendeu com a experiência. Anotem a expressão "função analítica": nós vamos tentar apreender seu significado a partir da função alfa e seus outros fatores. É mais ou menos assim: o analista que é, é analista o tempo todo, na sessão ou fora dela, quando "escuta" e quando "escreve". Tanto sua escuta como sua escrita precisam ser "psicanalíticas".

Bion diz isso de maneira extremamente simples ao falar do "analista que escreve para analistas que lêem". E eu, daqui a pouco, vou comentar que a escrita e a leitura vão juntas e devem ser inseparáveis. O grande perigo para um texto psicanalítico é não ser lido psicanaliticamente. Fazer isso seria uma traição - com prejuízo do que o texto psicanalítico tem de mais original.

Nesse sentido, eu poderia explicitar o título falando da "questão da verdade na clínica psicanalítica e por escrito". Vou dar o exemplo de um texto que estou redigindo sobre "a evolução da sexualidade de Narciso". A partir de uma situação clínica, vou falar da difícil passagem da assexualidade para a bissexualidade e da homossexualidade para a heterossexualidade. Segundo Freud, essas dificuldades lembram o percurso realizado pelo feto.

Ora, eu pude observar, na clínica de um narcisista, que ele repetia o processo intrauterino demorando-se nas etapas anteriores sem chegar à heterossexualidade.

Trata-se, portanto, de uma "investigação da verdade na clínica". Todos conhecem as expressões "pesquisa de campo" e "campo de pesquisa". Nosso campo de pesquisa é a "mente de João", isto é, de algum paciente, no momento do encontro, em situação analítica. Campo de pesquisa e pesquisa de campo, possibilitam-se mutuamente.

A esse respeito, Bion abre-nos um leque extraordinário. Com relação ao momento da escrita, quase se poderia dizer que é a hora da verdade do analista, uma hora em que ele vai dizer a si mesmo, com toda a lealdade, o que foi que ouviu, o que foi que escutou, o que disse, o que interpretou, e em que termos.

Pensem no texto de Bion intitulado "Second Thoughts". Nesse "segundo momento", ele repensa o que escrevera, vários anos antes, e reformula, para si mesmo e seus leitores, uma melhor maneira de pensar e dizer a experiência feita.

É por isso que a gente sofre e "sua" na hora de escrever!

Exatamente, é por isso que a gente "sua" na hora de escrever. Trata-se de uma experiência de verdade na vida do analista, numa situação diferente da sessão. Diferente, mas em continuidade. E é essa continuidade que desenvolve o analista, de tal forma que a investigação não deixa de ser uma oportunidade de desenvolvimento para o próprio analista.

Com a ajuda de Bion, nós podemos trabalhar muito a perspectiva do desenvolvimento mental, tanto do analista como do analisando. E só para adiantar, essa é a grande ideia de "Transformações". Você parte de uma coisa para chegar a outra. Não há transformação nem desenvolvimento quando a situação permanece mimética, especularmente repetitiva. Daí o Fábio Herrmann usar e continuar usando a expressão "ruptura de campo". Para haver transformação, é preciso haver ruptura de campo.

O momento da escrita é um momento outro, diferente, um momento que dá outras chances de o analista entrar em contato consigo mesmo e com aquilo que ficou em sua mente depois do contato com o paciente. O contato com o paciente não é importante só para ele, é importante também para o analista.

Estou com um caso interessante, de uma senhora bem madura, com vários anos de análise. Em sessão recente ela me disse: "Saí daqui e fiquei pensando o dia todo". Eu lhe respondi: "Eu também". Noutras palavras: a sessão que vivemos juntos foi tão rica que mexeu com ela, mexeu comigo, e ambos continuamos pensando.

O "trabalho de análise" atinge tanto o paciente como o analista. Creio mesmo poder dizer, com toda a lealdade, que nos tornamos mais analistas com a análise de nossos pacientes. A análise pessoal, especialmente a didática, é muito importante como preparação para o exercício de alguma coisa que, aprendida na análise pessoal, verifica-se oportunamente no contato com os pacientes.

Há portanto um "intervalo" entre duas sessões, a cujo respeito Bion fala de maneira bem simples e bonita: "À noite, quando medito, ocorrem-me tais e tais coisas". E é então que ele anota. A própria Grade, é um instrumento de notação a ser usado não durante a sessão, mas depois dela, como instrumento de análise das proposições, do discurso, tanto do analisando como do analista.

O que estou querendo dizer? Estou querendo dizer que o momento da escrita é um momento de investigação, diferente do momento da sessão. E não deve ser confundido com o momento da leitura. Por isso Bion insiste em distinguir "um analista que escreve e um analista que lê". Posso ler os textos de Bion, mas o que estamos tentando é outra coisa: na escrita psicanalítica, trata-se de eu escrever, lendo e relendo meu próprio texto, Second Thoughts, isto é, pensando e repensando.

Poderíamos dizer que a escrita supõe uma outra vivência, com uma qualidade diferente do que experimentamos durante a sessão?

Sim, é outra vivência, mas como prolongamento da primeira, vivida na sessão. Quando escolhemos um caso para supervisão, podemos pensar: por que ele foi escolhido? A escolha de um caso já é significativa tanto da importância do que o paciente trouxe como da percepção que o analista teve. Eu quase diria que na escolha existe transferência e contratransferência. Isso vai tão longe que Pierre Fédida, falando a respeito da supervisão e do escrito apresentado nessa oportunidade, diz que a "supervisão é também um momento de análise do supervisionando". O que é supervisionado é o analista e não o seu paciente. Ao ser supervisionado, aceitando as regras do jogo, o supervisionando aceita algo parecido com uma sessão de análise.

Esse é um momento privilegiado, numa situação especial, em que os analistas escrevem seus relatórios, suas comunicações, suas publicações.

Mas atenção: tem sido feita menção à "pesquisa psicanalítica na universidade e nas instituições psicanalíticas". E isso, em relação aos escritos psicanalíticos, constitui, por um lado um desafio e por outro uma oportunidade de colaboração.

Falando em termos de realidade brasileira, estamos vivendo em nossas universidades um momento de descoberta (ou redescoberta) da psicanálise como fato cultural. Em curso que dei no ano passado, mencionei a citação de Foucault ao dizer que entramos na "Era da Psicanálise". E a Universidade não pode mais ignorar esse fato. Na Unicamp, o Centro de Epistemologia, Lógica e História das Ciências oferece um curso de especialização sobre "Os fundamentos filosóficos da psicologia e da psicanálise". Em outras universidades, há cursos sobre Freud, Melanie Klein, Winnicott, Lacan...

Em outras palavras, a Universidade vem trabalhando sobre esse fato cultural que é a psicanálise. O que isso significa para nós, psicanalistas? Significa a existência de uma crítica feita pelos professores universitários, que não se conformam com o fato de os psicanalistas não se valerem dos recursos que a universidade poderia colocar a seu dispor. A crítica é feita no sentido de alertar para o fato de a ênfase dada à clínica muitas vezes fazer-se em detrimento de seu suporte científico.

Por seu lado, a Instituição Psicanalítica (a começar pela nossa) está se abrindo cada vez mais ao diálogo com a Universidade. A título de exemplo, houve já uma aula inaugural, ministrada pelo prof. Ubiratan D'Ambrósio, um matemático, que nos falou sobre "Tempo e espaço na experiência psicoemocional".

E há outros problemas especialmente comuns a ambas as instituições, como é o caso mais recente da clonagem. Quais suas consequências de um ponto de vista psicanalítico? Uma delas parece-me ser a concretização de uma identificação projetiva, total e exitosa. O outro sou eu? Eu sou o outro? E assim por diante.

Mas a Instituição Psicanalítica também dá à Universidade uma contribuição de primeira ordem a partir da clínica. A Universidade não tem como formar psicanalistas. Além do mais, a psicanálise leva a Universidade a questionar-se a respeito dos "fundamentos da filosofia e da ciência", sem esquecer a própria ciência da linguagem e da escrita.

Em relação à escrita, ou melhor, à escritura, um grande interlocutor para nós hoje chama-se Jacques Derrida. Foi um filósofo francês contemporâneo cuja obra caracteriza-se pelo aprofundamento da oportunidade que a escrita oferece. A tal ponto, no caso de Derrida, que é a própria filosofia, por assim dizer, que adota o estilo Second Thoughts.

Vejam bem: até Lacan, por exemplo, a ênfase era na linguagem, (e eu mesmo dei aqui um curso sobre Psicanálise e Filosofia da Linguagem). Freud insistia na fala e na escuta, definindo a psicanálise como talking cure. Com Derrida, a atenção voltou-se para o texto escrito. Por quê? Porque a escrita dá corpo à palavra, permitindo "analisar" sua verdade.

A escrita dá corpo à palavra, dá corpo aos pensamentos, e assim permite que se trabalhe seu sentido na própria construção inconsciente do edifício mental. (Por falar nisso, reparem no Freud escritor. O único prêmio que recebeu não foi como cientista, nem mesmo como psicanalista, foi como escritor).

Uma maneira de trabalhar esse nosso assunto poderia ser a partir das relações entre psicanálise e literatura. Posso citar o nome de Adélia Bezerra de Menezes, que escreveu um livro belíssimo sobre os textos de Chico Buarque de Holanda com o título O desenho mágico. O que ela faz é uma leitura psicanalítica de textos literários. Pensemos então numa leitura psicanalítica dos textos psicanalíticos, e retomemos a frase de Bion quando diz que é "um analista que escreve para analistas que leem".

E os analistas sabem escrever? E sabem ler? Esse é um desafio de nossa área: um desafio difícil de enfrentar. Por quê? Porque supõe toda a experiência da análise no ato mesmo de escrever - e de ler. Com isso vocês estão percebendo o motivo pelo qual perguntei: "Pesquisar o quê?" E respondi: "A mente de João". Não se trata de pesquisar abstratamente, como fica ainda mais claro quando se trata da observação. O que é que eu observo? A mente de João. O que se investiga é a mente do analisando em situação psicanalítica.

Há tempos atrás, eu estava dando uma palestra, e uma pessoa maldosamente perguntou: "E quando começa a análise?" Uma resposta que todo mundo tem pronta é que ela começa quando o analisando está presente. Na verdade, a análise começa quando o analista está presente ao lado do analisando. O mesmo analisando pode procurar um gastro, pode procurar um ginecologista, pode procurar um pneumatologista etc., mas só pode fazer análise quando procura um analista capaz de ouvi-lo com ouvidos psicanalíticos.

Por isso "a mente de João" é tão importante para nós. O que se investiga é a mente do analisando em situação analítica, na inter-relação que se estabelece entre o analisando e seu analista. E vice-versa.

Acho oportuno falar um pouco mais sobre a atualidade de nossa questão segundo Bion e Derrida.

Derrida é um filósofo com essa característica, importante sob nosso ponto de vista, de ser "um filósofo depois da psicanálise". Com essas palavras, estou fazendo alusão ao texto que escrevi para o simpósio "Ressonâncias - Bion em São Paulo". Nesse trabalho, comentei a frase de Bion afirmando que "a psicanálise é a práxis de uma determinada filosofia". E eu perguntava imediatamente: "Que filosofia?"

Uma resposta fácil seria dizer que se trata da filosofia de cada um. Cada psicanalista tem sua filosofia, e a põe em prática ao fazer psicanálise. Outra resposta bem mais difícil e mais profunda consistiria em mostrar qual a filosofia que Bion pôs em prática na práxis de sua psicanálise. É muito mais interessante, e nos levaria a perguntar, por exemplo, se Bion é kantiano, empirista, cético, e assim por diante.

No entanto, a melhor pergunta é aquela que indaga a respeito de uma filosofia "antes e depois" da psicanálise. Por exemplo, será que a psicanálise pode ser cartesiana? Será que se insere na Idade Moderna do pensamento? Ou será pós-moderna, e em que sentido? Essas são questões sérias e difíceis, tanto mais que Bion insiste em distinguir uma psicanálise clássica e uma atual. A psicanálise atual, de Bion, é diferente da psicanálise clássica, de Freud. E Bion convida-nos a praticarmos uma psicanálise atual, depois de Freud, em sintonia com o movimento psicanalítico. Ele nos provoca a atualizarmos constantemente nossa psicanálise bem como a filosofia que põe em prática.

Falando, pois, nos termos de uma relação entre a psicanálise e a filosofia, a boa pergunta é relativa a uma filosofia depois da psicanálise. Foucault, retomando a distinção entre Idade Clássica, Idade Média, Idade Moderna, acrescenta a Idade da Psicanálise. Noutras palavras: o fato da psicanálise é tão importante que inaugurou uma nova era na história da humanidade. O reconhecimento desse fato é que possibilitou que Foucault desenvolvesse uma filosofia "depois da psicanálise".

Pode-se dizer o mesmo de Derrida. Também ele põe em prática uma filosofia posterior à psicanálise e tornada possível por esta última. (Em termos clínicos, foi o que tentei mostrar num livro sobre a "Psicanálise do pensamento"). O pensamento atual é pós-psicanalítico. Não levar em conta o fato psicanalítico é continuar... na Idade Média... na Idade Moderna, sem respeitar a mudança catastrófica provocada por Freud.

E que filosofia é essa que Derrida põe em prática depois da psicanálise? Eu gostaria de sugerir-lhes a leitura de pelo menos dois textos de Derrida. Um intitula-se Le facteur de la vérité (O fator da verdade), e o outro Résistances (Resistências).

Derrida fala de "resistências", no plural. Isso porque existe, de um lado, a resistência da filosofia à psicanálise e, de outro, a resistência da psicanálise a si mesma e à filosofia que dela se deriva. Dito de outra maneira: existe um pensamento, uma forma de pensar, que continua resistindo à contribuição da psicanálise. No contexto histórico da vida de Freud, os médicos vienenses resistiram à psicanálise. Posteriormente, foram os psicólogos, principalmente os behavioristas americanos; os culturalistas, os positivistas, os materialistas... E há a nossa resistência quando nos deitamos no divã de nossos analistas.

Mas há também uma resistência da psicanálise à sua própria originalidade. Há os analistas que resistem à psicanálise! Essa é a grande denúncia de Derrida. E é ela que nos faz pensar a respeito do que fazemos e dizemos "sobre" a psicanálise. É muito sério que psicanalistas não consigam pensar psicanaliticamente!

Pelo que vemos, o senhor considera muito significativa a contribuição de Derrida. Poderia desenvolver mais essa ideia?

Como caracterizar a contribuição de Derrida? Creio que com a ajuda do que ele nos propõe como "desconstrução". Podemos falar de "construção" (como também Freud nos fala de "construções em psicanálise"). E podemos dizer que a interpretação consiste, em grande parte pelo menos, em desconstruir o que foi construído pelo analisando, ao longo de sua vida mental.

Derrida mostra como a própria palavra ana-lysis, em grego, significa "desligar" de alto a baixo, tanto em direção ao princípio (arqueológico) como ao fim (teleológico). Como pano de fundo - mais que metafórico - nós temos o mito de Babel, da Torre de Babel. O que nós fazemos ao longo da vida? Nós construímos o nosso mundo mental como uma Torre de Babel, para proteger-nos de todas as interferências, inclusive de Deus (e do dilúvio), tornando-nos senhores de nós mesmos.

Derrida (coerente com uma filosofia depois da psicanálise) mostra como esta última consiste em desconstruir nossas construções. Desconstruir, o que não é o mesmo que destruir, para descobrir que projeto arquitetônico esteve presidindo nossa construção. "Nós queríamos construir uma torre de tal maneira que nos tornássemos inexpugnáveis em relação ao próprio Deus". Eis aí o projeto. E será que é válido?

Vejam a sabedoria da Bíblia: ao nos descrever a Torre de Babel, ela nos fala também da confusão das línguas. Os homens já não se entenderam a respeito do próprio projeto que conceberam para prevalecer contra Deus. A Bíblia é um grande Livro, um grande escrito da humanidade. Nas sagradas "escrituras", nós encontramos o texto em que o pensamento da humanidade tomou corpo. Nela, estão os grandes temas tratados metaforicamente, miticamente, profeticamente, simbolicamente. Nesse sentido, a Torre de Babel é o grande mito da construção de um discurso, que precisava ser desconstruído. É o nosso mito - da construção e da desconstrução de cada um de nós. Isso assusta e nos deixa muito ameaçados. Donde a resistência. "Levei tanto tempo a construir meu mundo interno e você me vem falar de desconstruí-lo? E depois?".

Professor, nossas defesas acabam sendo fundamentais para a sobrevivência nas áreas psíquicas em que ainda não há crescimento mental. Se elas forem questionadas, o que fica em seu lugar?

Atenção! Aqui se situa uma possível brecha para o ceticismo. (Há quem acuse Bion de ser cético). No momento da desconstrução é que pode insinuar-se uma ideologia de ceticismo a sugerir que "nada vale a pena" e "tanto faz como tanto fez". (Por associação livre, veio-me um pensamento de Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena"). Este é o desafio de Bion: um desafio de expansão mental, e reconstrução "em direção a O". É preciso desconstruir para poder reconstruir. Para Bion, há quatro critérios importantes para uma boa interpretação: verdade, vida, expansão e capacidade negativa. Isso não está em Derrida.

Derrida propõe a desconstrução. E a reconstrução fica como uma espécie de desafio permanente. Por quê? Será que a nova construção, por sua vez, não vai precisar ser desconstruída em seguida, também ela? Será que a gente constrói, desconstrói, reconstrói o tempo todo? Isso aproxima o pensamento de Bion do pensamento oriental.

Vocês estão vendo como nossa proposta comporta dois planos. Aproveito para fazer alusão àqueles desenhos em dois planos, supondo um enfoque correspondente (fala-se, por isso, de "olho mágico"). Você "olha" uma coisa, mas, por trás, pode "ver" outra. Essa nossa conversa sobre a escrita também pode ser visualizada, num plano próximo, como "uma metodologia da escrita psicanalítica", segundo Bion. Mas se olhar em profundidade, você verá como comporta também uma proposta de usar todos os recursos da psicanálise por ocasião da escrita psicanalítica. E isso é muito diferente. Eu quase diria que é toda a diferença entre um aluno de versificação num curso de Literatura, e um poeta como Luis Borges. Quando este último escreve, é como se todo o pensamento da humanidade nele estivesse presente.

O que estou propondo a vocês não é um caderninho de receitas para escrever relatórios de acompanhamento dos pacientes. Estou propondo que façamos apelo a tudo que sabemos de psicanálise para nos pormos à prova por ocasião da escrita psicanalítica.

Portanto, podemos supor que na escrita também há desconstrução e reconstrução.

Certamente. E pensando em Bion, neste momento podemos dizer que ele é "um formador de analistas". Se não me engano, em "Aprendendo com a experiência" ele diz que "Num certo momento, pensei em dedicar-me principalmente aos candidatos analisandos" (entendam, como analista didata). E acrescenta: "o inconveniente é que esta poderia tornar-se uma tarefa meio esotérica". De fato, Bion interessa-se pela formação dos analistas, em qualquer época e em qualquer etapa de sua evolução.

Se observarmos a dinâmica dos Institutos de Psicanálise, poderemos constatar nos analistas um desejo muito saudável de se tornarem didatas. Resta, no entanto, saber quem é capaz disso, de verdade. Quem postula a qualificação como analista didata está solicitando um pronunciamento dos colegas a respeito de sua verdadeira identidade como analista "formador de outros analistas".

Não basta receber um diploma. Não basta ser promovido pela Comissão de Qualificação de Membros. É preciso algo mais, que Bion designa como "analista que é" ou "analista real". Nele próprio nós reconhecemos um analista desse tipo, "formador de outros analistas". Aqueles que se interessam por sua obra percebem como é dedicada aos analistas, e ele próprio apresenta-se como um "analista que escreve para analistas que leem".

Ao fazer isso, Bion conserva uma originalidade muito grande, a começar pela exigência que tem consigo mesmo. Sua obra comporta etapas introdutórias, outras de aprofundamento, outras de expansão. Inicialmente, é preciso estarmos especialmente atentos aos quatro primeiros livros publicados por ele, que são Aprendendo com a experiência, Elementos de psicanálise, Transformações e Second Thoughts (que eu traduzo como "Pensando melhor"). E depois percorrer as etapas seguintes.

A primeira corresponde à Observação. Seria apropriado falarmos em observação e levantamento do material psicanalítico em seu campo próprio e em suas cinco dimensões. A esse propósito, vou usar um modelo de ordem geométrica e falar da "pirâmide de Bion". Ele nos diz que os elementos e objetos psicanalíticos estendem-se "ao domínio dos sentidos, dos mitos, das paixões, das teorias". Todas essas dimensões reunidas sob o vértice de "O". Qual a figura geométrica de quatro lados que se reúnem num mesmo vértice? A pirâmide. Bion não emprega essa palavra, mas sugere sua forma e figura. O que é observar em psicanálise?

Por falar nisso, a Editora Vozes de Petrópolis lançou um volume importante com o título sugestivo de Psicanálise, uma revolução do olhar. Digamos que um tema importante do livro é a observação, com todos os recursos que os novos paradigmas científicos colocam à nossa disposição. E, nesse livro, escrevi como na observaçãopsicanalítica ocorre uma verdadeira revolução do olhar, da mesma forma que já tinha sido sugerido por Heidegger em seu volume sobre O que significa pensar.

Há, na observação, uma transformação mútua do observador e do observado, como lembrado por Heisenberg ao dizer que "o observador faz parte da observação". Por isso, parece-nos apropriado o termo utilizado por Bion, "transformação".

Ela ocorre graças às diversas funções como fatores da função analítica. Como tal, a observação psicanalítica é ato da função analítica. Daí podermos distinguir entre um discurso que é psicanalítico e outros que não o são.

Quais são os fatores integrantes da função analítica segundo Bion? São: a função alfa, a rêverie, a compaixão, a evidência, o acordo com "O", em at-one-ment. Com isso, percebemos melhor como existe uma "postura" característica da observação. Observamos a partir de uma postura, como posição relativamente ao vértice. Se mudar de vértice, você verá outras coisas, mas não os objetos psicanalíticos.

Por isso é que a própria observação supõe e permite uma transformação (tanto no sujeito como no objeto), por exemplo com o aparecimento dos elementos alfa, além dos elementos beta. Bion usa a palavra elemento não tanto no sentido em que é usada em química, mas em linguística e em filosofia da linguagem. Elementum, em latim e em grego, são as letras do alfabeto. Elementarium é o abecedário. São poucas letras, mas com elas escrevemos uma infinidade de palavras.

Professor, que relação podemos estabelecer entre sua fala anterior, sobre construção e reconstrução, e esses novos termos, como elementos alfa e beta?

A construção, em psicanálise, corresponde e supõe aquilo que poderíamos chamar de alfabetização do analista. Existem muitos analistas ainda não suficientemente alfabetizados: analistas que não aprenderam o alfabeto psicanalítico e falam uma linguagem não psicanalítica. Alfabetizar, nesse contexto, significa transformarmos elementos beta em alfa.

Como formador de analistas, Bion começa pela nossa alfabetização. Uma vez alfabetizados, fica fácil comunicarmo-nos e reconhecermo-nos no uso que fazemos dos elementos de psicanálise para a construção de objetos psicanalíticos.

E como a interpretação interfere nesse processo? Que papel tem a atividade que chamamos interpretação nesse processo de "alfabetização"?

A interpretação é uma tentativa de leitura da construção feita com os elementos psicanalíticos. Feita por quem? Feita tanto pelo analisando como pelo analista. E é isso que é interessante. Num dado momento, pode haver duas construções: a do analisando e a do analista. E a primeira pode não estar de acordo com a do segundo. Pode ocorrer que o analisando não aceite a interpretação que lhe é sugerida.

No entanto, o analista pode interpretar quando desconstrói a construção do analisando com base na desconstrução que fez de suas próprias construções, na sua análise no divã de seu analista.

Primeiro para si mesmo. Isso está me parecendo posição esquizoparanoide. Esses elementos de perseguição, de cobrança, de olhar com maus olhos, estão me sugerindo a PEP.

Isso acontece com base naquilo que Bion, depois de Poincaré, chama de "fato selecionado", um fato que por assim dizer aglutina os demais permitindo reconhecer neles uma estrutura. "As estruturas são configurações e conjunções constantes a partir de fatos selecionados". Na interpretação, é como se o analista começasse a entender melhor as construções feitas tanto por ele como pelo analisando. Com isso pode também levantar uma hipótese (que Bion chama de hipótese definitória): isso está me parecendo posição esquizoparanoide.

Em seguida vem a "comunicação". Nesse momento, o analista diz ao analisando o que está percebendo a respeito de suas construções. "A comunicação da interpretação ao paciente deve ser feita em linguagem adequada e suficientemente simples para ser compreendida". Isso implica, da parte do analista, condições favoráveis (à comunicação) porque ele próprio pode estar numa situação de confusão contratransferencial que não lhe facilita a comunicação.

Daí surgir a questão do reconhecimento mútuo e dos vínculos (L, H e K, de love, hate e knowledge) existentes entre analista e analisando. O reconhecimento é esta possibilidade, primeiro, de entender o que o outro está dizendo, e de se fazer entender por ele. Isso supõe, em segundo lugar, o acesso a um nível comum, com um código comum, para a comunicação.

Melanie Klein, e Bion, depois dela, falam-nos da importância dos vínculos como pressupostos à comunicação inter-humana. O que nos permite encontrarmo-nos, separarmo-nos e reencontrarmo-nos são os vínculos existentes (quando existem). Um exemplo seria o caso de Penélope tecendo seu fio (vínculo) enquanto esperava a volta de Ulisses.

Então, quais são os vínculos na linguagem de Bion? L, H e K (love, hate e knowledge) - amor, ódio e conhecimento. Nosso colega David Zimermann já sugeriu o desdobramento do vínculo K num vínculo de reconhecimento. (Estou inteiramente de acordo com essa proposta, e eu mesmo já a havia desenvolvido num curso sobre a simbolização segundo Melanie Klein).

Quando ocorre a publicação da interpretação?

Bion chama de "publicação" o momento em que o analista comunica a outros analistas a experiência vivida com seu paciente.

Ao compartilhar com vocês essas observações, posso dizer que estou vivendo esse tipo de experiência. Estou tornando pública minha experiência com Bion, e com o trabalho com meus pacientes, sob a inspiração de Bion.

Publicação é isso: tornar pública aquela experiência individual, íntima, reservada, que tive com meu paciente. Assim fazendo, não só nos expomos às críticas e à autocrítica, mas nos convidamos a uma colaboração interativa. O reconhecimento, na publicação, transforma-se em aportes complementares. Você viu isso, eu estou vendo isto. Você experimentou isso eu estou experimentando aquilo.

Nossos congressos e reuniões científicas deveriam ser assim: um encontro bonito de trocas, no prolongamento, eu diria, do movimento psicanalítico, como uma experiência de grupo. Será possível? Creio que sim. Em todo caso, eu mesmo já vivi essa experiência aqui com vocês, nalgumas situações muito enriquecedoras.

Nesse momento, podemos falar em "Teorias em confronto". Na linguagem acadêmica da Universidade, é o correspondente da revisão bibliográfica. Mais ou menos assim: o que já foi escrito sobre esse assunto? Não só o que eu conheço mas o que vocês conhecem e podem completar? É nesse contexto que a gente vai encontrar as Escolas de psicanálise, no mundo, e a situação da psicanálise no Brasil.

É interessante situarmos nossa pesquisa no contexto do próprio movimento psicanalítico. Modéstia à parte, cada um de nós pode e deve dar alguma contribuição ao movimento psicanalítico internacional. Nossa pretensão, nosso objetivo não é primeiramente esse. Em primeiro lugar, queremos estabelecer um vínculo com o paciente e viver com ele uma experiência válida. Agora, se for válida, ela terá valor para o movimento psicanalítico, e merecerá ser publicada.

Bion é um bom exemplo dessa contribuição ao movimento psicanalítico internacional. Primeiro, ele aprendeu com a experiência (Learning from Experience), depois fez uma revisão atualizada do que aprendera e publicara (Second Thoughts). A vida inteira ele "repensou", e com isso evoluiu de maneira altamente proveitosa para o movimento psicanalítico. Com base no exemplo de Bion, eu quase diria que a gente pode falar das etapas do movimento psicanalítico a partir das etapas vividas pelos grandes psicanalistas. Noutras palavras: as etapas do movimento psicanalítico correspondem às etapas vividas por Freud, Melanie Klein, Bion, Lacan etc. É com a evolução dos psicanalistas que o movimento psicanalítico evolui.

A esse propósito, Derrida chama a atenção para as "confissões" (de Santo Agostinho) e de todos aqueles que têm algum depoimento a dar. Em suas confissões, Santo Agostinho conta sua própria história. E Derrida acrescenta que todos poderiam fazer o mesmo, na forma de um depoimento-testemunho. (Bion escreveu uma autobiografia psicanalítica). "Comecei engatinhando em psicanálise, depois aprendi a dar uns primeiros passos, depois consegui ficar de pé e caminhar com confiança, depois deparei-me com outras pessoas, confrontei meus pontos de vista" etc. E Derrida observa que como tal, como testemunho, ele é sempre verdadeiro e não pode ser contestado. Ninguém pode fazer "minha confissão", no meu lugar. Só eu mesmo. Isso é muito importante porque tem a ver com a questão da verdade.

Professor, ao escrever, não entram em jogo nossas próprias características pessoais?

Sim. Podemos falar sobre o "estilo psicanalítico da escrita psicanalítica". A respeito do estilo, é conhecida a frase de Boileau dizendo que "o estilo é o homem". E ele acrescenta ce que l'on conçoit bien s'ennonce clairement, et les mots pour le dire arrivent aisément. O estilo é um pouco isto: do que você fala, como fala, com que facilidade. Uns falam mais facilmente de futebol. Outros de arte e cultura. Outros falam "naturalmente" de psicanálise. O analista que é, tem estilo psicanalítico

Falei anteriormente sobre "Psicanálise e literatura", e lembrei que Freud recebeu um prêmio como escritor. Não foi nem como psicanalista, nem como cientista, nem como médico - foi como escritor. Ele escrevia bem.

Bion, por sua vez, também deixou muitos escritos. Inclusive uma autobiografia.

A respeito de Bion, um detalhe interessante é que foi analista de Samuel Beckett, prêmio Nobel de literatura. Isso permitiu que se fizesse a pergunta: foi Beckett que influenciou Bion ou foi Bion que influenciou Beckett? A verdade é que Bion também tentou, na sua Trilogia final, escrever à maneira de Beckett. A Trilogia final é uma obra de literatura na qual Bion faz sua autoanálise, de maneira mitopoética. Uma memória do futuro: "O sonho", "O passado apresentado" e "Aurora do esquecimento", comportam uma especial dificuldade de leitura (dificuldade diferente daquela que encontramos na leitura de "Transformações"), porque na Trilogia Bion está, por assim dizer, tentando transformar elementos beta em elementos alfa, isto é, tentando simbolizar o non-sense. Ele tenta transformar elementos beta em pensamentos oníricos, esboçando uma passagem para as concepções e os conceitos. Adotando a dinâmica do sonho como dinâmica da escrita (em que o sonhador é autor e intérprete) o mesmo Bion desempenha vários papéis - Myself, o homem e a mulher, Sherlock Holmes, o advogado, o padre... Todos eles são "Bion". A tal ponto que Meltzer encontrou uma frase interessante para dizer tudo isso: "o grupo funciona como se fosse um indivíduo, o indivíduo como se fosse um grupo". Nós somos vários e o sonho mostra isso.

Penso que podemos terminar nossa conversa interessante por aqui. E peço a vocês que admirem a beleza deste projeto. Não por ser meu, mas por ser uma condensação do pensamento de Bion. Procurei fazer uma reflexão sobre a escrita e não "um receituário sobre como escrever"; uma evocação de todo o pensamento de Bion como inspirador de nosso próprio pensamento "por escrito". "Analistas que escrevem para analistas que leem" é a frase que melhor resume esta minha proposta na conversa com vocês.

Estas falas refletem coisas que comecei a pensar bem antes, e que já abordei em cursos anteriores, mas supõem tudo o que escrevi e pensei antes. Aqueles que estiveram comigo desde o começo vão ter, provavelmente, mais facilidade que os que estão lendo pela primeira vez. Por outro lado, numa reversão de perspectiva, os que começam agora talvez tenham a vantagem de poder "olhar para trás" e ver o caminho percorrido por Bion. O momento presente é que dá significação ao que veio antes. Os escritos mais recentes de Bion ajudam-nos a melhor entender sua própria evolução. Nesse sentido, Bachelard e Canguilhem diziam que a melhor maneira de se fazer história é "daqui para trás". Só assim poderemos ter a certeza de que o "encaminhamento foi de fato esse que aconteceu". Nesse sentido, já sugeri que se fizesse a leitura de Cogitations da última página à primeira: esse método permitiria "ressignificar" o passado à luz do presente, os primeiros escritos à luz dos últimos.

E poder dar sentido a tudo que conversamos aqui é muito gostoso. Há um prazer especial, esteticamente falando, um gozo do escritor, parecido com o do escultor. Michelangelo, depois de ter feito Moisés, bateu na pedra dizendo: Ma perché non parli? Estava tão bem feito que só faltava falar. Isso vale, mais ainda, em relação ao texto. Um texto bem escrito só falta falar. E ele fala!

Por isso Bion fala também de uma "linguagem de êxito" ou acabamento, num discurso performativo. E, no entanto, há esse inevitável sentimento do eterno inacabado: por mais que você tente, nunca dirá a última palavra sobre nada, nem sobre si mesmo, nem sobre a obra.

Nesse sentido, o texto psicanalítico é profundamente artístico e a análise uma obra de arte. Fico, pois, contente em empreender juntamente com vocês esta conversa sobre a escrita psicanalítica, no prolongamento da "questão da verdade", agora como questão estética.

Gostaria de terminar com um comentário: como podem ver até nos livros publicados, as perguntas e as respostas fazem parte integrante do texto escrito. Vamos continuar assim: escrevendo juntos nossa experiência psicanalítica.

Nossos agradecimentos pela sua atenção e cuidado conosco e com aqueles que lerão sua entrevista e terão a oportunidade de aprender muito com ela. Até os 100 anos, professor.

 

 

1 Edição da equipe do Jornal de Psicanálise, baseada no Capítulo 1 do livro Investigação e escrita psicanalítica (1997), de Antonio Muniz de Rezende.         [ Links ]

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