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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

A ESCRITA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE DA ESCRITA

 

De quando pensei sobre a escrita da psicanálise e me lembrei da música "Oriente"1

 

When I thought of psychoanalytic writing and I remembered the song "Oriente"

 

De cuando pensé sobre la escritura en psicoanálisis y me acordé de la música "Oriente"

 

De l'occasion où j'ai pensé à propos de l'écriture en psychanalyse et je me suis suvenu de la chanson "Oriente"

 

 

Enrique Mandelbaum

Psicanalista, psicólogo, membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Doutor em Literatura Comparada, FFLCH-USP, São Paulo. enriquemandelbaum@gmail.com

 

 


RESUMO

O autor argumenta que o trabalho clínico psicanalítico é resultante da estruturação de um objeto psicanalítico reparador. Este objeto nada mais é do que a construção de uma metapsicologia pessoal, que é desenvolvida ao longo de todo o processo interminável de formação do psicanalista. Com base nessa metapsicologia pessoal, o psicanalista adquire a possibilidade de trabalhar no interior do círculo hermenêutico psicanalítico. O autor mostra a importância de uma análise para a construção desse objeto psicanalítico e o lugar que a escrita tem na consolidação do círculo hermenêutico psicanalítico. Suas observações são acompanhadas pela música "Oriente", de Gilberto Gil.

Palavras-chave: escrita psicanalítica, metapsicologia, círculo hermenêutico, análise, autoanálise


ABSTRACT

The author argues that clinical-psychoanalytic work arises from structuring the restorative object (i.e., a psychoanalytic object that "repairs"). This object is nothing else besides the construction of a personal metapsychology, which is developed throughout the endless process of psychoanalytic training. This personal metapsychology enables the psychoanalyst to start working within the hermeneutic circle of psychoanalysis. The author shows the importance of analysis in order to construct this psychoanalytic object. He also emphasizes the role of psychoanalytic writing in strengthening the hermeneutic circle of Psychoanalysis. The author's observations come with the song "Oriente", composed by Gilberto Gil.

Keywords: psychoanalytic writing, metapsychology, hermeneutic circle, analysis, self-analysis


RESUMEN

El autor sostiene que el trabajo clínico psicoanalítico resulta de la estructuración de un objeto psicoanalítico reparador. Este objeto es la construcción de una metapsicología personal que se desarrolla a lo largo de todo el proceso interminable de formación psicoanalítica. A partir de esta metapsicología personal, el psicoanalista adquiere la posibilidad de trabajar dentro del círculo hermenéutico psicoanalítico. Sus observaciones son acompañadas por la música "Oriente" de Gilberto Gil.

Palabras clave: escritura psicoanalítica, metapsicología, círculo hermenéutico, análisis, auto-análisis


RÉSUMÉ

L'auteur soutient que le travail clinique psychanalytique provient de la structuration d'un objet psychanalytique réparateur. Cet objet n'est rien de plus que la construction d'une métapsychologie personnelle développée tout au long du processus interminable de formation du psychanalyste. A partir de cette métapsychologie personnelle, le psychanalyste a la possibilité de travailler au sein du cercle herméneutique psychanalytique. L'auteur démontre l'importance d'une analyse pour la construction de cet objet psychanalytique et la place de l'écriture dans la consolidation du cercle herméneutique psychanalytique. Ses observations s'accompagnent de la musique "Oriente", de Gilberto Gil.

Mots-clés: écriture psychanalytique, métapsychologie, cercle herméneutique, analyse, autoanalyse


 

 

Para Belinda
Quem é que ajunta, no escuro,
o que no claro vai aparecer?
(Guimarães Rosa, 1976, p. 109)

A escrita da psicanálise: eis um tema nuclear da análise de qualquer psicanalista. Todos os que o são estão em análise permanente, isto é, aprenderam a aventura, a arte e a ciência da autoanálise como modo de materializar para si e o mundo a sua consciência. E sabem também que aqui não existe linha de chegada: é próprio da consciência ser sempre fluxo ininterrupto, o que quer dizer dinâmica conflituosa, tudo menos consolidação permanente. A autoanálise é interminável, como as análises. Tola esta frase, porque claro que uma é sinônima da outra, apenas em contextos diferentes. A autoanálise só é possível de se expandir com maior firmeza psicanalítica, isto é, apoio, com base na experiência de uma análise. Na autoanálise, poderíamos considerar que os livros psicanalíticos bastam para dar suporte, nutrientes e fôlego à tarefa, que todos nós temos, de consolidar dentro de nós um objeto psicanalítico reparador. Este é o apoio, e um psicanalista antes de mais nada é alguém que faz da obra de Freud e seus seguidores sua bengala pessoal. Mas não é bem assim. A construção do apoio não se reduz aos livros de Freud, ela precisa ser acompanhada de um gesto psicanalítico promovido de fora. O apoio, para se constituir de forma mais firme, precisa realizar-se testemunhando a experiência com outro psicanalista.

(Não precisaríamos repetir: todo psicanalista sabe que o homem é um ser bípede, muito difícil de equilibrar-se, e é isto que quer dizer conflito psíquico, dinâmica conflituosa e ambivalência emocional. Este saber tem que vibrar dentro de nós de forma viva, o tempo todo. O que está em movimento sempre é dinâmica conflituosa, tendendo a equilíbrio ou desequilíbrio psíquico. Por isto, penso que Freud considera que cada homem e mulher tem de construir uma bengala, um terceiro ponto de apoio, um ideal, uma ilusão cujas vicissitudes se dão na travessia do fálico ao genital.)

É com a psicanálise que o psicanalista, este ser sempre tão instável, tenta constituir o outro de si que lhe permita dar conta de si próprio e tentar realizar-se. Este é o objeto reparador, e, no caso de um psicanalista, este objeto é cultivado em território psicanalítico, isto é, em um nicho ecológico psicanalítico. Fazem parte desse chão convívio com outros, leituras, exercícios de interpretação pessoal, observações do mundo. O objeto reparador psicanalítico, como tudo em nós - e, novamente, cada psicanalista nunca deve parar de saber -, é algo construído desde sempre.

(Num mundo como o nosso, de tanta velocidade, saber algo com mais estabilidade parece cansaço. A expressão "você já deve estar cansado de saber" hoje em dia é mais um convite para silenciar um saber ou transformá-lo do que para reavivá-lo.)

Nossa atividade reparadora tem uma origem infantil, o que quer dizer imatura, frágil, do tamanho de nosso ego inicial. Ela tem que ir se consolidando aos poucos, em diferentes momentos, em deslocamentos biográficos bem concretos e materiais da vida de cada um, vivendo as nossas vidas.

(Concretos no sentido da experiência emocional/pessoal de cada um e materiais no sentido de que cada um desses momentos se dá plantado no chão da história, da biografia pessoal, familiar, coletiva, nacional e universal.)

Algum dia, entramos em contato com Freud. Vai saber qual foi a cena originária... Para alguns, uma análise, para outros, um livro ou um texto de Freud, uma citação, uma paráfrase, uma recriação em filme, história em quadrinhos, os mil e um acasos que povoam hoje em dia a possibilidade de toparmos com Freud e a sombra desse objeto cair sobre nós. Nesse ponto de origem teve início nossa autoanálise. Alguma hora devemos ter-nos dado conta de que Freud nos explica, nos interpreta. A partir daí, a longa travessia da construção de um psicanalista em nós: sonhamos com Freud, ou interpretamos com Freud? O fato é que passamos a viver freudianamente.

Os livros poderiam bastar? Lá está todo o Freud. Suas Obras Completas devem fazer parte da estante de qualquer psicanalista, independentemente de sua filiação pessoal. Se o ritmo ou o sotaque vier a ser um niano qualquer (freudiano, kleiniano, lacaniano, bioniano etc.), isto tanto faz. Sempre vai haver um niano em nossa apreensão de Freud, porque nós nunca seremos Freud, nem Melanie Klein, nem Jacques Lacan, nem Wilfred Bion. No máximo, em meu caso, à medida que vou integrando os meus nianos, irei me tornando enriquiniano, o que já será de bom tamanho. Mas claro que essa constatação não deve nublar a obra completa freudiana, e também deixá-la num estado de veneração não passa de outra realização da neblina. Pela minha experiência, quanto menos se lê Freud, mais se o venera. Venerar não é apreciar. A obra freudiana é para ser estudada e apreciada, ela só existe neste estado, e é este estado de estudo que mantém vivo o legado de Freud, sua obra. É nosso estudo, é o estudo dos psicanalistas, que confere autoridade, decorridos mais de 100 anos de sua realização, a essa coleção de estudos autoanalíticos que é a obra de Freud. Toda obra psicanalítica de importância é fruto de uma autoanálise. A autoanálise realizada no interior do método psicanalítico é a forma originária da psicanálise, e é o desdobramento desta forma que vai produzindo a história do movimento psicanalítico. Toda realização de um autor em psicanálise é fruto dessa atitude.

Claro que não somos exclusivamente nós, os praticantes da clínica psicanalítica, os que conferem autoridade ao legado freudiano como um todo. Borges dá autoridade a Freud, Beckett dá autoridade a Freud, Guimarães Rosa dá autoridade a Freud, Gilberto Gil dá autoridade a Freud. Canta ele:

Oriente
Se oriente, rapaz
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração
Considere, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão
Num cargueiro do Lloyd lavando o porão
Pela curiosidade de ver
Onde o sol se esconde
Vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende
De determinação
Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Se oriente, rapaz
Pela rotação da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz
Pela continuidade do sonho de Adão

(Se pinço Gilberto Gil é porque, para mim, suas músicas foram parte da minha cena originária psicanalítica. Mas poderia trazer também a primeira cena do filme 2001, uma odisseia no espaço, de Kubrick, a primeira sentença do livro A metamorfose, de Kafka, a história da expulsão do Paraíso com que se abre a obra bíblica etc.)

Freud circula vivamente em nossa cultura contemporânea, e topamos com ele não apenas nos objetos da cultura mais sublimada, isto é, realizada com uma intencionalidade estética ou ideológica qualquer, numa cultura informada, mas também nas experiências culturais mais naturalizadas, assim como nas experiências mais alienadas. Freud ocupa toda a nuvem cultural ou toda a materialidade da existência nos dias de hoje. Um gingle publicitário pode conter Freud, um encontro de elevador, as experiências erógenas de nosso corpo, um fim de semana na praia, estar na cama sem poder dormir, ver TV, navegar nos smartphones, no banheiro fazendo as nossas necessidades etc. Mas, no caso do psicanalista, seja qual for a vicissitude da criação pessoal de seu objeto psicanalítico, que é sempre constituído num ato de autorreflexão e de estudo, em sua educação sentimental, o objeto freudiano deve ganhar proeminência. Já que queremos deixar surgir / construir / elaborar / desenvolver / desdobrar um psicanalista em nós, devemos nos identificar com Freud. E esta identificação só se completa se a autoanálise é acompanhada de uma análise, o que quer dizer da entrada em cena de outro psicanalista. A psicanálise é um objeto reparador, e nossa realização no interior da clínica deste campo é o fortalecimento deste objeto reparador, com força suficiente para auxiliar na aventura reparadora de um(a) terceiro(a), que é o(a) paciente, a formação de nossos colegas, alunos e de nós próprios. Tudo é uma questão de reparar ininterruptamente o objeto reparador, pois, como diz a canção de Gilberto Gil, "a aranha vive do que tece".

Reparar é sinônimo de rever-se, que é sinônimo de autorreflexão, que é sinônimo de consciência, que pode também ser sinônimo de cobra mordendo o próprio rabo. E aqui radica o limite e a obrigatoriedade da entrada em cena permanente de outro na versão de psicanalista. Claro que psicanalista pode, em determinadas circunstâncias, adquirir o formato de grupo de estudos ou de uma relação de intimidade na qual Freud e seus desdobramentos se fazem presentes. Estamos em análise sempre que matutamos em freudiano, isto é, estudamos - "determine, rapaz, onde vai ser seu curso de pós-graduação" - e nos aventuramos - "ir pro Japão num cargueiro do Lloyd lavando o porão" -, na versão de Gil. Claro que regionalizamos sempre, não temos como fugir de nossas mazelas biográficas, de nossa cor local, de nosso sotaque, do ritmo e embalo de nossa história, da "constelação do Cruzeiro do Sul". É desde dentro desse embalo que tentamos nos constituir, e aqui a chegada do terceiro psicanalítico não é reduzível à intersubjetividade de um encontro, mas está sim ancorada na presença concreta, no trabalho de outro humano. A análise, a chegada em cena de um psicanalista em nossa vida, tem a tarefa de auxiliar na constituição desse objeto reparador, e nós não devemos nos cansar de saber também que este objeto reparador só se amplia quando a cobra deixa de morder o próprio rabo, quando entra um terceiro. Muito da análise se dá nas vicissitudes do narcisismo, o território mais difícil de atravessar em qualquer autoanálise.

Reparar é se rever, tentar se ampliar, se realizar. Tem a ver com uma repetição, é re-parar, é ver de novo, fazer de novo - mas claro que não quer dizer se fixar, se repetir, se inibir. Reparar é, se usarmos outro ponto de vista, simplesmente se ver. Reparar é sinônimo de olhar, de se olhar. E um olhar psicanalítico clínico quer dizer reparar o que estamos fazendo com os nossos pacientes. Como reparar sem escrever, se quisermos fazer ciência ou fazer arte? Ou, se tudo o que queremos é nos lançar numa aventura psicanalítica, podemos só saborear essa aventura, sem o registro dela?

Por um lado, como dissemos, uma autoanálise não se fortalece, não se amplia com a força suficiente sem a experiência de uma análise pessoal. Dar maturidade às intenções reparadoras que devem estar em atividade em sua força máxima no ato psicanalítico, na clínica, não é uma tarefa fácil. Talvez alguns psicanalistas já tenham nascido psicanalistas, mas nem Freud nasceu Freud. Freud teve que se fazer Freud através da sua autoanálise, e da potência do gesto criador dele nós só temos algumas migalhas. Ninguém prescinde de uma análise para ganhar um equilíbrio psíquico mínimo que o capacite a auxiliar na construção da autoanálise de terceiros, e este equilíbrio é o resultado de um longo trabalho de análise pessoal. Longo quer dizer árduo, custoso, dedicado, estudado, que guarda a mesma complexidade de um relojoeiro ao observar e intervir nas engrenagens de um relógio. Espero que não me tomem por mecanicista, o relógio não é metáfora da mente humana, é metáfora do tempo, a complexidade é que é metáfora da mente, e a máquina é apenas uma das possíveis materializações dessa complexidade. O tempo humano é complicado, a máquina da história humana é sinônimo de complicação. E o saber de um psicanalista, o saber sobre essa complicação toda, é muito difícil de ser adquirido e transmitido, "pela simples razão de que tudo merece consideração", mas nem "tudo depende de determinação", em minha escuta, já enviesada pela psicanálise, da música de Gil.

(Toda essa discussão sobre a frequência de sessões a que um candidato deve submeter-se em sua formação é algo muito sério. Não se trata de uma quantidade, e claro que a quantidade não é sinônimo de qualidade. Mas que psicanalista não sabe que qualidade aqui é sinônimo de equilíbrio e que equilíbrio requer tempo e constância, uma longa constância? Quatro vezes por semana não quer dizer apenas quatro dias da semana de análise pessoal. É que quatro é mais do que três, e, se pensarmos nos sete dias da semana, quatro quer dizer que, de acordo com os fundamentos estabelecidos pelo modelo de Eitingon, um psicanalista precisa operar psicanaliticamente a maior parte de sua vida. Um psicanalista sonha psicanaliticamente, o que quer dizer que vai dormir como um psicanalista, e deve viver psicanaliticamente, o que quer dizer ter todo o resto, além de dormir, feito psicanaliticamente. Férias da atitude psicanalítica não existem nesta profissão. O caso Katharina serve de ilustração de como Freud aproveitava as suas férias. E lembram da Psicopatologia da vida cotidiana? Freud nos ensinou que interpretamos sonhos para lidar com a psicopatologia da vida cotidiana. Tudo isto, mais do que afirmar uma obsessão pela psicanálise, é para dizer que a gente nunca vai ter domínio pleno da psicanálise. De médico e de louco todo o mundo tem um pouco. E sempre vai haver um aspecto niano em nossa relação conosco próprios e com os outros, mais ou menos familiarizado com o objeto freudiano. E, apesar de toda a nossa batalha, Freud vai silenciar em muitas ocasiões, e, no que aqui nos cabe, infelizmente este silenciamento vai se dar também dentro de nossa atividade clínica. Por isso, em tempos como os de hoje, tentar tirar uma sessão da obrigatoriedade do trabalho psicanalítico na formação de um psicanalista, algo que se tem discutido na atualidade, me parece ser uma temeridade preguiçosa.)

O saber do psicanalista é uma aquisição proveniente de sua análise/autoanálise. Lembremos o tripé clássico que configura o território da formação psicanalítica, o que quer dizer a construção desse objeto reparador peculiar do psicanalista, o objeto psicanalítico. O tripé nos informa: estudo, supervisão e análise. É a agilização destas três dimensões que permite a manifestação do objeto psicanalítico. Mas claro que este objeto não é construído de fora para dentro. Aliás, nenhum objeto interno é construído de fora para dentro. Nós não incorporamos um objeto pronto, nós desdobramos nossos objetos em nossa experiência diária. É assim que eles amadurecem, que se integram e dinamizam. O psicanalista é alguém que ajuda um terceiro a lidar com seus objetos, a amadurecê-los, a transformá-los, se necessário, a revê-los, a repará-los. Dizer que o objeto amadurece de dentro para fora significa circunstanciar subjetivamente todas essas experiências. É nossa vida psíquica que deve ser capaz de estudar, participar de supervisões e de uma análise, a fim de constituir uma atitude pessoal metapsicológica, um ponto de vista que ponha em atividade o objeto psicanalítico.

A escrita psicanalítica não faz parte, em princípio, desse tripé. Poderíamos dizer que estudar não implica escrever. Basta a leitura, a escuta e o comentário. Estas seriam as bases de uma atitude que sustenta o estudo. Será? Sem fazer anotações, nosso estudo decai. Perguntem para qualquer professor de alfabetização de crianças se ter caderno ou registro interfere no aprendizado. Não precisamos de maiores provas. A escrita faz parte da formação dos processos simbólicos, e estamos também cansados de saber - o que quer dizer certos de saber - que todo psicanalista deve ser capaz de simbolizar. Porque esta é sua ferramenta de trabalho imprescindível: uma metapsicologia pessoal quer dizer, antes de qualquer coisa, um objeto simbolizante, simbolizador e capaz de ser simbolizado, isto é, capaz de simbolizar, de se simbolizar e se deixar simbolizar pelo outro. Atua de dentro para fora e sabe receber o que vem de fora, assimilando-o acolhedoramente, mesmo que isto signifique uma reorganização transtornadora da própria organização simbólica que está em atividade. Precisamos de muita análise para acolher o outro, não é fácil. E o acolhimento psicanalítico implica estudo, e o estudo implica a escrita, para que completemos todo o círculo hermenêutico psicanalítico. Este círculo hermenêutico ganha sua condensação em ato - porque o círculo hermenêutico psicanalítico nunca se basta na condição de subjetividade, ele só se realiza plenamente na concretude da vida -, no que nós estamos chamando de objeto psicanalítico, e que nada mais é do que a aquisição de uma metapsicologia pessoal.

Observemos mais detidamente esse círculo. Como ele lida com simbolizações, está dentro do campo das hermenêuticas. Mas como ele lida com um inconsciente vivo na clínica, e não com o inconsciente das produções culturais, deve guardar uma especificidade que o distingue das hermenêuticas culturais mais diversificadas, por exemplo, a dos filósofos, a dos sociólogos, a dos historiadores e a dos críticos culturais, para quem em princípio o objeto é um fenômeno coletivo, um texto, um autor, uma concepção de mundo ou uma ideia. Para estes, o inconsciente com que lidam - e hoje em dia todo autor nas ciências humanas tem algo de psicanalista - é o inconsciente dos fenômenos humanos e das produções culturais. Walter Benjamin é um grande psicanalista, por exemplo, e suas investigações de estudo nada mais são do que a tentativa de abrir passagens para os fenômenos da história e compreendê-los em atividade. Seus textos são a realização dessa tentativa, uma realização bem-sucedida e pessoal. E todo psicanalista ou filósofo ou crítico literário ou artista ou médico ou engenheiro, qualquer artesão, enfim, que o estudar vai aprender muito. Mas um psicanalista clínico lida com um objeto bem diferente.

(Não é o texto, nem a história, nem a vida dos homens em si que mobilizam o psicanalista, apesar de que todos estes elementos devem estar profundamente em atividade no interior de sua metapsicologia. Leiam o texto de Freud sobre a análise leiga, de 1926. Ou, como ele diz, suas "conversações com uma pessoa imparcial". Talvez seja esse o texto mais esclarecedor em relação à formação psicanalítica. A quantidade de coisas que temos de aprender e elaborar psicanaliticamente para sermos psicanalistas é de tal tamanho, que nos aproximamos de uma profissão quase impossível de ser efetivada. E isso sem idealizações, apenas seguindo ao pé da letra o que Freud diz. Para mim, nesse texto, a pessoa imparcial a quem Freud se dirige não é um outro, um terceiro. Sou eu, o interessado em querer ser psicanalista. É para mim que nesse texto Freud fala sobre o que preciso fazer para me tornar um psicanalista. É para mim que ele explica mais uma vez todo o desenvolvimento libidinal, a sexualidade infantil e suas relações com as patologias da vida psíquica. Ao mesmo tempo, Freud nesse texto nos diz como nos formar, como atender, e nos informa dessa estranha particularidade de resistir que a vida psíquica tem.)

O peculiar da atividade de um psicanalista na clínica é seu objeto, a vida singular de outro sujeito e suas demandas. Porque não é o paciente que demanda, é a vida dele - é isso que um psicanalista tem de aprender a acolher, estudar e reconhecer na multiplicidade de fontes que se aglomeram em demandas, necessidades, desejos e apetites, a ponto de criar cisões e fragmentações que resistem a uma reunião mais integrada do todo. E é o inconsciente da vida do paciente que o psicanalista deve estar apto a saber escutar. A meu ver, essa atividade não é fácil, porque esse inconsciente é feito da mesma materialidade e especificidade do inconsciente com que o psicanalista deve lidar em sua autoanálise. Nós também estamos sujeitos às mesmas dificuldades de qualquer paciente na reunião do todo objetal. É a mesma demanda. A vida que demanda do paciente é a mesma vida que demanda do psicanalista. Só que o paciente tem de lidar com sua singularidade, uma empreitada tão difícil quanto a da luta do psicanalista, munido de sua análise/autoanálise, por lidar com sua singularidade pessoal. Em Freud, sempre vemos de forma viva uma condensação que reúne as dificuldades do exercício clínico e as dificuldades de viver. Este é o verdadeiro objeto de estudo da psicanálise: as dificuldades de viver. E Freud mostra que toda a psicopatologia da vida cotidiana ocorre entre o id e a vida. Sua clínica é o lugar da tentativa de elaborar e desdobrar essa psicopatologia.

(No texto de Freud A psicopatologia da vida cotidiana, o que ele consegue evidenciar é que nossos lapsos, esquecimentos, nossos pequenos equívocos são expressões de conflitos psíquicos. E é por meio da observação desse tipo de "falhas" que Freud consegue pôr em evidência que toda a psicopatologia, em seu sentido mais macro, por assim dizer - as fobias, compulsões, depressões etc. -, são também, como um lapso ou um sonho, realizações expressivas de nossos conflitos psíquicos.)

A análise/autoanálise em ação no psicanalista é que deve propiciar a ampliação dos limites do trabalho de análise/autoanálise do paciente, para que este possa lidar melhor com as demandas de sua vida. Por isso é que nos deve interessar profundamente a completude do círculo hermenêutico psicanalítico. Pois é a ação desse objeto, os limites e possibilidades de sua dinamização, que confere eficácia ao gesto clínico psicanalítico. Voltemos então ao círculo hermenêutico psicanalítico, modo de efetivar-se o objeto psicanalítico.

Claro que uma metapsicologia é uma usina de simbolização. Serve para isso, dinamiza as simbolizações. E é uma usina porque não teme ser implantada num para além da consciência, o que quer dizer que necessariamente deve conter uma dimensão questionadora de si própria. A metapsicologia deve abarcar toda a vida psíquica, todo o corpo, toda a situação do aqui e agora histórico. Ela tem que ter esse fôlego: o olhar clínico deve abarcar desde o id até o real, incluindo nesse amplo guarda-chuva psíquico toda a subjetividade, sem nunca esquecer que se trata na verdade da história da carne e do osso humano. Porque é isso que nós todos somos, no final das contas: carne e osso. A vida psíquica é carne e osso, este é o achado freudiano. Durma-se com isso, sonhe-se isso, interprete-se isso. E Freud, antes de qualquer coisa, não nos ensina a sonhar, ensina-nos a interpretar sonhos. Freud não é um sonhador, é um intérprete. E o círculo hermenêutico psicanalítico nunca se completa quando chegamos ao sonho. Ele só se realiza plenamente na interpretação do sonho. E a escrita nada mais é do que uma forma de interpretar sonhos. Com Borges aprendemos a poder dizer que Freud nos sonha, o que faria de Freud um sonhador. Mas em todo caso vale a pena não esquecer: ele nos interpreta. É mais Freud, e não deixa de ser Borges.

Dizíamos no início que a autoanálise tem um quê de aventura, de arte e de ciência. Toda a metapsicologia, por ter que dinamizar a vida por inteiro para existir - o objeto psicanalítico é dinamizado por todo o guarda-chuva da vida -, termina por realizar um modo de viver a vida. Não é com isso que toda análise lida? Isso quer dizer que todo psicanalista condensa, em seu modo de viver a vida, um quê de aventureiro, um quê de artista e um quê de cientista. A escrita é um sinal de um modo de simbolizar que amplia o aspecto verdadeiro de todo esse modo de viver. Existem psicanalistas que são mais aventureiros, o que quer dizer que suas metapsicologias os lançam na aventura do viver. É um modo de entender a vida dos homens: "a possibilidade de ir pro Japão". Outros cultivam a metapsicologia no campo da cultura e da arte, a beleza da geometria natural que a aranha tece é esse território que eles enfatizam. Outros ainda se mantêm no campo da ciência: orientar-se "pela rotação da Terra em torno do Sol". A opção por um ou outro campo é impulsionada por uma concepção de verdade muito pessoal, uma verdade interna que se pode traduzir em vida aventureira, vida cultural ou vida científica. Claro que o psicanalista é um pesquisador, um explorador, ele tem de reparar em tudo, até mesmo em sua própria verdade. E a verdade que o informa nessa atividade é a metapsicologia pessoal que conseguiu cultivar.

Escrever é uma maneira de simbolizar a metapsicologia pessoal de cada um. Outorga verdade ao que se faz: à aventura, à arte e à ciência psicanalítica. Observemos que, na prática clínica, esses três campos têm de estar presentes, de maneira condensada e com abertura para a verdade do paciente. E essa reunião, que é proveniente da ação de uma verdade pessoal, deve realizar um ato clínico que, incluindo a verdade do paciente, realize-se enquanto verdade da dupla analítica. Mas isso só ocorre se o círculo hermenêutico se completa em sua plenitude. Aí o psicanalista transforma-se no autor de uma obra psicanalítica, de uma clínica e/ou de um texto psicanalítico.

Ser um autor na clínica psicanalítica poderia prescindir da feitura do texto. Mas seu círculo hermenêutico - o do autor no trabalho exclusivamente clínico - não pode prescindir da completude desse círculo: deve ser capaz de transmitir a sua clínica a seus pacientes e, entre eles, a novos psicanalistas. O autor na clínica é o analista didata. Para mim, didata é todo aquele que completa o círculo hermenêutico clínico psicanalítico. Seu gesto clínico tem de tocar e promover reflexão, como um texto. O analista didata tem de ser reconhecido. Alguém já disse que tudo o que nós fazemos nesta vida é escrever um livro. Isto é viver a vida.

Agora, independentemente dessa ideia e para que o círculo hermenêutico psicanalítico que cada psicanalista conseguiu criar possa inserir-se com mais força na história da psicanálise - que nada mais é do que as vicissitudes desses círculos hermenêuticos ao longo dos processos históricos mais amplos -, é imprescindível a escrita. Quanto mais a escrita se materializa, mais o círculo se fortalece e a vida da psicanálise se amplia.

Às vezes, psicanálise parece muito papo. Nessas horas, ela se encolhe. Às vezes também a psicanálise parece puro sonho. Nessas horas, também parece faltar um psicanalista que interprete os sonhos. Às vezes, a psicanálise parece muita ciência. Aqui ela é sábia. Daqui surge o melhor da aventura, o melhor da arte e o melhor da ciência. Por isso é obrigatório nos perguntarmos que raio de ciência é a psicanálise. E esta pergunta a gente só pode responder escrevendo. Porque vivendo apenas a gente reafirma a vida. E, na psicanálise, a gente pretende viver a vida reafirmando um pedaço da verdade da psicanálise. Este é o lugar da escrita. Já pensaram a psicanálise sem os escritos de Freud e de todos os seus autores seguidores? Já pensaram a psicanálise sem uma biblioteca psicanalítica? Só sonhando.

Algumas poucas palavras sobre a ciência psicanalítica: ciência é uma categoria próxima da verdade, é uma evidência. As evidências que a psicanálise observa e põe em movimento, as verdades que ela mobiliza, as transformações que ela realiza por meio do que repara, não são possíveis de ser medidas e quantificadas como as verdades das ciências naturais. A partir do século XVIII, uma longa discussão tem início sobre se as evidências colhidas pelas ciências humanas poderiam adquirir o mesmo estatuto de verdade das ciências naturais. O objeto psicanalítico é bípede como o homem, um condensado de ciência humana e ciência natural. Freud é um cientista antes de ser aventureiro e artista, porque é um escritor que faz questão de plantar sua verdade no campo da ciência. Que tipo de verdade? Por exemplo, a verdade de que todo homem e mulher nasce bebê e tem de tornar-se adulto, e que essa travessia nunca é feita de maneira autônoma, ocorrendo sempre em torno de uma guerra interna e externa. A verdade de que todo bebê precisa de um adulto para transformar-se em outro adulto. A verdade de que nada nasce pronto de fora para dentro na vida psíquica, e, por isto, o sonho de Adão, a que Gilberto Gil se refere, já habita de algum modo no interior da vida de todo bebê, "sorridente, rapaz, pela continuidade do sonho de Adão" - a verdade de que a filogenia de todos os homens pulsa em cada ontogenia singular. Escrever é reunir e devolver a experiência clínica ao sonho de Adão, a toda a produção dos homens história adentro, através do viés psicanalítico, um pequeno viés, se pensarmos em todos os processos civilizatórios das jornadas humanas. Mas um viés muito singular, porque aceita antes de qualquer coisa a universalidade da forma humana. Somos todos carne e osso, somos todos conflito psíquico e ambivalência emocional - esta é a verdade psicanalítica, uma verdade que nos obriga, em nossa fragilidade, a nos abrir para que nos entendamos e entendamos o outro. E por isso se alinha na longa odisseia do imperativo "Conhece-te a ti mesmo". Por isso, para Freud, a continuidade do sonho de Adão existe no exílio de Édipo.

(Só para lembrar: Freud torna-se Freud quando, pensando sobre sua Tebas pessoal, assume sua Atenas pessoal como lugar para ser. O psicanalista tem que ter aprendido a sair de Tebas e ganhar um lugar em Atenas - Colona é um espaço santo dedicado às Eríneas, zeladoras furiosas das ordens familiares, no interior da cosmopolita Atenas. É no exílio que Édipo se torna verdadeiro.)

Dentro da linha argumentativa que desenvolvi neste texto, a canção "Oriente", de Gilberto Gil, mostra-se como um objeto psicanalítico reparador freudiano bem elaborado, uma perfeita tradução. Por quê? Porque consegue integrar de modo harmonioso e equilibrado o imperativo "se oriente, rapaz" com um modo de bem estar pessoal, "sorridente, rapaz" - uma integração e equilíbrio que se realiza no jogo de aliterações entre "se oriente" e "sorridente". Mas não só: há um terceiro elemento que me parece profundamente freudiano, que é o de plantar esse equilíbrio e integração no campo da história dos homens e, mais especificamente, a serviço de zelar pela civilização. Na versão de Gil, esse equilíbrio que concilia orientação e sorriso tem a tarefa de zelar "pela continuidade do sonho de Adão". Das leituras dos textos de Freud, podemos depreender que somente conseguimos estar mais integrados e bem equilibrados no aqui e agora - lugar prioritário para o desenvolvimento de uma sessão de análise - se estamos com os pés bem plantados na história universal dos homens e suas múltiplas apresentações. Nenhum psicanalista deve abstrair demasiadamente ou parar de reparar a realidade que o cerca, o quinhão da história que lhe cabe viver: sua biografia pessoal, um quinhão na mesma terra histórica em que acontecem e vivem em situação traumática, mais ou menos elaborada, toda a natureza e todos os homens, mulheres e crianças, na Eternidade do Tempo.

"Sorridente, rapaz..."

 

Referências2

Gil, G. (1972). Oriente. Em LP: Expresso 2222. Rio de Janeiro: Phonogram Brasil.         [ Links ]

Rosa, J. G. (1976). A estória do homem do pinguelo. In J. G. Rosa, Estas estórias (2ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/5/2017
Aceito em: 12/5/2017

 

 

1 Gilberto Gil, 1972.
2 Para este texto, além da música de Gilberto Gil, "Oriente", "eu e minhas circunstâncias" como diria Ortega y Gasset (1914): (Meditaciones del Quijote. Em: José Ortega y Gasset, Obras completas, Tomo I, Revista de Occidente, 5ª. ed., Madrid, 1962).

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