SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.50 número92De quando pensei sobre a escrita da psicanálise e me lembrei da música "Oriente"Narciso sob a tinta índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

A ESCRITA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE DA ESCRITA

 

Sessão-soneto

 

Sonnet-session

 

Sesión-soneto

 

Séance-sonnet

 

 

Ricardo Biz

Psiquiatra. Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Autor dos livros O amor in verso (Jundiaí, Edição do autor) e Sinto mas ad versos (Jundiaí, Edição do autor), Jundiaí. contato@psiquiatriajundiai.com.br

 

 


RESUMO

O autor tece comparações entre uma sessão analítica e a estrutura de um soneto. O primeiro verso do soneto bem como a primeira fala significativa do paciente oferecem um mote daquilo que será desmembrado no corpo do poema e na sessão, respectivamente. No desenvolvimento do soneto e da sessão muitas elaborações, denominações, adjetivações e conceitualizações ocorrem e preparam o terreno para alguma conclusão, que pode ser mais definida, inconclusiva, inesperada, paradoxal ou até desconstrutiva. Aborda ainda questões e funcionamentos que se dão de modo semelhante nos poetas e pacientes, associando poesia, sonhos e a psicanálise.

Palavras-chave: sessão psicanalítica, soneto, psicanálise, poesia, sonho


ABSTRACT

The author compares a psychoanalytic session to the structure of a sonnet. Both the first verse of the sonnet and the first significant speech of the patient introduce the theme and give an idea of what is going to be dissected in the poem and in the session, respectively. As the sonnet and the session develop, many elaborations, names, adjectives, and conceptualizations occur; they prepare the ground to a conclusion, which may be more defined, inconclusive, unexpected, paradoxical, and even deconstructive. In this paper, the author addresses issues and ways of functioning that look quite common for both poets and patients, by combining poetry, dreams, and psychoanalysis.

Keywords: psychoanalytic session, sonnet, psychoanalysis, poetry, dream


RESUMEN

El autor teje comparaciones entre una sesión de análisis y la estructura de un soneto. El primer verso del soneto y la primera comunicación significativa del paciente ofrecen un mote a lo que será desmembrado en el cuerpo del poema y en la sesión, respectivamente. En el desarrollo del soneto y en la sesión se producen muchas elaboraciones, nombres, adjetivos y conceptualizaciones que preparan el terreno para una conclusión que puede ser más definida, inconclusa, inesperada, paradojal o hasta deconstructiva. También aborda cuestiones y funcionamientos que son semejantes tanto para los poetas como para a los pacientes, combinando poesía, sueños y psicoanálisis.

Palabras clave: sesión psicoanalítica, soneto, psicoanálisis, poesía, sueño


RÉSUMÉ

L'auteur établit des comparaisons entre une séance analytique et la structure d'un sonnet. Le premier vers du sonnet, comme la première prise de parole significative du patient, offrent le thème de ce qui se détachera respectivement sur le corps du poème et dans la séance. Dans le déroulement du sonnet et de la séance, plusieurs élaborations, nominations, adjectivations et conceptualisations ont lieu et préparent le terrain pour une certaine conclusion qui peut être plus définie, non conclusive, inattendue, paradoxale, voire une déconstruction. Il aborde encore des questions et des fonctionnements semblables aux poètes et aux patients, en associant la poésie, les rêves et la psychanalyse.

Mots-clés: séance psychanalytique, sonnet, psychanalyse, poésie, rêve


 

 

O gênero de poesia conhecido como soneto ganhou força com o início do Renascimento, que valorizava a cultura clássica greco-romana de marca humanística, abordando questões sentimentais mais amplas, ambíguas, complexas, paradoxais e angustiantes. Foi com Petrarca (1304-1374) que o soneto ganhou sua forma final, por assim dizer, que, ainda hoje, quase 700 anos depois, permanece intacta. O soneto é composto de 14 versos, sendo, classicamente, composto por 2 quartetos (estrofes com 4 versos) e 2 tercetos em países como Portugal, Itália, Espanha e França. O soneto inglês tem mais comumente 3 quartetos e um dístico.

Antes do Renascimento, na Idade Média, predominava a poesia trovadoresca e os romances de cavalaria, cuja temática principal era o amor cortês e a idealização da figura feminina, que cancioneiros popularmente difundiam. Geralmente, utilizavam para tal as redondilhas menores (versos com 5 sílabas poéticas) e maiores (7 sílabas poéticas). Já os sonetos normalmente apresentam 10 sílabas poéticas, conferindo maior "seriedade", elegância e amplitude ao verso.

Muitas vezes o soneto não tem título, utilizando-se como título seu primeiro verso, que, habitualmente, funciona como uma apresentação do que será desenvolvido no corpo do poema. Por vezes essa "apresentação" ultrapassa o primeiro verso, chega ao segundo; mais raramente ocupa toda a primeira estrofe.

Após a elaboração das ideias no corpo do soneto, chegando ao final, imbrica-se alguma conclusão, que, nos sonetos mais bem elaborados, ocorre de forma surpreendente e inesperada no último verso, este chamado "chave de ouro". Essa conclusão é claro que não precisa ser definitiva, muitas vezes é a constatação de uma ambiguidade do mundo emocional, que pode ser conflitante, paradoxal ou até fantasiosa.

Por que uma estrutura poética duraria quase mil anos? O que torna tal estrutura clássica? Que correspondência existe entre o mundo emocional e essa forma, como se nela encontrasse uma roupa que "cai bem", que encaixa? Acredito que o soneto oferece-lhe uma contenção adequada para se lidar com as emoções.

Vejamos um soneto de Manuel Maria du Bocage:

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava;
Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana –

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua orgia dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube. (2000, p. 35)

Este é um exemplo de como o poeta, no primeiro verso, apresentou o tema que iria desenvolver e concluiu usando um jogo contraditório de ideias, com uma excelente chave de ouro. O poeta soube explorar cada canto do espaço de que ele dispunha dentro do soneto; desenvolveu uma ideia, uma angústia, um sentimento respeitando este formato estilístico.

O paciente chega para uma sessão analítica também com uma ideia, uma angústia ou um sentimento, mais ou menos definidos, dentro de si. Entra na sala e diz alguma frase que serve de mote para o que vai desenvolver durante a sessão e, muitas vezes, guarda para o término seu gran finale. O paciente ainda precisa respeitar o enquadramento combinado com o analista - tempo, honorários, frequência etc.

A primeira fala significativa do paciente (Hegenberg, 2005) não necessariamente é o seu primeiro gesto, mas uma comunicação autêntica, sintética e ilustrativa do estado emocional que ferve dentro dele naquele momento. Essa primeira fala, que não precisa ser propriamente um discurso falado, tem grande importância, pois traz a essência do sentimento que está ainda em estado bruto no paciente. Para o paciente conseguir alcançar essa essência normalmente se utiliza mais de sua intuição e menos de seu racionalismo, que opera por meio de conceitos, e o processo de conceituação muitas vezes desconsidera partes importantes da coisa como um todo.

No decorrer da sessão, o desenvolvimento das questões elencadas pelo paciente e trazidas para análise ocorre mediante o raciocínio conceitual, que ganha força no corpo da sessão: os sentimentos começam a receber nomes, adjetivos, estabelecem-se comparações e os localizamos numa espacialidade, temporalidade e causalidade; não é raro que nesse conceitualismo percam-se as essências iniciais. Há o risco de as essências que fervilham dentro do paciente esvaírem-se no éter, num conceitualismo excessivo (ou obsessivo), transformando-se a sessão analítica num bate-papo estéril, um palavrório que em nada ajuda o paciente, e, às vezes, até atrapalha, porque a linguagem exerce assim mais uma função de defesa do que de comunicação; esse racionalismo mais afasta que aproxima o paciente de suas emoções. Funciona como um tampão que isola o sentimento de quem o sente, como se o paciente se refugiasse no imbróglio de seu próprio discurso. Nesse sentido, pode ser deturpada a experiência emocional vivenciada no aqui e agora da sessão, que seria o principal mobilizador de transformações internas consistentes que possam ocorrer no processo analítico.

Ao analista cabe também sua parte nesse trabalho, conseguindo desvencilhar-se das teias argumentativas e conceitualistas do paciente, privilegiando o desenvolvimento das ideias originalmente trazidas pelo paciente e respeitando a neutralidade e a apresentação feita por este, sem atropelá-lo com interpretações precoces. É claro que o encontro analítico é inusitado, e podem surgir novas questões vindas do sentimento inicial trazido pelo paciente. Mas, se muita coisa nova surge, se os "golpes" (coup)1 do analista são muito violentos, o paciente pode sentir que o que originalmente ele trouxe foi desprezado.

Isso também ocorre com o poeta que busca dar forma ao seu sentimento bruto. Quando vai escrever, ele não tem uma ideia absolutamente clara do que há dentro de si. Inicialmente, há o predomínio, no poeta (assim como no paciente), do pensamento intuitivo, geralmente explicitado no primeiro verso. No corpo do soneto, explodem comparações, jogos simbólicos com as palavras, elaborações, exemplos e questionamentos. Se o poeta se perder na teia das palavras, com a influência que os termos suscitam e se distanciar da essência daquilo que o motivou a escrever o soneto, ele corre o risco de escrever versos vazios de emoção, estéreis, que não tocam o coração. Apenas palavrório.

Consequentemente, será um poeta ruim. Além dessa preocupação, o poeta tem que restringir sua ideia aos moldes do soneto, o setting deste gênero poético.

Poeta e paciente trabalham então dentro de limites, criando, compondo, descartando o que não serve. Tentam imprimir um ritmo e uma musicalidade peculiar de cada soneto ou cada sessão. A sessão-soneto é uma breve história, que se conecta com toda a obra de um poeta ou toda a vida do paciente.

Outro ponto de intersecção que considero importante é o fim tanto do soneto quanto da sessão. Para o soneto, o afunilamento conclusivo nos versos finais tece um desfecho impactante. Vejamos o soneto de Luís de Camões:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou. (2000, p. 28)

Camões lamenta a perda de sua amada. O eixo central temático do soneto é a perda, que ocorreu precoce e inesperadamente; permeiam-no ainda elementos relacionados a mistério, acaso, dor, distância, memória e os olhos (o que seria uma metonímia do eu lírico do poema). O primeiro verso apresenta o que será debatido no soneto. No corpo do poema, Camões brinca com os termos, amplia, cria uma natureza ambígua e contrastante entre vida e morte, mas não abandona a essência nem a ideia central proposta - a dor da perda. No último verso condensa tais essências num criativo arranjo, com uma proposta para fugir da dor sofrida. Como num sonho, em que as essências misturam-se num enredo com o objetivo da realização dos desejos subjacentes, a chave de ouro (o último verso) desse soneto apresenta-se fantástica, sobrenatural e ilógica, superando qualquer limite da vida terrena, até mesmo a morte, podendo até parecer absurdo dentro de uma visão racionalista, mas aqui, no fulcro da intuição humana, é que se imbricam sonho, poesia e psicanálise.

Não raro, também observamos no final da sessão algo mais impactante, conclusivo e, às vezes, desconcertante.

Recentemente, atendi uma moça que apresentava um discurso mobilizador, mas que guardou para o minuto final da sessão seu maior lamento: "fui abusada quando tinha 7 anos".

Um outro paciente, que já realizara um trabalho comigo anteriormente, procurou-me para retomar a análise; estava necessitado e ele pensava em vir duas vezes na semana, ficamos de definir na próxima sessão; ele saiu de minha sala, "errou" o caminho de saída do consultório, que possui uma porta de entrada e outra de saída, e foi forçar a maçaneta da porta de entrada do consultório. De fato, ele queria duas sessões na semana. Quero com esse exemplo salientar que o "verso" final de uma sessão não é necessariamente verbal, podendo estender-se a qualquer gesto ou expressão comunicativa com algum teor conclusivo. Não precisa também ser exatamente o último gesto da sessão, mas chegando no final muitas associações e elaborações já ocorreram, e o trabalho de síntese visa fornecer algum sentido àquilo que fora remexido durante a sessão.

Há também um tipo de final que eventualmente acontece e que diz muito sobre o paciente. Após uma sessão extenuante, com muito trabalho, associações, comparações e metáforas, no minuto final o paciente solta: "Doutor, o senhor poderia dizer o que achou de tudo o que eu disse". Esse final funciona como um balde de água fria nas pretensões do terapeuta. Pode sugerir que o paciente ou não aproveitou nada do que foi discutido na sessão ou, pior, mostra uma tendência de destruir todo o progresso que fora conquistado a duras penas no decorrer da sessão (Sullivan, 1954/1983). Mostra, assim, uma inversão de papéis, transferindo ao terapeuta a função, no final da sessão, de encontrar um sentido para toda a sessão. Nesse caso, o final da sessão, na comparação com um verso final de um soneto, quando se espera alguma conclusão, seria como se reaparecesse o primeiro verso introdutório do poema novamente. Ou também poderíamos pensar que o paciente, sem conseguir concluir algo, atribui ao analista a incumbência de sintetizar algo, de fazer o arremate da sessão-soneto.

A capacidade de concluir algo por parte do paciente (ou do analista, quando o paciente não tem capacidade de fazê-lo), respeitando o tempo da sessão, pode colaborar para um estado de espírito relativamente calmo e estável fora do período de análise. Ao contrário, quando nunca consegue concluir minimamente, ainda que sejam conclusões parciais, paradoxais ou ambíguas, pode haver a tendência de o paciente sentir-se mais frustrado e atormentado fora da análise.

Na conclusão, assim como na introdução, predomina o raciocínio intuitivo, que executa sobretudo operações de síntese; novamente, o paciente talvez vislumbre inconscientemente o todo de seus sentimentos e comece a preparar-se para ir embora. A angústia de separação, com maior ou menor intensidade, atua sobre o paciente, que começa a juntar o que é seu, aquilo que foi mexido durante a sessão, guarda suas emoções todas na mala e sai. Agora vai ter de se ver sozinho.

É evidente que o paciente guarda na mala não exatamente o que retirou, mas aquilo em que foi influenciado no decorrer da sessão, ou até o que ganhou com o trabalho analítico. Pode mesmo sair mais enriquecido, fortalecido ou simplesmente diferente, mas não dá para negar que existe uma separação, sentida, de acordo com a sensibilidade do paciente, como mais ou menos dolorosa, brusca ou, ainda, desestruturante.

É claro que nem toda sessão ou paciente obedece claramente a essa analogia que ofereço, mas, dentro de um viés literário, talvez seja a que mais se aproxima.

Outras modalidades poéticas não possuem estrutura que se possa comparar a uma sessão, mas somente a uma parte dela ou a alguma associação isolada que possa advir e até ajudar na ampliação da rede simbólica. Na poesia moderna, por exemplo, que busca mais a desconstrução (do que a construção de um soneto, em estrutura clássica) e seus impactos mobilizados no leitor. Essa poesia, no geral, trabalha mais com substantivação e a pluralidade de sentidos que possam emergir desses substantivos ou das mutilações destes. Assim, a poesia moderna aproxima-se da fragmentação do esquizofrênico, de sua concretude, que ganha sentidos inusitados e particulares. Isso pode favorecer a criatividade em termos de possibilidades de poesias. Mas, em se falando de ser humano e sua busca de se conhecer numa análise, a parte neurótica da personalidade tem a nobre função de amarrar as partes do indivíduo, reunindo um centro de experiências (self) mais ou menos coeso, que servirá como referência ou eixo, em torno do qual os sonhos se formam. A poesia moderna acompanhou as tendências culturais de nossos tempos, tais como maior liberação de conteúdos do inconsciente na realidade externa e menos recalcamento, observados na clínica moderna nos crescentes casos de usuários de drogas, transtornos consumistas, adições por tecnologia ou sexuais, enfim, todos os transtornos que compõem a chamada "clínica do vazio".

Atualmente, encontramos menos admiradores de soneto, que ficou um pouco démodé e preterido em favor da poesia moderna. O rigor formal e estilístico molda o soneto num corpo coeso, e tem correspondência, dentro da analogia que estou propondo, com a neurose.

Vamos ver mais um exemplo ilustrativo, o "Poeminho do contra" de Mário Quintana, com claras influências contemporâneas:

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho! (2006, p. 107)

Comparativamente, o poema foge do formalismo de um soneto e transmite, tanto em sua forma como em seu conteúdo, uma ideia de liberdade; ideia essa consubstanciada no substantivo "passarinho", num final surpreendente, que amplia a significação do termo e suscita desdobramentos abstratos a partir do concreto.

As correntes literárias contemporâneas influenciaram, no estilo e na temática, o soneto moderno, porém, tais influências se dão dentro dos parâmetros do soneto. Ou seja, o soneto continua sendo soneto. É assim a sessão moderna de psicanálise, carregada também de influências da cultura atual, tais como a correria, o imediatismo, a tecnologia (o Skype, o WhatsApp), os novos quadros clínicos emergentes, medicações etc. Mas a sessão continua sendo sessão.

 

Aplicação da hipótese sessão-soneto

No exercício de testar a hipótese de a sessão funcionar como um soneto (apresentando, portanto, uma introdução ou mote, concretizado na primeira fala significativa do paciente, seguido de um corpo da sessão, no qual o paciente, junto com o analista, desenvolveria a tese e uma conclusão, ainda que parcial e ambígua), escolhi analisar, como exemplo, duas sessões, publicadas em revistas conhecidas, de autores consagrados.

Algumas sessões podem se encaixar muito bem nesse modelo, outras, talvez, menos nitidamente. O que ofereço então é uma maneira de se ler uma sessão, como um soneto, assim como muitas outras formas possíveis de leitura podem enriquecer-se, concomitante e mutuamente. Escolhi os últimos dois números do Livro Anual de Psicanálise, pois os exemplos podem estar frescos na memória dos leitores.

 

Primeiro exemplo

A sessão apresentada por Adriana Yankelevich (2015) sobre o caso Raquel, uma paciente alta que acabara de sair de uma relação homossexual, e estava grávida por fertilização in vitro. Já com a filha de 3 meses procura novamente análise. Trata-se do segundo ciclo de análise com a referida analista.

Sessão (sexto ano do segundo ciclo de análise)

P - Estou sobrecarregada. Tenho essa nova secretária, que é totalmente inútil, não se pode pedir nada a ela; não posso contar com ela.

A - Você conta e conta, e suas sessões são apenas três, e não é o bastante.

Rápida, num tom frio e impaciente, como se dissesse - sim, tenho menos sessões, e, para piorar as coisas, você as usa com sua conversa sem sentido, fala:

P - Eu sabia que você iria dizer isso. O problema é que essa garota, eu lhe pedi, por favor, para procurar alguns documentos para mim; ela os encontrou, mas levou nisso um tempo muito, muito longo. Ela é ineficiente. O problema é que não posso mandá-la embora porque o filho está doente; ele tem uma espécie de câncer, linfoma, me parece, e me sinto mal por ela.

A - Você está irritada porque eu a interrompi - interrompi e falei na mudança na frequência das sessões. Você acha que é problema meu. Que eu me importo com isso, e não com você. Você está sentida, pensa que estou ferida com sua decisão de vir menos, mas no fundo você sente que não é problema seu, sente que eu devo cuidar dessa criança doente que representa uma parte sua, fora do trabalho.

P - Sinto-me aliviada por vir uma sessão a menos. Era esforço demais. Gostei da sua aquiescência mesmo sem concordar. Eu estava simplesmente exausta. Era demais: é demais. Houve uma reunião dos sócios; o que me levou a pensar que não sei manejar as coisas, é sempre o mesmo. Sou bruta, não consigo manter minha boca fechada.

A - Fechar a boca?

P - P estava lá; ele tomou uma de minhas contas. Ele a roubou diretamente. Num dia em que eu estava na escola de E (sua filha) para uma cerimônia, esse cara foi e trabalhou com meu cliente. Precisei falar disso na reunião. Eu já havia contado para R e para G (dois colegas) o que acontecera. R disse: "Espere até eu abordar o assunto na reunião, não se preocupe, eu falo com ele". Mas, claro, não consegui esperar e entreguei tudo assim que P abriu a boca. Eu disse coisas terríveis, odiosas, das quais não me lembro exatamente. Saí péssima da reunião, pensando que preciso aprender a manter a boca fechada.

A - Talvez esta seja outra razão pela qual você decidiu vir menos.

Nesse momento paciente e analista parecem não se entender, envolvem-se em alguma disputa, e, mais à frente, a paciente traz a imagem da filha cavalgando num pônei, e por fim voltam a falar da sessão que Raquel deixou para um suposto paciente, já que agora estava vindo três vezes na semana e não mais quatro. Mas ao final da sessão (Yankelevich, 2015, p. 16):

P - Ele (o paciente que ficou com a sessão que Raquel "largou") que fique com ela, pouco me importa. Podemos parar por aqui. Quero voltar para E.

A - Você está me dizendo: "Não quero falar sobre você e mim, quero falar sobre mim e E, será que você não me entende?"

P - Exatamente.

A - Você não pode sentir suas sessões como algo bom que está sendo perdido, algo que você obtém de mim e do qual, pelas boas razões que me deu, você decidiu se privar. Algumas vezes você sente essa autoprivação como algo que eu não quero lhe dar, mas que vou dar a outro paciente. Se você não sente que recebe de mim algo de bom, como poderá sentir que está dando algo de bom para sua filha?

P - Esta semana meu estômago voltou a doer.

A - Penso que você tem fome do contato aqui, que seu estômago sentiu falta de mim por você.

A primeira fala significativa dessa paciente foi "estou sobrecarregada", e logo foi despejando (ou projetando) a responsabilidade na empregada inútil, ou até na analista inútil que só lhe dá mais demanda, ou a cobra. Projeta ainda em colegas de trabalho, ofende-os. Mais à frente na sessão, trazendo a imagem da filha, parece que consegue sair um pouco das tendências projetivas e enreda-se em teias identificatórias homossexuais, cujos atores caem, mais à frente na sessão, novamente na dupla analítica, agora revelando mais claramente a falta que a quarta sessão trouxe à paciente e sua tendência a desvalorizar essa sessão, para talvez conseguir se desprender delas (da sessão e da analista).

Mas a analista parece-me implacável, não deixando a paciente "escapar", com interpretações transferenciais incisivas e oportunas. Parece que a dupla estava trabalhando duro no decorrer da sessão, mesmo não concordando entre si, mas construindo algumas imagens que podem ser decisivas para uma síntese (ainda que parcial) mais ao fim da sessão. A penúltima fala da analista foi firme, e a paciente talvez a tenha sentido como um soco no estômago. Então "esta semana meu estômago voltou a doer" parece-me o gran finale dessa sessão. O que ocorreu entre a primeira fala significativa da paciente até essa fala final? Houve alguma evolução no conteúdo das ideias? Tenho a impressão de que sim, pois de uma atitude claramente projetiva, ou numa posição mais próxima da esquizoparanoide, converteu-se numa atitude que sente a dor em si própria, egossintônica, ou numa posição mais próxima da depressiva.

Sentir a dor, o sintoma e, por extensão, a si mesma é um trabalho da análise. Com a atitude projetiva estava apenas evacuando, não absorvendo. Mas parece que a conduta aguerrida da analista fez a paciente engolir algo. E doeu.

Boca e ânus são extremos que aparecem nessa sessão, não diretamente, mas por meio de suas funções: falar, evacuar e a dor, em alguma parte intermediária do trajeto (estômago).

Mais à frente na análise, a paciente retomará as questões relacionadas à dor no estômago, o que sugere que foi, de fato, importante essa constatação de que seu estômago dói no fim da sessão. Não desenvolverei, porém, essa linha de raciocínio, já que me propus a analisar uma sessão, que compõe essa micro-história que se conecta a toda a vida da paciente.

 

Segundo exemplo

É o caso, apresentado por Georg Bruns (2016), sobre Ellen de 34 anos, médica, com incapacidade de ter orgasmos.

Sessão 151

P - Eu estava adiantada três minutos hoje, então, esperei no hall, porque não ousei tocar a campainha mais cedo. Tentei não fazer barulho, mas aí precisei tossir e tomei uma pastilha para tosse. Senti-me uma intrusa.

A - Realmente você ficou muito quieta, e eu não ouvi nada. Mas por que você não ousou tocar a campainha?

P - Eu não queria perturbá-lo. Prefiro estar atrasada a estar adiantada. Porque senão sinto-me uma intrusa. [Pausa curta]

A - Os intrusos geralmente não são bem-vindos. Parece que você tem a ideia de não ser bem-vinda ao me visitar.

P - Sim, você não teria mais liberdade de se movimentar então. Penso que até me sentar na sala de espera o atrapalha. Mas ficar realmente quieta faz eu me sentir mais intrusa ainda.

A dupla analítica desenvolve a ideia de intrusão, o analista diz que poderia pensar que ela estaria ouvindo atrás da porta. Ela concorda com a imagem trazida pelo analista. A paciente diz que às vezes também não se sente à vontade com seu marido. Lembra uma amiga que teve bebê e que estava ambivalente com seu filho; associa que não era bem-vinda enquanto menina, já que sua mãe esperava um menino. Sente-se incompreendida e pressionada a ter filho pelo marido.

Já no final da sessão:

A - Observando o fato de você chegar cedo demais e esperar, isso me dá a impressão de que se trata da questão do quanto tudo precisa ser espontâneo ou controlado e planejado entre nós.

P - E tenho a impressão de que não suporto, de maneira alguma, ser espontânea com você. Uma situação não controlada é terrível para mim. Acontece comigo, às vezes.

A primeira fala significativa, que serve de mote para a sessão, é "Sinto-me uma intrusa". A sessão desenrola-se num clima em que os dois parecem se entender, ou pelo menos querer se entender. Surgem algumas imagens, e alguns personagens (sobretudo o marido, a amiga puérpera e a mãe), fazendo a paciente situar-se, até mesmo, no papel de mãe, ao sentir-se pressionada para ter filho. A sessão sugere, indiretamente, ainda, algum receio de ser mãe. Seria talvez o medo de não receber bem (não ser espontânea com) o bebê, como o fizeram sua amiga e sua mãe. Desta forma, repetir-se-iam as tendências transgeracionais vindas de sua mãe. Parece que algumas coisas se repetem dentro da sessão, algum clima repetitivo, mesmo algumas expressões, tais como "intrusa" e seu antônimo "espontâneo". A fala final da sessão (chave de ouro), que carrega algum poder de síntese, me parece ser "não suporto, de forma alguma, ser espontânea com você". Ora, o que ocorreu então, desde a fala inicial até a final nessa sessão? Algumas coisas surgiram, outras se repetiram, e como saldo não vemos algo muito substancial. Ao continuarmos o relato do analista sobre o caso, tentando contextualizar a sessão dentro da análise como um todo, percebemos que o tratamento estava num momento delicado, num nó, ou num enactment, como sugerira um colega comentador do caso. De novo, não é o objetivo percorrer o caso como um todo, apenas sugerir uma possível leitura para a sessão, mas, mesmo analisando somente essa sessão, tal como um fragmento de uma análise, ou um poema na obra inteira de um poeta, no qual podemos notar seu estilo, suas nuances e suas tendências. Por exemplo, é notável uma tal viscosidade emocional em aspectos que permeiam a relação interpessoal, no nível da sexualidade, começando pela descrição do analista apresentador, citando a anorgasmia, a impossibilidade de sentir prazer na relação (no amplo sentido da palavra), de poder ser fecundada, gerar filho, criar. Parece que não cria, apenas repete, tal como a estereotipia, que enlaça tão firmemente um aspecto significante e não o desata.

 

Conclusões

Numa análise bem-sucedida, o analista favorece o paciente tornar-se poeta de si. Cantar suas dores e conquistas, em pequenas histórias-sonhos, que vão se acumulando na obra de uma vida. Tais histórias, mais ou menos autolimitadas, como tijolos de uma construção, dialogam, ressurgem ou são esquecidas. Assim são os sonetos, assim são as sessões. O paciente-poeta cria, inventa, brinca, briga e se revolta, mas tudo dentro de um setting: deve então ser capaz de suportar algumas limitações ou restrições.

A poesia e a psicanálise (submeter-se à psicanálise) apresentam em comum o fato de trabalharem essencialmente com a abstração e o pensamento intuitivo. Em especial, o soneto tem em comum uma forma fixa de apresentação, assim como a psicanálise precisa do setting.

De todas as formas de arte, a poesia é aquela que mais depende da imaginação, a menos concreta e mais livre, captando o espírito das coisas e dos sentimentos, antes de estes virarem conceitos. Espontaneamente associando entre si as essências (eidos, de Platão), seja pelas suas inesperadas semelhanças, seja pela complementaridade, ou seja, para esconder uma dor subjacente; obedece, pois, aos mesmos mecanismos de formação do sonho, tão estudados e desmembrados pela psicanálise. Mas o psicanalista, mesmo desvendando e identificando tais mecanismos, no momento de devolver algo ao paciente e formular uma interpretação, pode recorrer aos recursos poéticos, pois estes têm a chave de acesso ao coração. Geralmente as interpretações discursivas ou prosaicas funcionam menos. Por exemplo, certa vez, eu disse a um paciente muito reservado e tímido: "a intimidade intimida". Ele riu e compreendeu. Acredito que, se eu tivesse lhe explicado que "a intimidade é algo um tanto desconhecido e por isso causa medo...", minha intervenção não teria o mesmo impacto e soaria como distanciada e morna.

Sem os inúmeros recursos poéticos - tais como metáforas, jogos de palavras, rimas, musicalidade, surpresa, neologismos, substantivações, pausa, ritmo, uso de palavras que o paciente usou, mas em outro contexto, trocadilhos etc. -, que dão forma ao míssil da interpretação, esta se torna vazia e capenga, sem penetrância e estéril.

 

Referências

André, J. (2008). O acontecimento e a temporalidade: o après-coup no tratamento. Ide, 31(47).         [ Links ]

Bocage, M. M. du (2000). Os melhores poemas de Bocage. São Paulo: Global.         [ Links ]

Bruns, G. (2016). Discurso analítico, intercurso analítico: nascimento e morte em uma psicanálise. O caso Ellen. Livro Anual de Psicanálise (Vol. 30 pp. 13-22). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Camões, L. V. de (2000). Sonetos de amor - poesia lírica. São Paulo: Princípio.         [ Links ]

Hegenberg, M. (2005). Psicoterapia breve. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Quintana, M. M. (2006). Caderno H (2a ed.). São Paulo: Globo, p. 107. Recuperado em 21 de abril de 2016 de http//www.poesiaspoemaseversos.com.br/poeminho-do-contra-mario-quintana/.         [ Links ]

Sullivan, H. S. (1983). A entrevista psiquiátrica. Rio de Janeiro: Interciência. (Trabalho original publicado em 1954)        [ Links ]

Yankelevich, A. (2015). Aprendendo a cavalgar: o vaivém do tratamento e do setting analíticos o caso de Raquel. Livro Anual de Psicanálise (Vol. 29 pp. 13-24). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/3/2017
Aceito em: 13/3/2017

 

 

1 Para mais detalhes de coup e après-coup, ver André (2008, pp. 139-167).

Creative Commons License