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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

A ESCRITA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE DA ESCRITA

 

A dimensão narrativa na análise de adolescentes1 - O apanhador no campo de centeio

 

The narrative dimension in adolescent psychoanalysis - The catcher in the rye

 

La dimensión narrativa en el análisis de adolescentes - El cazador oculto

 

La dimension narrative dans l'analyse d'adolescents - L'attrape-cœurs

 

 

Maria Helena de Souza Fontes

Membro efetivo, analista didata e analista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São Paulo. mhfontes@terra.com.br

 

 


RESUMO

A autora aborda a conexão entre o romance O apanhador no campo de centeio (Salinger, 1951) e o trabalho clínico com analisandos adolescentes, destacando a importância da dimensão narrativa, tanto no material clínico de um adolescente analisado pela autora quanto no romance narrado em primeira pessoa pelo personagem Holden Caufield, um adolescente de 16 anos. A narrativa é vista pela autora como um elemento organizador das experiências emocionais complexas e turbulentas, vividas na adolescência. Tais experiências nessa etapa do desenvolvimento emocional costumam expressar-se predominantemente por atuações, acting-outs e ausência da palavra. A autora alerta os analistas de adolescentes a diferenciarem acting-outs de ações comunicativas (Barugel e Mantykow de Sola, 1993). Essas autoras consideram as atuações dos adolescentes uma comunicação privilegiada do seu mundo interno, ou seja, a expressão de suas pulsões, anseios, conflitos e sofrimento mental, atribuindo-lhes o mesmo valor do brincar na análise de crianças pequenas. A autora propõe que experiência analítica bem-sucedida substitui a atuação como forma de comunicação pela narração instaurando o nascimento do sujeito histórico.

Palavras-chave: adolescência, acting-out, ação comunicativa, narração, desenvolvimento emocional, subjetividade


ABSTRACT

The author discusses the connection between the novel The catcher in the rye (Salinger, 1951) and the clinical work with an adolescent patient. In this paper, she highlights the importance of the narrative dimension to both the clinical material, which is regarding one of her adolescent analysands, and the novel, which is narrated in the first person by the sixteen-year-old character, Holden Caufield. The author considers the narrative to be an organizing element of the complex and turbulent emotional experiences in adolescence. The experiences in this specific moment of emotional development are mostly characterized by acting - "acting-outs" - and lack of verbal communication (or "words"). The author advises adolescent analysts about the importance of distinguishing between acting-outs and communicative actions (Barugel and Mantykow de Sola, 1993). Nora Barugel and Berta M. de Sola believe adolescent performances are privileged communication of their inner world - that is, an expression of their drives, desires, conflicts, and mental suffering. According to those authors, the role of adolescent performances in adolescent analysis is as valuable as the role of playing in the analysis of young children. The conclusion of this paper emphasizes that a successful psychoanalytic experience replaces acting as a way of communication by narration. This replacement enables the historical subject to arise.

Keywords: adolescence, acting-out, communicative action, narration, emotional development, subjectivity


RESUMEN

La autora aborda la conexión entre la novela El cazador oculto (Salinger, 1951) y el trabajo clínico con pacientes adolescentes, destacando la importancia de la dimensión narrativa, tanto en el material clínico de un adolescente analizado por la autora como en la novela narrada en primera persona por el personaje Holden Caufield, un adolescente de 16 años. La narrativa es vista por la autora como un elemento organizador de las experiencias emocionales complejas y turbulentas vividas en la adolescencia. Dichas experiencias, en esta etapa del desarrollo emocional, suelen expresarse predominantemente a través de actuaciones (acting-outs) y de ausencia de palabras. La autora alerta a los analistas de adolescentes sobre la importancia de diferenciar las actuaciones (acting-out) de las acciones comunicativas (Barugel y Mantykow de Sola, 1993). Estas autoras consideran las actuaciones de los adolescentes como una comunicación privilegiada acerca de su mundo interno, es decir, la expresión de sus pulsiones, sus anhelos, sus conflictos y su sufrimiento mental, y les atribuyen el mismo valor que tiene el juego en el análisis de niños pequeños. La autora propone que una experiencia analítica exitosa reemplaza la actuación como forma de comunicación por la narración, instaurando el nacimiento del sujeto histórico.

Palabras clave: adolescencia, acting-out, acción comunicativa, narración, desarrollo emocional, subjetividad


RÉSUMÉ

L'auteur aborde la connexion entre le roman L'attrape-cœurs (Salinger, 1951) et le travail clinique avec des analysants adolescents, en mettant en relief l'importance de la dimension narrative, aussi bien sur le matériel clinique d'un adolescent analysé par l'auteur, que sur celui du roman dont la narration est faite à la première personne du singulier par le personnage Holden Caufield, un adolescent de seize ans. L'auteur voit le récit comme un élément organisateur des expériences complexes et turbulentes subies pendant l'adolescence. Telles expériences, dans cette étape du développement émotionnel, s'expriment d'ordinaire davantage par des mises en scène, acting-outs, et l'absence de la parole. L'auteur avertit les analystes d'adolescents qu'il faut observer la différence entre les acting-outs et les actions communicatives (Barugel y Mantykow de Sola, 1993). Ces auteurs considèrent les mises en scène des adolescents comme une communication privilégiée de leur monde intérieur, c'est-à-dire, l'expression de leurs pulsions, de leurs anxiétés, de leurs conflits et de leur souffrance mentale, en leur attribuant la même valeur du jeu dans l'analyse de petits enfants. L'auteur propose que l'expérience analytique bien réussie remplace la mise en scène comme moyen de communication par le récit, en instaurant la naissance du sujet historique.

Mots-clés: adolescence, acting-out, action communicative, récit, développement émotionnel, subjectivité


 

 

"O abismo atrai"
O abismo: caio
Em
mim

Orides Fontela

 

I

O apanhador no campo de centeio, publicado em 1951, celebrizou Salinger, seu autor, mantendo-se ao longo do tempo como um clássico da literatura.

Além de outros elementos, que fogem ao escopo deste texto, poderíamos atribuir sua longevidade à excepcional capacidade do autor de transportar o leitor adulto para estados mentais muitas vezes soterrados pela amnésia, tal o grau de turbulência que eles evocam. Por sua vez, o leitor adolescente identifica-se instantaneamente com o personagem, Holden Caufield, um adolescente de 16 anos, perdido em meio ao vazio deixado pela tentativa de abandono das imagos parentais infantis e ainda despojado dos elementos que lhe permitiriam o alcance de uma identidade.

Goethe narra as desventuras do jovem Werther, Shakespeare a tragédia do adolescente Hamlet. Adolescentes menos famosos povoam a literatura contemporânea, mas considero que ao descrever tão detalhada e realisticamente o estado de turbulência e angústia crescente vividos por um adolescente americano na década de 1950, Salinger, mais que qualquer outro autor, consegue penetrar profundamente no universo mental do adolescente e, nesse sentido, sua narrativa torna-se atemporal. O autor descreve os acontecimentos vividos pelo personagem desde o momento em que abandona o aristocrático colégio de onde foi expulso e, em queda livre como um avião desgovernado, cai no epicentro de um breakdown que, paradoxalmente, o salva do abismo. Submetendo-se a um trabalho psicanalítico, Holden cai em si, retoma o processo do seu desenvolvimento como indivíduo e narra sua história. Estruturando uma narrativa, adquire a compreensão de si mesmo. Subjetiva-se.

O aspecto que desejo destacar na conexão entre o romance e o trabalho clínico com adolescentes é justamente a importância da dimensão narrativa como um elemento organizador das experiências emocionais complexas e turbulentas, vividas pelo adolescente. Tais experiências costumam expressar-se na adolescência predominantemente por atuações, acting-outs, e ausência da palavra.

 

II

Não poderia dizer que a palavra estava ausente no meu trabalho analítico com Pedro, um adolescente de 17 anos, cuja análise ocorrida havia alguns anos teve a duração de quatro com uma frequência de três sessões por semana. As atuações constituíam sua comunicação preponderante, as palavras eram usadas para inundar minha mente com os sentimentos que ele não podia tolerar.

Pedro era desleixado com os estudos, não usava seu potencial intelectual, era negligente com a saúde, estava acima do peso, bebia e fumava em excesso, era apático, parecia não se importar ou se responsabilizar por nada.

Lembro-me de uma sessão em que ele começou dizendo:

- Estou meio fora do ar. Deveria ter ido ao médico, mas perdi o horário da consulta e não marquei outra. É sempre assim, os outros têm de fazer tudo para mim, marcar médicos, cuidar dos meus horários etc.

Sua fala me fez sentir um terrível sentimento de desânimo e desesperança de poder ajudá-lo.

Depois iniciou um diálogo comigo nomeando comidas exóticas, querendo saber se eu já as conhecia ou provara.

Veio à minha lembrança a reação de desagrado e náusea quando, em um país estrangeiro, comi peixe cru pela primeira vez.

Enquanto fiquei com o desconforto trazido pela memória, o clima da sessão muda - Pedro estava animado; prosseguiu lembrando agora de um programa de tevê que se chamava No limite, baseado no programa americano Survivor. Descreveu as tarefas dos participantes da gincana - tinham que comer gafanhotos, olhos e miolos de cabra crus, tudo isso mostrado cruamente pela câmera. "O nome do que sobrar deve ser sobrevivente", disse. Lembrou também do filme Indiana Jones que mostrava personagens comendo aranhas e gafanhotos.

Experimentei a sensação de repulsa e ânsia de vômito. Senti que ele investigava ativamente a minha mente, testando minha capacidade de ouvir sem me horrorizar.

Depois ele falou de um filme, 60 minutos, sobre "um cara que passa por muitos perigos". O filme tem muita corrida de carro, trombada e perseguições, "muita adrenalina". De animado, Pedro passa a excitado.

Comentei que apenas na ficção todos saem ilesos.

Pedro então comentou que "ficou puto" com um colega a quem deu carona na noite anterior, pois ele o recriminou por ter invadido o sinal vermelho, pondo em perigo a sua e a vida dos outros.

O aviso para não censurá-lo é claro - sou eu quem deve experimentar tudo aquilo e fazer algo com o que comi.

A fala era tranquila e irônica, mas sua inquietação corporal denunciou a presença da angústia.

Sem pensar muito no que iria dizer, comparei o que ele estava me contando a transar sem camisinha achando que nunca pegaria aids.

Pedro fez uma pausa, respirou fundo e me contou que transou sem camisinha com uma menina de conduta um tanto promíscua. Depois pareceu ganhar coragem para contar que participou de um "racha" com o carro do pai, na marginal.

- Tinha bebido e fumado, o cara me provocou, e não resisti, entrei no jogo. Depois fiquei assustado. Fazer racha é superperigoso.

De susto em susto como nos loopings de uma montanha-russa, cheguei a um lugar seguro quando ouvi que Pedro me contava do seu medo e de como se sentia assustado com suas atuações.

 

III

Autores que se dedicam ao estudo do psiquismo adolescente são unânimes em mencionar a importância da atuação como a comunicação privilegiada do seu mundo interno, ou seja, a expressão de suas pulsões, anseios, conflitos e sofrimento mental.

No âmbito da psicanálise de adolescentes, Barugel e Mantykow de Sola distinguem os tipos de atuação na adolescência; e nomearam um deles ação comunicativa, definindo suas diferentes qualidades e objetivos; o outro tipo corresponderia ao já conhecido conceito de acting-out. À ação comunicativa é atribuída a mesma função que o brincar desempenha na análise de crianças.

Concedendo um justo lugar às ações comunicativas, dizem as referidas autoras, encontramos instrumentos novos que irão permitir a instalação de um processo analítico sem nenhuma modificação de seus pressupostos básicos. (Barugel e Mantykow de Sola, 1993, p. 46)

As ações comunicativas estariam, do ponto de vista das autoras, relacionadas a fenômenos transferenciais e ao funcionamento da identificação projetiva. Em relação ao setting externo no processo de análise, essas ações se manifestam por ações como faltas ou atrasos às sessões, esquecimento do pagamento dos honorários, propostas de mudanças frequentes do horário da sessão, exibição para o analista de fotos ou mensagens, entre tantas outras atuações que os analistas de adolescentes estão habituados a encontrar. É também comum que tragam amigos para acompanhá-los na sala de espera.

O destinatário de tais ações é o analista, de quem os analisandos esperam acolhimento, compreensão e apreensão de um significado. Barugel e Mantykow de Sola compreendem essas ações como estruturas complexas nas quais se encontram vestígios de formas primitivas de linguagem, fragmentos de pensamentos que ainda não podem ser pensados ou considerados como próprios. Podem ser ainda entendidas como manifestações de formas mais desenvolvidas de funcionamento mental ligadas ao uso comunicativo da identificação projetiva. O elemento básico que as caracteriza seria a necessidade de ser compreendido pelo objeto, considerado como um aliado.

Ações comunicativas ampliam a possibilidade do trabalho analítico com essa faixa etária convertendo-se em um instrumento útil ao analista, na medida em que este venha a compreendê-las também como manifestações dos sentimentos e emoções evocadas no encontro da dupla analítica.

No acting-out, ao contrário, a hostilidade em relação ao analista e à análise é o elemento predominante. O acting-out perturba a tarefa analítica, conduzindo ao impasse. Sendo uma manifestação ligada aos componentes narcísicos e onipotentes do self, provoca situações de contra-atuações do analista, tentando afastá-lo de sua condição de objeto pensante.

Levando em conta esses diferentes significados da atuação, poderíamos compreender as atuações do meu analisando, bem como a longa sequência de atuações do personagem Holden Caufield no âmbito das ações comunicativas. No espaço de tempo em que transcorrem as situações narradas pelo autor é possível notar a busca de Holden por um objeto continente que possa agarrá-lo (to catch), dando continência (holding) para sua angústia difusa, ajudando-o a convertê-las em significado, impedindo, dessa maneira, a queda no precipício da psicose.

Percebemos em Holden a evidência de sentimentos amorosos, resultantes da internalização de seus bons objetos primários e de valores éticos e estéticos. Esses objetos estão representados por diversos personagens: No capítulo inicial, Holden menciona a desilusão com seu irmão DB, seu herói, herdeiro da idealização das figuras parentais, mas agora alvo do seu desprezo, na medida em que se rendeu aos valores adultos, "prostituindo-se" como escritor de roteiros em Hollywood. É também notável a ternura, ainda que entremeada de comentários aparentemente cruéis, em relação ao velho professor Spencer, de quem foi se despedir em sua última noite no colégio de onde foi expulso. Holden repudia os ideais burgueses e a falsidade das relações de seus diretores e professores com os alunos e seus pais. Vinga-se do colégio cuja excelência nos esporte é motivo de orgulho, "esquecendo" no metrô os equipamentos da esgrima, o que resulta em desclassificação da equipe da qual era o capitão.

Abominar tudo o que é falso é uma característica marcante nos adolescentes; Holden não foge à regra - é impiedoso com a moça que chora no cinema vendo um filme sentimental, e não atende a criança que lhe pede com insistência para ir ao banheiro. "Era tão bondosa quanto a porcaria de um lobo. De cada dez pessoas que choram de se acabar com alguma cretinice no cinema, nove são, no fundo uns bons sacanas." A seu ver, Spencer, com alguma restrição, e o professor Antolini são os únicos professores que merecem seu respeito, por manifestarem uma conduta mais humana e verdadeira

No decorrer da narrativa vão surgindo outros bons objetos: Jane, a garota vizinha, companheira constante de Holden nos jogos e conversas; uma amizade que mal disfarça um amor platônico, em que qualquer manifestação sexual configura uma heresia. Não importa que o amor não tenha sido declarado, Jane é a sua garota e no tempo que dura sua descida ao inferno ela é uma espécie de flauta mágica que ele tenta ouvir nas diversas tentativas, sempre frustradas, de falar com ela ao telefone. Allie, seu pequeno irmão, morto de leucemia aos 11 anos, cumpria também essa função. É a ele a que Holden recorre no momento máximo de sua crise, quando sente a ameaça de perda da integridade corporal e sensação de queda sem fim. Neste parágrafo, encontramos uma descrição vívida do estado de Terror Sem Nome mencionado por Bion (1966) e Winnicott (1982):

tinha a sensação de que nunca chegaria ao outro lado da rua. Pensava que ia caindo, caindo e nunca mais ninguém ia me ver. Puxa, fiquei apavorado pra burro. Ninguém imagina o medão que me deu. Comecei a suar como um filho da mãe, molhei toda a camisa, a roupa de baixo e tudo. Aí fazia de conta que estava falando com meu irmão Allie. Dizia pra ele: "Allie, não me deixa desaparecer. Por favor, Allie, não me deixa desaparecer, aí quando chegava do outro lado eu agradecia a ele. (p. 191)

Provavelmente foi a morte do irmão o elemento crucial que desencadeou o breakdown do nosso personagem; Holden narra sua reação à morte de Allie:

Eu só tinha 13 anos e meus pais resolveram que eu precisava ser psicanalisado e tudo porque quebrei todas as janelas da garagem... Quebrei a droga dos vidros todos com a mão, tentei até quebrar os vidros da camioneta que tínhamos, mas a essa altura minha mão já estava quebrada e não consegui. (p. 42)

No mundo mental do adolescente, para ser amado, o objeto precisa ser perfeito, qualquer mácula torna-se um crime sem perdão. A lei prevalente é a do tudo ou nada.

Para Holden, Allie parecia ser o único representante do objeto totalmente bom:

Qualquer um teria que gostar dele. Era dois anos mais novo do que eu, mas umas cinquentas vezes mais inteligente... O caso é que ele não era só o mais inteligente da família. Era também o melhor de todos, em muitos sentidos. Nunca ficava aborrecido com ninguém... (p. 41)

Há uma tentativa de abandono do maniqueísmo quando nosso personagem busca uma síntese entre os bons e os maus aspectos do objeto na relação com o professor Antolini. Esse professor, a quem recorre tarde da noite, o recebe dando-lhe bons conselhos, mas parece tentar abordá-lo sexualmente enquanto dormia. Holden foge apavorado da casa, mas depois reflete:

Pensei que mesmo que fosse veado ele tinha sido um bocado bom comigo. Nem tinha se importado de eu telefonar tão tarde. E tinha tido um trabalhão para me aconselhar sobre aquele negócio da gente descobrir o tamanho da própria mente e tudo. (p. 189)

O contato com experiências ou fantasias de natureza homossexual é terrivelmente ameaçador para o adolescente. Holden a todo o momento banca o grande macho conquistador, aborda sem nenhum sucesso todas as mulheres com quem cruza nessa longa noite de loucura, mas é virgem e mostra-se inseguro da sua identidade sexual - "eu ficava esperando virar veado ou coisa parecida". Antolini, no entanto, sabe o que se passa com Holden e consegue dizê-lo:

Tenho a impressão que você está caminhando para uma espécie de queda, um tipo horrível... O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que num momento ou outro de suas vidas procuram alguma coisa que pensavam que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso abandonam a busca. Abandonam mesmo antes de começá-la de verdade. (p. 182)

...

Acho que um dia desses você vai ter que decidir para onde quer ir. E aí vai ter que começar a ir para lá ... Quando você tiver uma ideia de onde quer ir, o primeiro passo é aplicar-se no colégio. (p. 183)

Antolini fala com Holden sobre a importância de buscar o conhecimento e que essa busca vai poupar-lhe tempo, pois lhe permitirá discriminar a medida exata da sua mente e quais ideias se ajustam a ela e quais não cabem nela.

Apesar da pertinência de suas formulações, Antolini fala à razão, até mesmo diz a Holden que essa medida lhe será dada pelo conhecimento acadêmico. Sua fala é didática, desse modo não modifica o estado de angústia do personagem, ao contrário, o acentua, pois agora fica claro para onde ele está indo, mas não consegue deter-se.

 

IV

Se me detive na questão da natureza do objeto interno é porque ela me parece decisiva para considerar as atuações de Holden no espectro das ações comunicativas. Ele intui a existência de um continente ao qual necessita se agarrar. Há um fragmento de um pensamento sobre si mesmo que clama por um objeto capaz de ouvi-lo e dar sentido à sua busca.

Holden o encontra em Phoebe, sua irmãzinha de 10 anos, representante da integridade, ordem e pureza infantil.

O que se passa entre eles tem grande semelhança com o que acontece em uma sessão de análise.

Ela o confronta, mostrando-lhe o vazio em que vive: "Você não gosta de nada. Você não consegue pensar em uma coisa".

Holden diz que ela o escuta atentamente: "Ela é muito criança e tudo. Mas pelo menos estava escutando. Se uma pessoa presta atenção, aí não é tão ruim".

Ele lhe faz uma pergunta, mas Phoebe não responde. Holden diz que ela estava muito concentrada, sentada em uma posição muito esquisita, lá longe, do outro lado da cama, a uns mil quilômetros de distância.

Considero que aí estão presentes importantes elementos do trabalho analítico: a escuta, o silêncio reflexivo e o distanciamento indicativo da condição de ser um outro.

É nesse contexto que Holden, por meio da metáfora do apanhador no campo de centeio, pode verbalizar aquilo que ele gostaria de se tornar: "uma maluquice", diz ele, ser alguém que fica à disposição das criancinhas que brincam descuidadas e desatentas em um campo de centeio e que poderão cair em um "precipício maluco" se ninguém grande as agarrar para impedir a queda. Na verdade, Holden, como tantos dos nossos analisandos adolescentes, enuncia aquilo que ele espera encontrar.

E Phoebe, como deve também fazer o analista de adolescentes, não abandona Holden - segue-o em sua fuga, disposta a acompanhá-lo em qualquer circunstância -, sua persistência finalmente impede a queda que parecia inevitável.

No hospital, atendido por um psicanalista, Holden narra sua história. Ao final da narrativa, Holden diz que sente saudade de todo mundo que entrou na história, até mesmo dos personagens de quem falou mal. Na frase que encerra o livro ele diz: "A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo o mundo".

Essa frase não apenas esclarece a função da narrativa, como deixa entrever sua consequência - o crescimento mental revelado pelo alcance da dimensão amorosa, poderia também dizer, pelo alcance da posição depressiva, no universo de relações do personagem.

No ensaio "O narrador", Walter Benjamin refere-se à dimensão utilitária da narração, ainda que essa dimensão esteja, muitas vezes, em estado latente. Menciona que a utilidade pode consistir em um ensinamento moral, em uma sugestão prática, ou até numa norma de vida. Dentro desse ponto de vista, a narrativa faria uma espécie de sugestão sobre a história que está sendo contada; para obter essa sugestão é necessário saber narrar a história, diz ele. "De qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza sua situação"(1994, p. 200).

Conjeturo que a permanência do interesse por O apanhador no campo de centeio, desde 1951 até os nossos dias, além do aspecto mencionado no início do trabalho, pode estar relacionada com essa dimensão utilitária e pelo fato, também exposto por Benjamin, de que

o narrador retira da sua experiência o que ele conta, e incorpora o que foi narrado à experiência dos seus ouvintes ... Quem escuta uma história está em companhia do narrador; quem a lê partilha dessa companhia. (p. 201)

...

O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo. (p. 217)

Antonino Ferro (1998), falando sobre o fracasso da narração, detém-se sobre o perigo de o analista ser capturado pelo jogo real do analisando e desse modo perder a capacidade de se comunicar narrativamente com ele. Faz o alerta que as emoções primitivas que não podem ser pensadas se constituem em evacuações que podem deslocar-se em níveis diversos, constituindo os mais diversos tipos de patologia-superficialidade, doenças psicossomáticas, quadros alucinatórios, atuações delinquenciais, caracteropáticas e toxicômonas. Afirma que "a possibilidade de terapia passa através de uma tecedura narrativa de tudo que não tinha sido possível digerir".

A convicção da importância da dimensão narrativa como índice de desenvolvimento e seu papel na estruturação de uma identidade, no trabalho psicanalítico com crianças e adolescentes, convive comigo há muito tempo. Eu a encontro nos trabalhos "Um percurso até a palavra" (1988), "Algumas questões propostas como estímulo para uma conversa sobre análise de adolescentes"(2001) e em "Os sonhadores" (2008).

Comentando o segundo trabalho aqui citado, Nélio Sacramento inclui Édipo entre Werther e Hamlet adolescentes citados no trabalho, aos quais chamou de heróis trágicos. Heróis trágicos porque desconsideraram os avisos, diz ele, e incorreram em hybris, a busca de um conhecimento total pertencente aos deuses e a conseqüente punição.

Cito textualmente Nélio:

Werther, jovem cheio de paixões, uma alma sensível, mas caiu no precipício. Penso em Hamlet. No jovem Hamlet. E no jovem Édipo. Bion falou a respeito de Édipo, como um símbolo da integridade científica. Podemos considerar o mesmo em relação a Hamlet: a investigação a qualquer preço, o conhecimento, a busca da verdade. A investigação é levada adiante. Hamlet busca, duvida, pensa. Finalmente, um desfecho trágico. Por que Hamlet não ficou quieto? Ele ficou muito desgostoso com o procedimento da mãe. Muito querido pelo seu povo, poderia ser feliz, casado com Ofélia, ter lindos filhos e ser o rei da Dinamarca. Mas Hamlet se inquieta com suas alucinações juvenis, a honra, vingança e tudo. Ele não se detém, é preciso punir os criminosos. Pensa, hesita, mas prossegue até o desenlace trágico. Também cai no precipício - morre, mas impede o suicídio de Horácio, ordenando que este viva para contar sua história. Hamlet é um herói trágico.

Da mesma estirpe, Édipo. Outro jovem impetuoso, determinado. Nada o deterá. Cumpre sua trajetória em busca da verdade e há uma terrível sucessão de acontecimentos culminando com mortes, cegueira, desterro. Também é um herói trágico, mas sua história narrada por Sófocles estrutura a teoria psicanalítica.

Holden, não chega a ser um herói trágico. O apanhador no campo de centeio é uma quase tragédia contemporânea. Holden ronda a tragédia, namora com a morte, mas se segura, se agarra, se salva. Vai para uma clínica, recebe a ajuda de um psicanalista.

Recuperados, desterrados ou mortos emocionam. São fictícios e é uma maravilha pensar, como disse Bion, que eles têm mais "realidade" que pessoas de fato existentes.

...

Caindo ou não no precipício, salvando-se ou tendo um desfecho trágico, todos podem dar belas histórias. E todos aprendemos com todos.

(Sacramento, 2001, p. 12)

 

Referências

Barugel, N. e Mantykow de Sola, B. (1993). La acción comunicativa. Una manifestación transferencial en el análisis de los adolescentes. Primera Jornada del Departamento de Niñez y Adolescencia, APdeBA.         [ Links ]

Benjamin, W. (1994). O narrador. In W. Benjamin, Magia e técnica, arte e política (pp. 197-221). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Bion, W. R. (1966). Os elementos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Ferro, A. (1998). Na sala de análise. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Fontela, O. (2006). Gravidade. In O. Fontela, Poesias reunidas. Rio de Janeiro: 7 Letras.         [ Links ]

Fontes, M. H. de S. (1988). Um percurso até a palavra. Trabalho apresentado em reunião científica na SBPSP.         [ Links ]

Fontes, M. H. de S. (2002). Algumas questões sobre análise de adolescentes. Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, 4(1),139-156.         [ Links ]

Fontes, M. H. de S. (2008). Os sonhadores. Ide, 31(46),52-55.         [ Links ]

Sacramento, N. (2001). Comentário ao trabalho "Algumas questões propostas como estímulo para uma conversa sobre análise de adolescentes". Apresentado em reunião científica na SBPSP.         [ Links ]

Salinger, J. D. (1951). O apanhador no campo de centeio. Rio de Janeiro: Editora do autor.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1967). La família y el desarollo del individuo. Buenos Aires: Paidós/Hormé         [ Links ].

Winnicott, D. W. (1982). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/4/2017
Aceito em: 2/5/2017

 

 

1 Dedico este trabalho à memória de Nélio Sacramento, com quem tive o prazer de compartilhar muitas ideias e "maluquices".

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