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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo June 2017

 

A ESCRITA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE DA ESCRITA

 

Três aspectos da escrita psicanalítica: raízes em Freud, restauração da possibilidade do sonhar, processo de formação do analista1

 

Three aspects of psychoanalytic writing: roots in Freud's thinking, restoring the possibility of dream, and the psychoanalytic training

 

Tres aspectos de la escritura psicoanalítica: raíces en Freud, restauración de la posibilidad del sueño, proceso de formación del analista

 

Trois aspects de l'écriture psychanalytique: les racines chez Freud, la restauration de la possibilité du rêve, le processus de formation de l'analyste

 

 

Luís Henrique de Oliveira DalóI; Ana Maria LoffredoII

IMestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP e Membro fundador da Gesto Psicanálise (Rede de psicanalistas, criada em 2007, que oferece atendimento clínico e atividades de formação continuada), São Paulo. luishenriquedalo@gestopsicanalise.com.br
IIMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Professora do Instituto de Psicologia da USP, IPUSP, São Paulo. analoffredo@usp.br

 

 


RESUMO

O presente artigo se divide em três partes. A primeira delas toma como ponto de partida a escrita freudiana para investigar a escrita psicanalítica enraizada nos processos psíquicos inconscientes, análoga à formação do sonho e à sua interpretação. Tratamos, então, de pensar como essa raiz propicia "vida" aos textos, que permanecem abertos a novas leituras e interpretações. Na segunda parte, a escrita psicanalítica é repensada com base na experiência clínica dos estados-limite, como um recurso de restauração da escuta-sonho do psicanalista. A terceira parte articula o trabalho de escrita do analista à sua formação, considerando haver presente, em ambos, um movimento dialético de identificação e diferenciação em relação ao campo psicanalítico.

Palavras-chave: método psicanalítico, psicanálise, Freud 1856-1939, estados-limite, escrita psicanalítica


ABSTRACT

This article is divided into three parts. The first part starts from Freudian writing in order to investigate the psychoanalytic writing, which has roots in unconscious psychic processes. This writing is analogous to constructing the dream and its interpretation. We, therefore, attempt to reflect on the way this root "brings life" to writings, which have remained open to new readings and interpretations. In the second part, the authors rethink psychoanalytic writing from the perspective of experiencing analytic practice with "borderline states", as a way of restoring the psychoanalyst's dream-listening. The third part connects the work of the analyst's writing to his training by considering, in both cases, the existence of a dialectic movement of identification and differentiation regarding the psychoanalytic field.

Keywords: Psychoanalysis, Freud 1856-1939, borderline state, psychoanalytic writing, psychoanalytic method


RESUMEN

El presente artículo se divide en tres partes. La primera de ellas toma como punto de partida la escritura Freudiana para investigar la escritura psicoanalítica enraizada en los procesos psíquicos inconscientes, análoga a la formación del sueño y a su interpretación. Tratamos así de pensar la manera por la cual esta raíz propicia "vida" a los textos, los cuales permanecen abiertos a nuevas lecturas e interpretaciones. En la segunda parte, la escritura psicoanalítica es repensada a partir de la experiencia clínica de los estados-límites, como un recurso de restauración de la escucha-sueño del psicoanalista. La tercera parte articula el trabajo de escritura del analista a su formación, considerando que, en ambos casos, hay un movimiento dialéctico de identificación y de diferenciación en relación al campo psicoanalítico.

Palabras clave: psicoanálisis, Freud 1856-1939, estado-límite, escritura psicoanalítica, método psicoanalítico


RÉSUMÉ

Cet article se divise en trois parties. La première prend comme point de départ l'écriture Freudienne afin d'enquêter l'écriture psychanalytique enraciné dans les processus psychiques inconscients, analogues à la formation du rêve et de son interprétation. Nous nous consacrons à penser comment cette racine donne "vie" aux textes qui restent ouverts à de nouvelles lectures et interprétations. Dans la deuxième partie, l'écriture psychanalytique est repensée à partir de l'expérience clinique des états-limites, comme un moyen de restauration de l'écoute-rêve du psychanalyste. La troisième partie articule le travail de l'écriture de l'analyste à sa formation, en considérant la présence, dans les deux cas, d'un mouvement dialectique d'identification et de différenciation par rapport au champ psychanalytique.

Mots-clés: psychanalyse, Freud 1856-1939, état-limite, écriture psychanalytique, méthode psychanalytique


 

 

Parte I - Raízes em Freud

Como um sonho, um texto,
no tempo em que ele se escreve,
não nos diz aonde vai.
(Pontalis, 1991b, p. 47)

Ao debruçar-nos sobre textos psicanalíticos de diversas correntes, podemos observar algo digno de consideração: em nossa disciplina, a referência a seu autor fundador está presente em praticamente todos os autores. Apesar de os primeiros textos freudianos terem mais de cem anos, os psicanalistas remetem-se a Freud a cada novo passo dado no terreno por ele inaugurado, buscando, em seu texto ou em suas entrelinhas, a semente de seus insights. Cada autor, por maior que seja sua originalidade e sua contribuição para a psicanálise, não hesita em sustentar suas raízes em Freud; ainda que ofereça ao campo teórico algo diverso da proposição freudiana, ou até mesmo contrário a ela em algum aspecto.

Podemos considerar que

o momento inaugural da psicanálise abre um campo discursivo que guarda em si espaço para diferenças e de onde vários autores podem fazer surgir teorias criativas, que já contêm, no momento de sua inauguração, a possibilidade de movimentos renovadores. (Munhoz, 2009, pp. 82-83)

Se o campo discursivo da psicanálise permite diferenças e abre espaço para renovar-se, o risco é perder-se de vista, em algum momento, seu autor fundador e seus textos; porém, não é o que acontece. Em debate intitulado "Ler Freud: apreensões em torno do originário", publicado pelo Jornal de Psicanálise, Souza observa que

É possível apresentar frente à teoria freudiana outras possibilidades de articulação teórica, porém qualquer outra articulação é sempre um diálogo com a teoria freudiana, não só por uma referência à origem da psicanálise, mas, fundamentalmente, porque essa origem está permanentemente presente em qualquer novidade que se formule em relação à psicanálise. (Loffredo et al., 2004, pp. 13-14)

Entendemos que a radicalidade dessa presença se deve ao fato de que o pensamento psicanalítico é, desde sua origem, um método de investigação do psiquismo (Freud, 1922/2011) em constante diálogo com a produção teórica construída com base nele. Nesse sentido, como observa Loffredo:

o método fertiliza a produção teórica e, ao mesmo tempo, a ficção teórica permite que o método tenha o estatuto que tem. A relação de interferências recíprocas entre ambos sendo fundamental, não é possível que se faça nem referência ao método de modo destacado, descontextualizado teoricamente, nem a uma teoria desencarnada do método. (Loffredo et al., 2004, p. 16)

Tal como a interpretação nasce da relação entre a fala do analisando e o que o analista apreende dela com base na situação transferencial, também a teorização em psicanálise se dá pelo estabelecimento de uma relação entre a escuta clínica e o arcabouço teórico já existente. Quanto ao percurso freudiano, podemos reconhecer uma oscilação entre momentos de fechamento, de organização e amarração de sua rede conceitual e teórica e momentos de abertura ou ruptura, que exigiram novas elaborações.

Mahony (1990), ao estudar a obra freudiana sob a perspectiva de sua escrita, enfatiza a confluência de dois tipos de discurso que podemos relacionar a esses movimentos de fechamento e abertura. Trata-se dos discursos dogmático e genético, explicitados e nomeados por Freud (1940[1938]/1989a) em seu texto "Algumas lições elementares de psicanálise". No discurso dogmático, uma tese é apresentada como algo já construído e a estrutura teórica parece completa; tem por objetivo tão somente expor as conclusões do autor. Considerando o terreno no qual a psicanálise buscou espaço para se assentar - visivelmente movediço, se levarmos em conta o amplo rechaço que a nova disciplina encontrou em seu caminho -, podemos reconhecer a importância desse modo discursivo por meio do qual Freud, ao se dirigir a seus pares, favorecia o fortalecimento e cuidado quanto às configurações teóricas já construídas. Não era intenção do autor ampliar o campo psicanalítico por meio desse modo discursivo, mas consolidar o terreno então conquistado, dialogando com pessoas que já conheciam e confiavam nas descobertas da psicanálise. Temos um exemplo claro desse objetivo no "Esboço de psicanálise", logo no início do texto:

O propósito deste trabalho é reunir os princípios da psicanálise e expô-los, por assim dizer, dogmaticamente - da maneira mais concisa e nos termos mais inequívocos. Sua intenção não é, desde logo, compelir à crença ou provocar convicção. (Freud, 1940[1938]/1989b, p. 139, tradução nossa)

Já no discurso genético, o escritor expõe sua própria via de investigação ao leitor. Mahony (1990) destaca ainda na obra de Freud uma diferença entre discurso genético público e privado. O primeiro tem como bom exemplo as "Conferências introdutórias à psicanálise" (Freud, 1917[1916-1917]/2014), pelas quais é possível constatar que "Freud não buscava apenas a transmissão de um conhecimento intelectual a seus ouvintes vienenses: em pelo menos quatro ocasiões, ele pediu-lhes que suspendessem o julgamento a fim de 'deixar que o assunto agisse sobre eles'" (Mahony, 1990, p. 26). Nessas exposições, Freud já tinha conhecimento daquilo que seria transmitido, mas desejava convencer o público, estimulando-o não somente a "pensar e sentir, mas também a lidar com suas resistências e facilitar seus processos associativos" (Mahony, 1990, p. 27).

Podemos ressaltar, entretanto, que há algo que escapa à intencionalidade do autor, incidindo também sobre os textos e apresentações que circundam campos já conhecidos, tal como bem destaca Loureiro (2002):

Mesmo quando não se trata de investigação e sim da mera divulgação de um material já conhecido, como no caso das "Conferências introdutórias" de 1916-1917, Freud admite que o material é capaz de tomar outros rumos que não o planejado inicialmente: até a tarefa de resumir escapa ao pleno controle do autor. (p. 151)

E tal como se confirma no depoimento de Freud que abre a 24ª das "Conferências introdutórias à psicanálise":

Senhoras e senhores: Depois de, em nossas últimas discussões, termos realizado parte tão difícil de nosso trabalho, abandono temporariamente o assunto de nossas palestras e me volto para os senhores ... Porque sei que estão insatisfeitos. Imaginaram de outra forma uma "introdução à psicanálise ... Sim, meus senhores, não posso deixar de lhes dar razão ... Creio, também eu, que teria sido mais vantajoso para os senhores se eu tivesse procedido de outra forma - era, aliás, minha intenção. Mas nem sempre conseguimos pôr em prática nossas intenções sensatas. No próprio assunto há sempre algo que nos comanda e nos desvia de nossas intenções iniciais. Mesmo uma tarefa tão modesta como ordenar um material bem conhecido não se sujeita inteiramente ao arbítrio do autor; ela se cumpre como bem entende, e tudo que podemos fazer é nos perguntar, posteriormente, por que seu cumprimento resultou dessa maneira e não de outra. (1917[1916-1917]/2014, pp. 500-501)

Freud aponta seu tema como o responsável por esses desvios não intencionais que sobrevêm em seu discurso, surpreendendo-o e abrindo lugar para novas interpretações. Assim, se considerarmos o discurso que se constrói nessas mudanças de rumo como sendo enraizado na lógica do inconsciente, podemos tomá-lo como instrumento fundamental para a pesquisa psicanalítica, na medida em que estimula as associações do autor. Não apenas o assunto desvia o discurso como também o discurso desvia o assunto e promove nele rupturas, de modo análogo à escuta clínica em relação às associações do analisando. Passamos então para a esfera do discurso genético privado que, tal como propõe Mahony (1990), de fato serve de instrumento da escrita freudiana. Ou, melhor dizendo, a escrita apoiada nessa lógica discursiva serve de instrumento de investigação psicanalítica. Pelo discurso genético privado, então, Freud não relata uma exploração que já tenha acontecido, mas sim "efetivamente explora processos em andamento; em vez de dizer algo previamente planejado, lembra a livre associação autêntica, na qual o paciente fala buscando descobrir o que pensa" (Mahony, 1990, p. 29).

Segundo Munhoz (2009), há na base da teoria "uma formação do inconsciente que precisará ser elaborada para tornar-se, de fato, teoria psicanalítica transmissível e aplicável" (p. 88). Sob esse prisma, podemos considerar que os conceitos, no tempo de seu surgimento por meio da pena freudiana, nos momentos de entrega associativa, "não tentariam ordenar, mas pôr em movimento certas questões ou problemas" (p. 71). Nesse sentido, ainda que o resultado escrito seja, obviamente, representado em palavras, devemos conceber o processo da escrita calcado em representações de coisa,2 significantes pré-verbais fundamentalmente ligados ao sistema inconsciente e, portanto, submetidos aos processos primários.

Freud, em "O inconsciente", considera que

o que poderíamos chamar de representação consciente do objeto decompõe-se para nós em representação da palavra e representação da coisa, que consiste no investimento, se não das imagens mnemônicas diretas das coisas, ao menos de traços mnemônicos mais distantes e delas derivados. (1915/2010, p. 146, grifos do autor)

Essas representações de coisa estão na base das formações do inconsciente - compõem os sonhos, por exemplo, reinvestindo e reativando traços mnêmicos do sonhador -, e somente acedem ao sistema pré-consciente/consciente quando sobreinvestidas por meio de ligações a representações verbais, "que levam a uma mais alta organização psíquica e tornam possível a substituição do processo primário pelo processo secundário" (p. 147). Nesse sentido, podemos conjeturar que, quando o analista escreve, ele reinveste e reativa os traços de memória do tempo de sua escuta que não foram ligados a representações verbais - ou cujas representações verbais não abriram uma via aos processos secundários3 - e, portanto, pertencem ainda ao sistema inconsciente (Ics). Essa ligação será feita posteriormente, no tempo da escrita, que terá, então, um primeiro momento "onírico", de figuração, quando no psiquismo do analista emergem imagens submetidas aos mecanismos do inconsciente. Ou seja, ao analista, sua escrita lhe exige, de saída, disposição para "sonhar" seu texto; são as representações de coisas figuradas no tempo desse "sonho" que se ligarão às palavras escritas, dando-lhes vida.

Esse mergulho nos processos primários subjaz o percurso freudiano e está na origem de muitos de seus textos: Loureiro (2002) recolhe na obra de Freud "inúmeros exemplos de certa disponibilidade para se deixar guiar por um objeto apenas vislumbrado, situado num horizonte sempre fugidio à medida que avança o pensamento" (p. 150).

Em primeiro lugar, esta espécie de deriva comparece no âmago do processo de elaboração de certas concepções teóricas e também na renúncia a formular de antemão um plano para um capítulo ou para uma obra como um todo. (p. 150, grifo da autora)

Isso se evidencia em uma carta de Freud a Fliess escrita em 7 de julho de 1898, a respeito de "A interpretação dos sonhos":

Ele segue completamente os ditames do inconsciente, segundo o célebre princípio de Itzig, o viajante dominical: "- Itzig, para onde você vai? - E eu sei? Pergunte ao cavalo". Não iniciei um só parágrafo sabendo onde ele iria terminar. ... Ainda não tenho a mínima ideia da forma que finalmente assumirá o conteúdo. (Masson, 1986, p. 320)

É notório que esse trabalho de 1900, paradigmático para a psicanálise, permite ao leitor uma ampla gama associativa, revelando-se uma obra permanentemente aberta a releituras e inspirações; o cavalo de Itzig serve agora ao leitor, possibilitando-lhe abrir novas trilhas. Como exemplo disso, tendo o próprio "Livro dos sonhos" como referência, neste momento podemos propor: se aí Freud considerou a estrutura do sonho como uma "tessitura multifacetada de signos, ... [interpretando-a] como análoga à de um texto" (Birman, 1993, p. 105, grifos do autor), não seria possível propormos uma inversão e considerarmos justamente a formação do texto psicanalítico análoga à do sonho?4 Parece que sim, mas somente até certo ponto, pois teríamos que tomar a formação do texto análoga não somente à formação do sonho - não somente análoga a esse primeiro tempo em que, durante o sono, formam-se imagens como um modo do psiquismo de interpretar a pulsionalidade -, mas também à sua interpretação psicanalítica.

Neste momento [da interpretação psicanalítica], o que se vê é a positivação do negativo ou a formalização da virtualidade. Por esse mesmo movimento, o pensamento não articulado do inconsciente se enuncia, se articula e, de tal modo, se limita. Ao limitar-se, ganha contornos. Ele talvez perca parte de seu dinamismo, mas ganha uma precisão que o torna comunicável e manipulável pelo pensamento. Em suma, acede a um estatuto de linguagem. (Green, 2002, p. 31, tradução nossa)

Além de suas raízes em uma "teorização flutuante", o ato da escrita (ou trabalho da escrita, em analogia ao trabalho do sonho) também se sustenta nos processos secundários, permitindo a criação ou reformulação do corpo teórico psicanalítico por meio de um movimento que podemos reconhecer como sendo análogo ao da interpretação, quando se dá a positivação de uma formação em negativo situada no campo transferencial. Então, se propusemos que o analista deve se dispor a "sonhar" seu texto, será necessário também que ele faça do processo da escrita um movimento análogo ao da interpretação do sonho, interpretação desse "texto-sonho" virtual, formalizando-o e expondo de um modo legível e partilhável aquilo que o engendrou. É nesse sentido que

Os relatos de casos ... podem, por analogia, ser considerados traduções, "elaborações secundárias" num segundo nível, da mesma forma que o relato do sonho por parte do sonhador promove esta mesma exigência. Ambos só são acessíveis por meio deste gênero de narrativa e é irrelevante o quanto o relato do sonho é mais ou menos "fiel" ao sonho sonhado, pois o material que nos interessa é o próprio relato e, nele, supõe-se que estarão presentes os mesmos processos envolvidos na produção onírica. (Loffredo, 2002, p. 184)

Grosso modo, há no movimento da escrita psicanalítica, se quisermos desmembrá-lo, um primeiro tempo, que podemos comparar ao tempo da pulsionalidade que origina um sonho, quando do campo transferencial se impõe uma intensidade corporal, inicialmente sem forma ou interpretação, que exige do psiquismo do analista um processo de figuração - ligação do representante psíquico da pulsão aí surgido com uma representação de coisa. Uma intuição clínica pode então ser assim considerada: tal como um sonho, uma representação imagética da pulsionalidade que irrompe no encontro analítico. Para poder ganhar forma na linguagem, aquilo que foi figurado, intuído, requer um segundo tempo, aparentado ao da associação livre, regra fundamental que busca estabelecer um enlace entre as representações de palavra e as representações de coisa seladas na imagem onírica; esse é o momento em que o "princípio de Itzig" rege a escrita do analista, quando as palavras adquirem o movimento das "coisas" do inconsciente. Um terceiro tempo inclui um movimento que, de modo análogo à própria escuta psicanalítica, vai ao encontro da teia associativa presente na escrita; talvez aí encontremos a marca do psicanalítico na escrita, um diferencial em relação a outros escritos também fundados na associatividade; a atenção flutuante do analista que escreve dirige-se à sua própria escrita, provocando, em seu texto, rupturas, abrindo-o para novos sentidos e articulações. Encontramo-nos, então, às portas de um quarto tempo, comparável ao tempo da interpretação e da formulação interpretativa, emergente dessa postura metodológica que une passividade e atividade (e que, aliás, traz já em seu nome, na união de termos contrários - atenção flutuante -, esse paradoxo). Encontramos imbricados ao longo de toda a obra de Freud os estilos genético e dogmático salientados por Mahony (1990), e é nesse sentido que Loffredo (2002) destaca, além da disposição a deixar-se levar pelo texto, a presença também fundamental da operação dos processos secundários. Essa "mestiçagem" de estilos justamente ressoa, para a autora, "a especificidade de objeto e método de investigação da psicanálise" (p. 177), de tal modo que

é possível considerar que a escritura freudiana estaria vinculada ao próprio exercício da psicanálise, sendo que no estilo de sua transmissão, amparado nos procedimentos genético e dogmático, estaria em operação, em algum grau, o próprio método de produção do saber psicanalítico. (Loffredo, 2002, p. 179)

Assim se explicita como, no ato da escrita, há uma passagem

da palavra ouvida, da imagem sonora, isto é, da escuta, para a palavra escrita. O analista estaria colocado numa posição, de certa forma, aparentada à atenção flutuante, num segundo tempo desse procedimento-atitude, para que as impressões emerjam da memória e possam ir produzindo, gradualmente, Gestalten significativas. É neste segundo tempo de "ressonância e discernimento" que se recorta um espaço privilegiado de convívio do clínico com o metapsicológico (Loffredo, 2002, p. 184, grifos da autora)

Entendemos que é justamente nesse "espaço privilegiado de convívio do clínico com o metapsicológico" que se dá o que Green (2002) nomeia como "pensamento clínico", trabalho do pensamento enraizado na clínica e que busca romper certa tendência ao solipsismo ao incluir, no caso de um texto, o leitor e seu trabalho associativo junto ao pensamento autoral. Nesse sentido, esse autor ressalta que há escritos psicanalíticos que "falam" e outros que "não falam" a seus leitores, mas que

reconhecemos indubitavelmente o pensamento clínico quando a elaboração teórica suscita no leitor associações que se referem a tal ou qual aspecto de sua experiência analítica. Quer dizer que o pensamento clínico, mesmo quando não fala expressamente da clínica, desperta a evocação de um paciente, ou de um grupo de pacientes, e traz à memória tal ou qual momento de uma análise. Essas associações são parte integrante do modo de articulação do pensamento clínico. (Green, 2002, p. 11, tradução nossa)

O pensamento clínico, portanto, quando se torna o fio condutor do trabalho da escrita, leva a um resultado, um texto, que abre novamente o pensamento, no ato da leitura, para essa modalidade inaugurada pelos textos de Freud. Se considerarmos que "o precipitado, presente nos textos, encontra-se fundido na escrita" (Green, 2002, p. 14, tradução nossa), quer dizer, que em um texto encontra-se a raiz dinâmica de sua produção no ato da escrita, então temos a mesma potência associativa da escrita presente na leitura. Isso nos leva a situar a escrita pautada pelo pensamento clínico em um campo no qual está incluído um "terceiro" em relação à dupla analista-analisando:

Escutamos justamente que, estando atrás do divã, nos abrimos a ressoar o inconsciente do analisando, deixando vibrar o nosso próprio. Mas essa comunicação em vasos comunicantes ou em circuito fechado não é suficiente para constituir uma disciplina, um pensamento. Falta sempre um terceiro que escuta o que os outros dois dizem e entendem. Eis por que os analistas - e por vezes também os analisandos - escrevem. Assim, [os analistas] se escutam entre si, às vezes se reconhecem, outras, são de repente surpreendidos por uma novidade. (Green, 2002, p. 12, tradução nossa)

Tendo em conta tais considerações, esperamos que este artigo, originado da experiência clínica, mobilize o campo associativo do leitor, na medida em que a escrita será agora articulada às situações nas quais as condições para o pensamento clínico se esvaem.

 

Parte II - Restauração da possibilidade do sonhar

O trabalho de escrever a respeito de um processo de análise que parecia estagnado despertou o interesse de investigar a própria escrita do analista; mais especificamente, a escrita que nasce de uma situação de impasse na clínica. A constatação de ter havido um avanço no processo dessa análise a partir do movimento de escrever suscitou a ideia de ser a escrita - impelida por situações clínicas críticas - um recurso de ampliação da escuta psicanalítica.5

Na ocasião em que se iniciou essa escrita, o que se havia configurado na análise era uma espécie de "paralisia tensa", em que qualquer esboço de movimento era ameaçador e fortemente atacado, ao mesmo tempo que não se movimentar levava a repetições que igualmente eram ameaçadoras de uma mortificação e apagamento da história analítica.6

Não será apresentado desse atendimento mais que um sonho, surpreendente justamente por ter acontecido no tempo em que o analista estava pensando e escrevendo intensamente sobre esse processo de análise; na realidade, nem era exatamente um sonho, mas sim o relato de um videoclipe7 que, na sessão, no compasso das associações no campo transferencial, teve esse estatuto onírico:

Uma moça, em uma floresta, desenterra um livro em cuja capa tem seu rosto. As páginas estão totalmente em branco, mas, quando ela o abre, o livro começa a escrever-se: "Um dia encontrei um grande livro enterrado profundamente em uma floresta..." A história vai sendo assim escrita a partir do encontro da moça com o livro; ela está muito fascinada, lendo sua história que se escreve, até que resolve levar o livro a um editor. Ele se entusiasma e decide publicá-lo. A parceria entre a moça e o editor torna-se um casamento, e a publicação é um sucesso; todas as pessoas nas ruas e nos trens estão lendo o livro. Então, uma peça é encenada em um grande teatro, contando essa história. Aí começa uma espécie de pesadelo repetitório, pois se estabelece uma circularidade: na peça, a moça encontra o livro, que é publicado com sucesso e encenado; aí, outra encenação começa a acontecer dentro da primeira, em que a moça encontra o livro, ele é publicado e vai aos palcos, nos quais começa tudo de novo, mas a cada vez com um quê a mais de artificialidade, cada vez mais distante daquele encontro primeiro na floresta... abre-se outra cena idêntica, e outra, e aos poucos uma vegetação vai tomando conta da cena e da plateia; a aliança entre a moça e o editor se desfaz, e o livro começa a se apagar. A floresta toma conta de todos os espaços, cobrindo o editor, a moça e o livro em branco.

Para além dos desdobramentos e articulações que esse sonho produziu na análise - remetidos, entre outras coisas mais específicas, às repetições que ali estavam sendo vividas e ao risco insistente de uma destruição da memória e do percurso analítico -, podemos tomá-lo aqui como uma figuração, um paradigma daquilo que está em processo nos estados-limite:8 um apagamento não apenas de uma história, mas da própria possibilidade de escrevê-la; radical retorno à origem, em que já nem livro há mais. Devemos aqui, portanto, destrinchar uma raiz da escrita psicanalítica que então se revela remetida à impossibilidade do sonho - e da escrita!

Podemos considerar as situações extremas vividas em um processo analítico situadas no limite do campo interpretativo, no umbigo inalcançável do sonho (e não poderíamos dizer: no não sonhável do sonho?).

Se esse ponto extremo exerce uma força de atração para si, para esse lugar sem sonho, então o trabalho da análise perante tal limite passa por uma abertura, no pensamento clínico, do estado do sonhar. Assim, consideramos que a escrita que tem como ponto de partida o estado-limite está, sobretudo, implicada em resgatar a função onírica que sustenta a escuta do analista.

Quando saudamos, num tratamento, como sendo um acontecimento psíquico, o advento ou o retorno da capacidade de sonhar ... não é apenas porque vemos nisso uma oportunidade, para nosso paciente, de entrar em contato com aspectos recalcados ou clivados de sua pessoa. É porque pressentimos que essa capacidade oferece uma possibilidade de suscitar nele um outro regime de pensamento. (Pontalis, 1991a, p. 47)

Um acontecimento psíquico similar pode ter lugar em uma análise, agora do lado do analista, no tempo de sua escrita: quando se abre para ele uma possibilidade de escrever com base em uma situação em que não havia condições de trabalho psíquico, igualmente podemos saudar o advento ou o retorno da capacidade de "sonhar" de seu pensamento clínico, de sua capacidade de escuta sobre aquele processo de análise. Interpretações poderão vir a ter lugar, nesses casos, em um segundo momento, mas serão calcadas nesse primeiro movimento, que é como o de desenterrar um livro em branco, encontrar ou construir um suporte onde traços possam se inscrever.

Nesse sentido, em tais circunstâncias, as raízes da escrita psicanalítica levam-nos às margens de sua própria possibilidade. Tal como expressa o clipe-sonho relatado acima, os tempos de repetição são os de um apagamento da memória, da história e, no limite, da existência. Esse acontecimento onírico revela, de um lado, a presença de um suporte no campo transferencial para essa figuração, a partir de onde escutar (nesse sentido, o analista pôde saudar essa possibilidade do sonhar no percurso dessa análise!); de outro, o que esse sonho-clipe põe em cena é a radical realização de um desejo, o de apagamento do texto que vinha sendo escrito e também de seu suporte - o livro, a análise, de volta ao pó da terra. O trabalho da análise era então uma constante luta contra seu apagamento... (e a escrita do analista fazia parte fundamental dessa luta).

Toda psicanálise nos fala da morte infiltrada na vida. E, se o trabalho do psicanalista visa que o espaço psíquico não seja apenas uma superfície e ganhe corpo, ganhe espessura, carne, adquira uma liberdade de movimento e de jogo, isso implica que ele não pode evitar o trabalho antagonista da morte, que tem de ir a seu encontro. (Pontalis, 1977/2005, p. 261)

Ainda quanto aos sonhos, podemos reconhecer esse "trabalho da morte" - impossibilidade de adensamento do espaço psíquico - pela sua ausência. Sendo mais preciso, não propriamente em sua ausência, mas naquilo que ela indica: a falta de um suporte para a vida onírica. Pois devemos considerar que o sonho - tal como Freud (1920/2010) propõe em "Além do princípio do prazer" - não é capaz de realizar sua função antes que outra tarefa se tenha realizado; ou, nas palavras de Pontalis (1977/2005), "o processo do sonho não poderia funcionar segundo sua lógica própria enquanto o espaço - o 'sistema psíquico' - do sonho não estiver constituído como tal" (pp. 43-44).

De volta agora à nossa analogia, podemos considerar o trabalho antagônico das pulsões de morte na raiz da escrita dos estados-limite. Mas, se uma ruptura do tecido onde se inscreve o sonho pode ser comparada à ruptura da possibilidade de escuta por parte do analista, essa comparação não pode ser pensada simplesmente sob o prisma da relação dual analista-analisando; afinal, o vazio, a distância abissal que então se abre não é entre analista e analisando, mas fundamentalmente entre analista e campo psicanalítico. Podemos, nesse sentido, reconhecer no trabalho de escrita um labor antagônico aos processos de desligamento entre o próprio analista e sua escuta clínica (sustentada pelo campo psicanalítico); porém, mais radicalmente, esse antagonismo deve ser reconhecido em um trabalho permanente que se dá no seio do campo psicanalítico, desde sua origem: o trabalho de sustentar-se como um livro - seu corpo teórico - aberto à escrita.

 

Parte III - Processo de formação do analista

Por meio dos meus recursos é um outro que fala em mim
e me transforma até que eu tenha novos órgãos.
(Parente, 2007, p. 360)

Reconhecemos, então, o campo psicanalítico como um "livro aberto", escrito e reescrito permanentemente com base na clínica; sua permanente transformação permite-nos "falar legitimamente de um movimento analítico" (Pontalis, 1977/2005, p. 214).

Como ponto de partida para nossas derradeiras considerações, tomemos em conta esta constatação, que certamente não se restringe aos escritos psicanalíticos:

o que liga num único movimento a sequência das palavras de que é feito um livro é um mesmo e imperceptível desvio em relação ao uso, é a constância de uma certa extravagância. Ao entrar num cômodo, pode-se ver que alguma coisa mudou, sem que se saiba dizer o quê. Ao entrar num livro, sinto que todos os termos mudaram, sem que eu possa dizer em quê. Novidade de uso, definida por um certo e constante desvio que a princípio não sabemos explicar, o sentido do livro pertence à linguagem. (Merleau-Ponty, 2002, p. 166, grifos do autor)

O campo da linguagem serve de sustentação para que processos de desligamento possam acontecer, e no tempo desses processos, se a função de suporte da linguagem não é destruída - por meio de um enrijecimento ou apagamento -, se encontram presentes as condições pelas quais as palavras se podem ordenar de modos originais e insuspeitados, o que conduz a esse efeito apontado por Merleau-Ponty.

O tempo da composição de um texto que venha aportar novidades ao campo no qual se inscreve é, entretanto, necessariamente atravessado por tensões; tratando-se de textos psicanalíticos, as tensões que permeiam os textos são enraizadas naquelas vividas na experiência clínica. Se o terreno psicanalítico como um todo é profundamente transformado com base em experiências que se dão em seus limites, devemos nos ater ao fato de que essa transformação se assenta na situação clínica, íntima, dos analistas, no terreno de uma relação de alteridade. Em contrapartida, não devemos ignorar que o terreno psicanalítico se constitui como um "porto" para o analista, que os laços transferenciais afetivos do analista com a psicanálise, seu "setting não material", constituem parte fundamental dessa experiência.

Nesse sentido, podemos comparar os movimentos do analista em relação às fronteiras de seu campo - que se dão no próprio tempo de sua escuta clínica - aos do viajante, tal como o define o filósofo Sérgio Cardoso (1988). Reconhecemos, no analista e no viajante, laços com um território identitário que fazem com que a travessia das fronteiras impliquem nascimentos de pontos de vista.

Se [o analista, tal como] o viajante fura o horizonte da proximidade e transpõe os limites de seu mundo para fixar a atenção mais além ... é sempre pelos vãos do próprio mundo que ele penetra, à medida que surgem brechas na sua evidência, abrindo passagem na paisagem ou contornando desníveis e vazios. (p. 359)

As figuras do sedentário e do nômade, também evocadas por esse autor, podem servir aqui de contraponto. De um lado, os primeiros

chegam mesmo a riscar o espaço com grande desembaraço ... e podem percorrer toda a terra ... No entanto, nunca viajam. Pois as direções se tornam indiferentes ... e as distâncias desprezíveis, quando se está por toda parte em casa. (p. 351)

De outra parte, reconhecemos que

há também homens inquietos - curiosos ou insatisfeitos - aos quais o ponto cego do horizonte obseda, constantemente fustiga e desafia. ... Assim, dificilmente param em casa (se chegam a ter uma); e sua atração pelas fronteiras parece torná-los quase inevitavelmente viajantes. Porém, como frequentemente se desgarram pelo mundo e perdem de vista as balizas das rotas, o ponto de partida e a orientação de um caminho, devemos nos perguntar se, propriamente, viajam. Pois as direções e os sentidos também parecem tornar-se indiferentes quando dilui-se o desejo (no qual, sabemos, a prospecção da atração quase nunca se desata inteiramente de uma certa retrospecção da nostalgia) de um lugar de aconchego - se não de um bom porto, de uma estação hospitaleira −, ou quando, no percurso, se ignoram os sinais do contínuo e se desdenha no mundo qualquer identidade. (pp. 351-352)

A lida com o território estrangeiro, com o outro, por uma ou outra dessas vias contrapõe-se ao trabalho psicanalítico, na medida em que podemos situar o analista em uma posição que não dilui a alteridade, nem se agarrando e nem se desgarrando de seu território de origem. Ao contrário, análises, assim como viagens, são "sempre experiências de estranhamento ... [que carreiam] sempre desarranjos internos ao próprio território do viajante [ou do analista], advindos das fissuras e fendas que permeiam sua identidade" (p. 359).

Podemos então, em uma primeira consideração embasada nessa comparação, situar a escrita psicanalítica impulsionada pelos estados-limite como sendo um retorno do analista - após uma incursão pelos terrenos estrangeiros de uma análise - ao seu território de origem, quando ele aí aporta, necessariamente modificado pela experiência da alteridade; por meio da escrita, o analista leva ao campo psicanalítico as novidades que ressoam o contato com o estrangeiro; então, em seu texto se pode reconhecer que "algo mudou", tal como indicado por Merleau-Ponty, quando as palavras se rearranjaram de um modo original... Mas, se ficássemos somente com essa perspectiva, deixaríamos de considerar algo essencial quanto a esse tema. Levaríamos em conta tão somente - o que já não é pouco - as transformações vividas pelo analista no âmbito da relação com o analisando no campo transferencial; a escrita, então, seria tomada apenas como um canal de transmissão dessa experiência e o texto, um reflexo.

No entanto, sublinhamos que, no próprio tempo em que escreve, há labor e transformação do analista, visto que esse momento é também de lida com a alteridade. Quer dizer, a própria empreitada da escrita é, em si mesma, entrada em um território estranho-familiar. Quando o analista se põe a escrever impulsionado por um estado-limite vivido no tempo de um processo de análise, ele experimenta algo como um estado-limite também no tempo em que escreve; mas a angústia que aí é suscitada pode ser ligada ao movimento de um pensamento clínico, já que o analista encontra, na linguagem e no campo teórico psicanalítico, espaço para novas articulações e pontos de vista.

Se a experiência dos estados-limite promove, entre o pensamento e o corpo do analista, uma desconexão que o aparta de sua escuta, então devemos considerar sua escrita como reconexão; nesse sentido, a escrita dos estados-limite é vivida "de forma visceral ... [e] de modo algum se distancia do corpo que a imprime" (Parente, 2007, p. 361). Tomamos de empréstimo este trecho, que nos parece expressar com clareza essa ideia:

A seiva que alimenta a escrita psicanalítica e o processo analítico tem a mesma matriz orgânica. Os rastros do inconsciente e as marcas corpóreas cravadas pelos caminhos pulsionais percorridos num trabalho de análise inscrevem uma sintaxe psíquica que se revela sempre de forma desconcertante e imprevisível numa nova sessão. O mesmo se dá com a escrita: a estrutura da língua está fincada no nosso ser, mas o ato de escrever surpreende e inova-se infinitamente. (p. 361)

Nesse sentido, para finalizar, desejamos retomar a analogia entre a posição do analista e a do viajante, mas agora para pensar a escrita psicanalítica como viagem, como percurso que implica, no analista, um movimento dialético de identidade e diferenciação. Por um lado, somente somos capazes de uma escrita psicanalítica com base em um pertencimento que nos põe em interlocução com o campo psicanalítico. Ou mesmo, mais radicalmente, "talvez só se escreva a partir de uma afasia secreta, para superá-la, tanto quanto para manifestá-la" (Pontalis, 1991a, p. 127); ou seja, uma comunidade linguística dá condições de expressão e autorreconhecimento e, nesse sentido, atrelado ao ato de escrever, podemos vislumbrar um movimento de recomposição ou religação identitária.

Já no vértice da diferenciação, o tempo da escrita revela que as palavras têm "o extraordinário poder de me atrair para fora de meus pensamentos, abrem em meu universo privado fissuras por onde irrompem outros pensamentos" (Merleau-Ponty, 1991, p. 266). Se o campo da alteridade irrompe no movimento da escrita, o analista, ao escrever, se diferencia do campo em que se encontra. Tal como o viajante em relação aos caminhos estrangeiros, é, porém, nos vãos de sua identidade que o outro se pode revelar:

Assim, nesse sentido de estranheza, de "alheamento" e distância, seu mundo não se estreita, se abre; não se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação (sempre, em alguma medida, marcada pela perda e pela morte) que lhe impõem as alterações do tempo. É desta natureza o estranhamento das viagens: não é nunca relativo a um outro, mas sempre ao próprio viajante; afasta-o de si mesmo, deflagra-se na extensão circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio. (Cardoso, p. 359)

Compreendemos por ela (pela experiência da viagem) que o "estrangeiro" está sempre já delineado - latente e invisível - nas brechas de nossa identidade, na trilha aberta por nossa própria indeterminação. Não o podemos apanhar fora, só o tocamos dentro (de nós mesmos), pagando o preço da nossa própria transformação (p. 360). Ao considerarmos essa dinâmica de identificação/diferenciação no tempo da escrita do psicanalista, podemos deixar aberta a ideia de que nesse movimento - que trata de lidar com os limites impostos por seu trabalho, que busca criar a partir da alteridade - se dá parte de seu trabalho de formação clínica, onde se pode reconhecer uma espécie de depuração de um estilo pessoal.

 

Referências

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Recebido em: 2/5/2017
Aceito em: 7/5/2017

 

 

1 Este artigo é parte da dissertação de mestrado "A escrita dos estados-limite como um recurso de ampliação da escuta psicanalítica" (Daló, 2012), defendida no Instituto de Psicologia da USP. A pesquisa, realizada pelo primeiro autor sob orientação da segunda autora, se vincula ao Laboratório de Psicanálise e Análise do Discurso, LAPSI-PSA.
2 O conceito de "representação de coisa" (Sachvorstellung ou Dingvorstellung) nos remete ao texto "Sobre a concepção das afasias" (Freud, 1891/2014). Aí o autor propõe o termo "representação de objeto" (Objektvorstellung) como um complexo associativo aberto que, ao lado do conceito de "representação de palavra" (Wortvorstellung), forma a base da concepção freudiana de memória, na linha de uma teoria da linguagem que se funda na filosofia associacionista de J. S. Mill (Loffredo, 1999, 2004 e 2017). Em "Projeto de uma psicologia" (Freud, 1950[1895]/2003), são apresentados três tipos de representações: de palavra, de objeto e de coisa.
3 Consideremos que as representações de palavras também podem funcionar segundo a lógica dos processos primários, mas "apenas quando as representações de palavras que se acham nos restos diurnos são resíduos frescos, reais, de percepções, e não expressão de pensamentos, é que são tratadas como representações de coisas e submetidas às influências da condensação e do deslocamento" (Freud, 1917/2010, pp. 159-160).
4 Lemos essa analogia com a inversão aqui proposta na epígrafe escolhida para este artigo: "como um sonho, um texto, no tempo em que ele se escreve, não nos diz aonde vai" (Pontalis, 1991b, p. 47).
5 A dissertação de mestrado que deu origem a este artigo defende, justamente, essa tese.
6 Esclarecemos que essa análise foi conduzida pelo primeiro autor deste trabalho.
7 O vídeo pode ser visto no YouTube pelo link: http://www.youtube.com/watch?v=x5nNfbTS6N4. Trata-se do clipe da música "Bacherolette", de Björk.
8 Usamos o termo estado-limite tal como proposto por Pontalis (1977/2005). Para ele, a terminologia "estado-limite" em vez de caso-limite implica não apenas uma mera convenção, mas opera um significativo deslocamento na questão dos limites, da psicopatologia do analisando para o campo transferencial: sobrevêm os limites para a escuta analítica, e então se trata de analisar nos limites do audível e, para tanto, encontrar (ou criar) recursos.

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