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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

A ESCRITA PSICANALÍTICA E A PSICANÁLISE DA ESCRITA

 

Letra e escrita na obra de Jacques Lacan1

 

Letter and writing in the work of Jacques Lacan

 

La letra y la escritura en la obra de Jacques Lacan

 

La lettre et l'écriture dans l'œuvre de Jacques Lacan

 

 

Guilherme C. Oliveira SilvaI; Nelson da Silva JuniorII

IPsicanalista, graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) com intercâmbio acadêmico na Université Rennes II. Atualmente, faz mestrado no Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP (PST-IPUSP), pesquisando o conceito de letra na obra de Jacques Lacan (bolsa CNPQ), com orientação do professor doutor Nelson da Silva Junior, São Paulo. guilhermoliveira03@gmail.com
IIPsicanalista, doutor pela Universidade Paris VII, professor livre docente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da usp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, São Paulo. nesj@usp.br

 

 


RESUMO

Os autores apresentam a letra na obra do psicanalista francês Jacques Lacan como conceito que trata de uma leitura e de uma escrita do inconsciente. Para tanto, faremos uma apresentação do conceito no seminário 9 L'identification (Lacan, 1961-1962), particularmente nas lições de 6/12/1961, 13/12/1961, 20/12/1961 e 10/1/1962. Com base na relação entre traço e letra, signo e significante esperamos demonstrar uma diferença no entendimento do conceito comparativamente ao texto L'instance de la lettre, de 1957, quando letra surge pela primeira vez formalizada na obra do autor e voltada principalmente para a leitura do inconsciente.

Palavras-chave: letra, escrita, signo, significante


ABSTRACT

The authors focus on the notion of letter in the work of the French psychoanalyst Jacques Lacan. In other words, letter would refer to both a reading and a writing of the unconscious. Therefore, we shall present this concept as described in the Seminar 9, L'identification (Lacan, 1961-1962), particularly in the lectures on December, 6th, 13th, and 20th, 1961, and on January, 10th, 1962. Our purpose is to demonstrate a different way of understanding this concept, by starting from the relation between trace and letter, sign and signifier. As such, our way is different than the one of The instance of the letter, originally delivered in 1957, in which letter was first formalized in Lacan's work and was especially focused on the reading of the unconscious.

Keywords: letter, writing, sign, signifier


RESUMEN

Los autores enfocan la noción de letra en la obra del psicoanalista francés Jacques Lacan como un concepto que se refiere a una lectura y una escritura del inconsciente. Presentan este concepto, descrito en el seminario 9, L'identification (Lacan, 1961-1962), particularmente, en las lecciones de 6/12/1961, 13/12/1961, 20/12/1961 y 10/1/1962. A partir de la relación entre trazo y letra, signo y significante proponen una comprensión diferente del concepto de letra tal como fue formulado por primera vez en la obra de Lacan, en el texto de 1957 L'instance de la lettre, en el que este término se refiere principalmente a la lectura del inconsciente.

Palabras clave: letra, escritura, signo, significante


RÉSUMÉ

Notre article s'occupera de la lettre chez le psychanalyste Jacques Lacan, comme un concept qui traite d'une lecture et d'une écriture de l'inconscient. Nous ferons une présentation du concept dans le séminaire 9, L'identification (Lacan, 1961-1962), en particulier les leçons de 6/12/1961, 13/12/1961, 20/12/1961 et 10/1/1962. À partir du rapport entre le trait et la lettre, le signe et le signifiant, on espère démontrer une différence dans la compréhension du concept vis-à-vis du texte L'instance de la lettre de 1957, où la lettre apparait pour la première fois formalisée et dirigée principalement à la lecture de l'inconscient.

Mots-clés: lettre, l'écriture, signe, signifiant


 

 

Em 20 de dezembro de 1961, Lacan retoma a carta (lettre) de Le séminaire sur la lettre volée (Lacan, 1955/2001), com base em sua estrutura ficcional: "Fábula, sem dúvida, mas que trazia a mais profunda verdade na sua estrutura de ficção" (Lacan, 1961-1962), e acrescenta um comentário sobre a formalização do conceito em L'instance de la lettre (Lacan, 1957/2001). Visa, com isso, tratar da novidade que o seminário 9 traria sobre o conceito, ao explorar o traço unário:

Quando eu falei da instância da letra no inconsciente alguns anos depois, eu coloquei nela - com a metáfora e a metonímia - um acento muito mais preciso. Nós chegamos agora, nisso por onde iniciamos com a função do traço unário, a algo que vai nos permitir ir muito mais longe.

Digo que só pode haver definição do nome próprio na medida em que nós percebamos a relação da e//missão nomeadora com algo que, na sua natureza radical, é da ordem da letra. (Lacan, 20/12/1961)

O que o traço unário permitiria avançar no conceito de letra? Eis a questão geral que nos servirá de guia neste trabalho. Exploraremos, por meio dessas quatro lições do seminário L'identification, os desdobramentos percorridos pelo traço, naquilo em que ele permite ler, e posteriormente escrever, sobre a letra. Nossa divisão conceitual entre uma leitura da letra e uma escrita (Silva, 2017) encontrará fundamentações importantes nesse estudo, principalmente no que tange à diferença entre signo e significante. Do apagamento da coisa e de sua leitura, eis que na história humana surgirá qualquer marca a partir da qual algo poderá ser escrito como significante. Deixaremos por ora esses pontos em aberto. Voltaremos a isso no andar do texto. Por ora, será importante uma breve explicação sobre o conceito de letra.

 

Instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud

No seu texto de 1957, Lacan (1957/2001) formaliza o conceito de letra, sintetizando várias ideias que até então apareciam aparentemente separadas em sua obra. Sempre explorando as ambiguidades homofônicas tão próprias à língua francesa, com a letra (la lettre), Lacan falará do ser (l'être), com base em uma ordem de ser determinada pela linguagem: o inconsciente. Ordem de ser composta de significantes, unidades sonoras sem nenhuma relação direta com uma significação, mas estruturada segundo uma linguagem. A letra é conceitualizada, nesse momento, como leitura do significante, como estrutura localizada do significante (Lacan, 1957/2001). Ideia que encontramos na citação a seguir, na qual Lacan retoma algumas figuras emblemáticas evocadas por Freud na análise de sonhos:

Tais quais as figuras não naturais do barco sobre o teto ou do homem com cabeça de vírgula, expressamente evocadas por Freud, as imagens dos sonhos devem ser retidas pelo seu valor de significante; ou seja, por aquilo que elas permitem soletrar sobre o "provérbio" proposto pela charada do sonho. Essa estrutura de linguagem que torna possível a operação da leitura está no princípio da significância do sonho, da Traumdeutung. (Lacan, 1957/2001, p. 507)

São as imagens do sonho que permitem ler o inconsciente - eis como poderíamos resumir, grosso modo, essa citação. E o permitem por serem elas mesmas estruturadas num enquadre simbólico composto por significantes. A letra aqui seria como um elemento criptográfico que permite desvendar a língua oculta do inconsciente, porque ela, letra, estrutura-se segundo uma lei de linguagem que seria a mesma do inconsciente, para Jacques Lacan.

No seminário 9, quatro anos depois, portanto, haveria uma sutil mudança de enfoque no conceito. Para além de uma leitura do inconsciente, o psicanalista falará de uma escrita do inconsciente, com base na letra. Para entendermos esse movimento, será importante prosseguirmos com uma análise do conceito de traço unário, muito trabalhado no seminário 9 em paralelo à letra.

 

Traço unário, automatismo de repetição e identificação

O campo do inconsciente seria, para Jacques Lacan, o campo do traço unário, naquilo em que o traço unário traz como suporte da diferença. Como ele dirá (Lacan, 6/12/1961), traço com base no qual cada ente consegue se dizer um. Trata-se de um ponto que à primeira vista pode soar muito obscuro, mas que de forma geral tem a ver com o que se pode chamar de singular na psicanálise. Ora, na escuta clínica há alguma coisa que exige uma lógica que leve ao traço singular do sintoma do sujeito. Nas inibições, na angústia, algo do sintoma fala (Lacan, 1962-63/2004), algo que tem relação com a verdade de cada um enquanto sujeito (Lacan, 1956/2001). Lacan tentará, no seminário 9, explorar esse campo pela via da serialidade significante, naquilo em que na série significante se fala sobre o sujeito: alienado, mas ao mesmo tempo separado do Outro.

Será no deslocar significante, como ordem não natural e simbólica, que Lacan encontrará o traço da diferença unária. O sujeito como aquilo que aparece entre dois significantes (Lacan, 1957/2001) é o "guia" desse processo, não no sentido de dominá-lo com base em uma existência a priori, mas ao ser determinado pela cadeia mesma do significante. Não que ele saiba do que se trata, mas ao falar sobre suas inibições e sintoma alguma coisa disso que ele não sabe poderá aparecer. Nesse sentido, "diferença unária" tem a ver com o não saber do sujeito. Ora, unário é aquilo que pertence a um mesmo conjunto em que as unidades desse conjunto se definem por suas oposições mútuas, pela diferença, por aquilo que não são em relação às outras. A origem saussuriana desta desontologização radical dos significantes é clara: para Saussure, não apenas os fonemas, mas todos os elementos de uma língua se definem entre si pela diferença que marcam em relação aos outros. A própria língua é, para Saussure, um sistema solidário e arbitrário de puras diferenças (Saussure, 1995, p. 166).

A diferença introduzida no traço unário é também uma diferença concebível. Eis aqui um ponto importante, que merecerá uma breve discussão. Trata-se do que, grosso modo, se poderia definir como "abstração": não é no traço, em si mesmo, que se encontra a diferença, mas em seu alhures, em sua "outra cena", se poderia dizer. Na pré-história humana, riscos encontrados desenhados pelos homens pareciam contar algo, sem ainda o uso de letras e muitas vezes sem mesmo o recurso figurativo do desenho. Um pequeno traço marcava algo, depois outro, depois outro e assim sucessivamente. Não era pela diferença na forma dos traços entre si que se poderia marcar a existência de alguma coisa, como no traçado de desenhos, mas na própria repetição dos traços, na sequência e sucessão dos riscos feitos. Uma série de riscos num pedaço de fêmur poderia assim querer dizer: "Um dia matei um animal", "outro dia matei outro animal" etc. Esses traços no tempo permitiriam uma diferença no tempo. Não ainda um hoje, um ontem e um amanhã, mas simplesmente escansões, que retiravam o homem de seu presente eterno (Lacan, 6/12/1961).

Com a série de traços, não se tratava de uma imagem do homem com uma lança na caça, mas da abstração de traços que por si mesmos não diriam nada senão um alhures do traço, uma outra cena (a cena da caça, por exemplo). Pensar a diferença por essa via retira a questão de certa "atomização" do traço, como se este agisse enquanto unidade atômica da linguagem (Lacan, 6/12/1961). Trata-se de uma diferença que se concebe na série de traços, indefinível, mas restrita, particular entre cada traço. E é essa série iniciada pela diferença que tem a ver com o significante.

Diferença e repetição, eis que encontramos um conceito, já comentado por nós em outros momentos (Silva, 2017), ligado à economia conceitual da letra. Trata-se do automatismo de repetição, que introduz uma questão sobre o ser em L'instance de la lettre e que no seminário 9 é apresentado identificado à série unária. Se a diferença é concebível na repetição, talvez não seja à toa um além do princípio do prazer que apresente algo a mais que uma simples homeostase no que tange ao funcionamento psíquico (Freud, 1917-1920/2014). O único do traço é concebido na e pela repetição, e não na simples descarga de prazer, que eliminaria as diferenças. Tal compreensão da unicidade como dependente da repetição exigirá uma profunda releitura desse conceito em psicanálise, o que será feito em seu seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (Lacan, 1964/1973). Mas o comentário desta releitura exigiria outro trabalho. Retomemos nosso fio de Ariadne.

Para terminarmos esse tópico sobre a série e o traço, cabe um pequeno comentário sobre identificação e traço unário. Lacan recorrerá à segunda forma de identificação proposta por Freud (Freud, 1920-1923/2011). Trata-se da identificação tida como regressiva, reduzida a um traço do objeto amado perdido. Ela traz à tona não simplesmente uma correspondência biunívoca entre uma coisa e outra, mas uma separação, fundada em perda e deslocamento. Um bom exemplo disso é o jogo do fort-da do neto de Freud, em que a aparição e a desaparição do carretel são identificadas à aparição e à desaparição da mãe, segundo a perda do objeto que permite ao sujeito encadear-se num jogo repetitivo, para além do que se esperaria segundo o princípio do prazer (Lacan, 6/12/1961).

 

Do apagamento da coisa à repetição significante

Lacan (1961-1962), visando falar da letra, discutirá sobre o ideograma. Tratá-lo-á como algo que tem relação com a imagem, mas que se torna ideograma à medida que perde, que apaga cada vez mais, seu caráter de imagem. Vai-se tornando traço, e nada mais da origem, da coisa à qual se referia, é reconhecível nele. Como os pensamentos inconscientes que são o objeto da leitura e deciframento dos sonhos para Freud, trata-se de uma organização simbólica "abstrata", baseada numa combinatória significante, cuja relação com a coisa é apagada. Nesse apagamento da coisa, Lacan usará o termo effaçons, que se refere aos diversos modos que a coisa assumirá então, ao ser apagada (façons), e ao próprio apagamento (effacer). A relação à coisa é apagada e ficam os traços que são da ordem do traço unário e da marca.

Assim, um signo que representava a cabeça de boi vai, com o passar do tempo, tornar-se uma composição de traços que não manterá mais qualquer relação com o boi, podendo, num segundo momento, se tornar uma letra (Lacan, 10/1/1962). Encontramos esse apagamento da coisa no que falamos sobre os riscos que marcam uma escansão temporal de acontecimentos. Nos próprios riscos não há nada que se refira à coisa, é em seu além que algo diferente dos riscos se concebe. Assim, o funcionamento dos traços por simples escansões temporais é diferente daquele de um símbolo representando a cabeça de um boi, com funcionamento figurativo. De um lado, temos algo do traço unário que funciona como o significante; de outro, algo do signo, representando uma coisa a alguém, e em que, mesmo que já haja um apagamento na representação, esta coisa, ou melhor, algo de sua forma, é reproduzida.

Um significante se distingue de um signo primeiramente nisso que eu tentei lhes fazer sentir: que os significantes não manifestam primeiramente senão a presença da diferença enquanto tal, nada além disso. A primeira coisa, portanto, que ele implica é: que a relação do signo à coisa seja apagada. (Lacan, 6/12/1961)

Um significante não representa uma coisa a alguém. Um som diferencial numa língua não pode ser tomado como uma coisa que é endereçada a uma pessoa. Um significante representa um sujeito para outro significante (Lacan, 1957/2001). A relação à coisa já está apagada nos signos dos significantes, restando somente a relação dos signos entre si: as letras de um alfabeto. Um símbolo que representa uma cabeça de boi já é diferente da própria cabeça de boi. Pela imagem, entretanto, mantém ainda uma relação com essa "coisa", e só encontraremos um funcionamento puramente diferencial, próprio ao significante, quando essa relação for completamente apagada.

Caberá explorar esse processo de apagamento, a partir do qual restam os traços. Se a relação entre signo e coisa é apagada, qual é a relação entre o traço que resta e a coisa, inversamente? Leiamos a próxima citação:

O que há de mais destruído, de mais apagado que um objeto? Se é do objeto que o traço surge, é algo do objeto que o traço retém: justamente sua unicidade. O apagamento, a destruição absoluta: de todas as suas outras emergências, de todos os seus outros prolongamentos, de todos os seus outros apêndices, de tudo o que pode haver de ramificado, de palpitante. (Lacan, 10/1/1962)

Ora, por mais que se trate de algo que já fora apagado no traço, resta seu caráter unário, sua unicidade que tem a ver com o real do objeto. Uma pegada no deserto é única naquilo em que apresenta da coisa perdida: do corpo que partiu. Mas esse traço na areia permite somente a leitura do que foi perdido. Ainda não há uma escrita possível, porque o pas desse passo não se tornou um não (pas)2.

Eis que nesse ponto vemos abrir-se uma nova questão: que relação poderia existir entre a leitura de um traço e a escrita? Lacan trabalhará nesse sentido tentando encontrar uma relação entre a escrita da fala, dos sons, e a leitura dos signos. Leiamos a próxima citação, que nos ajudará a melhor tangenciar o desenvolvimento dessa questão para o psicanalista francês:

É um dos traços por onde nós podemos ver que isso do que se trata, concernindo a uma das raízes da estrutura na qual se constitui a linguagem, é esse algo que se chama primeiramente "leitura dos signos", na medida em que eles já aparecem antes de qualquer uso de escrita ... de um modo que parece antecipar, se a coisa deve ser admitida, de mais ou menos um milênio o uso dos mesmos signos nos alfabetos que são os mais comuns, que são os ancestrais do nosso alfabeto, alfabetos latino, etrusco etc., os quais se encontram, pela mais extraordinária imitação da história, sob uma forma idêntica nas marcas em recipientes pré-dinásticos do antigo Egito. (Lacan, 10/1/1962)

A leitura de signos seria, portanto, anterior à escrita. Como no comentado sobre um símbolo representar uma cabeça de boi, ao vê-lo teríamos uma leitura de que se trataria desse animal. Com o tempo, esse signo passaria a ser associado a um som que, por meio dos equívocos próprios ao desenvolvimento de uma língua (Lacan, 1972/2005), se associaria a outros signos sem relação alguma com o boi, fazendo com que o próprio signo da cabeça de boi não tivesse mais nenhuma relação com o animal (Lacan, 10/1/1962). Eis um pouco do percurso da letra álef, seus desdobramentos até chegar ao nosso A latino (Février, 1959).

Essa última citação também é importante naquilo em que permite de uma separação entre escrito e escrita. Não se trata de uma questão que Lacan desenvolve no seminário 9, mas que é por ele trabalhada no seminário 20, e desenvolvida em outro trabalho no que tange à diferença de leitura e escrita da letra (Silva, 2017). Para o psicanalista, em "La fonction de l'écrit" (Lacan, 1972-1973/1975), a letra é algo do mercado, que já existia como escrito, como marca escrita, antes mesmo de ser usada para escrever o significante, para elaborá-lo. Esse ponto é importante por marcar uma diferença clara em relação à conceitualização feita em L'instance de la lettre. Ali, letra é formalizada enquanto estrutura localizada do significante (Lacan, 1957/2001). Ao falar de um uso do escrito para escrever o significante, saímos de uma causalidade na qual letra é consequência do significante, ligada à sua estrutura localizada, para uma causalidade na qual seu uso não é mais consequência do significante, mas empréstimo arbitrário do escrito como forma de elaborar a fala. Resumidamente, um uso, e não uma consequência; uma escrita, e não uma leitura (Silva, 2017).

Embora seja algo mais detidamente tratado no seminário 20, nessas lições do seminário 9, encontramos uma diferença entre leitura do signo e escrita do significante. Esse tema é próximo àquele tratado no seminário 20 e, para entendermos seu desenvolvimento, será importante partirmos da próxima citação:

É, portanto, enquanto o sujeito - a propósito de algo que é marca, que é signo - já lê antes que se trate de signos da escrita, que ele percebe que signos podem trazer, ocasionalmente, pedaços diversamente reduzidos, divididos de sua modulação falante e que, invertendo sua função, pode ser admitido, ser considerado, em seguida, como tal o "suporte fonético", como se diz. (Lacan, 10/1/1962)

Esse trecho resume a transformação do signo em letra, segundo suas diversas effaçons. Do apagamento da coisa, surge o traço e a leitura. Ou seja, podemos dizer que o traço unário tem a ver com um nada posto no lugar da coisa, uma anulação e surgimento de uma marca no real. Esse primeiro apagamento não basta, porém, para que se constitua um sistema simbólico segundo a estrutura da linguagem. Será necessário um segundo momento, em que os símbolos surgidos desse apagamento passem a ser usados para conotar os sons da fala, marcar a linguagem. A letra apareceria justamente aí, onde o traço lido é usado para escrever o significante, como os fonemas.

Lacan (10/1/1962) dirá a esse respeito que é como se a primeira escrita (os primeiros signos) aguardasse para ser fonetizada, e que é só à medida que é fonetizada que passará, paradoxalmente, a funcionar como escrita. Ora, ao se associarem signos escritos aos sons, segundo a equivocidade própria aos acontecimentos dessa associação, a letra passará a não ter mais nenhuma relação com a coisa (álef não representará mais, mesmo na sua forma, uma cabeça de boi), não haverá mais nenhum traço da coisa, e somente as marcas diferenciais próprias ao significante.

É na letra, portanto, que se encontra a essência do significante, que então passa a se distinguir do signo. Pois é ela que apagará a relação de algo que é representado para alguém, fazendo surgir não mais uma questão sobre a "pessoa" para quem algo fosse representado, mas sobre o sujeito. Eis mais um ponto importante que nos fará avançar neste trabalho. Depois de discorrer sobre a serialidade significante, o traço unário e o apagamento - em resumo, a transformação do signo em letra -, uma questão sobre o sujeito dessa operação se põe. Para respondê-la, Lacan primeiro retomará o texto L'instance de la lettre, se perguntando se o efeito de sujeito seria metonímico ou metafórico (Lacan, 20/12/1961). Ora, a formalização do conceito de letra nesse texto deve muito a tais conceitos linguísticos, juntamente com a noção de combinatória matemática. Não satisfeito, porém, ele se perguntará se não haveria algo de articulável antes mesmo desses efeitos metafóricos e metonímicos.

 

Lugar do sujeito

A letra cria o que o traço já apontava do significante. Encontramos aqui a escrita de uma ordem que ex-siste ao real com base na qual nos questionamos sobre o sujeito. O traço unário seria o que há de articulável antes dos efeitos metafóricos e metonímicos da letra. Nesse sentido, haveria algo do sujeito já no traço, algo ligado à repetição do um.

Da série unária que se inicia com o apagamento da coisa, entramos no campo da repetição. Tratar-se-á de traços qualitativamente iguais que conotam a diferença em relação à repetição. Não será de um eterno retorno sobre a figura, sobre a "coisa", que se tratará, mas da repetição de significantes, com base na qual a diferença é concebida:

eu pontuei qual era a sua função, aquela que assegura à repetição justamente isso: que por essa "função" - somente por ela - essa repetição escapa à identidade de seu eterno retorno sobre a figura: do caçador riscando o número - de quê? - de traços por onde ele alcança a sua presa, ou do divino Marquês, que nos mostra que, mesmo no pico do seu desejo, seus "golpes", ele tem o cuidado de contá-los, e que eis aí uma dimensão essencial enquanto ela nunca abandona a necessidade que ela implica, em quase nenhuma de nossas funções. (Lacan, 13/12/1961)

Para além do acontecimento, o caçador e o Marquês de Sade prestariam atenção em algo que podemos chamar de "abstrato": uma ordenação fora da experiência. Traços que se repetem e que podem ser contados. Essa ordem teria a ver com a estrutura da linguagem e com o sujeito que é apanhado aí nessa rede, e cuja existência, enquanto sujeito do inconsciente, é inseparável da estrutura da linguagem.

Retomemos aqui o que já comentamos sobre o fort-da e o além do princípio do prazer. Dois sons articulam-se diante da ausência da mãe: fort e da. Enquanto sons, fazem parte de uma língua, cuja estrutura existe para além da relação direta da criança com a mãe que partiu. A criança ali está sujeita não só à ausência da mãe, mas a essa estrutura de linguagem que organiza o acontecimento "abstratamente". Nesse sentido, seu lugar de sujeito se dá segundo essa determinação, atualizada a cada vez que ela repete esses sons jogando e puxando o carretel (Lacan, 6/12/1961).

Haveria um buraco, um buraco de "nada", separando a coisa (o "acontecimento") da experiência simbólica humana. Daí o termo "apagamento" (effaçons) usado por Lacan, que sustenta o campo simbólico como tal, fundado no negativo da naturalidade: pois sempre se tratará de "pensamentos", de algo que se pode "conceber", e que remete à fantasia.

Ora, sabemos como esse buraco de "nada" é importante no que tange à formação do desejo (Lacan, 1958-1959/2013) e à separação do Outro (Lacan, 1964/1973). Não é à toa que Lacan o trabalhará ao falar do traço unário e da repetição. Esse buraco que aponta, todavia, para a existência de um sujeito por si só não singulariza esse mesmo sujeito. É certo que o localize como algo existindo entre dois significantes, separado do "eu" da pessoa em questão. Mas, sozinho, esse lugar vazio não o singulariza. Caberia então a questão: como Lacan trabalhará o lugar do singular no seminário 9? Que conceito o ajudará a compor esse raciocínio sobre o um e o unário, enquanto rede simbólica e enquanto lugar de um sujeito? A resposta será a função de nomeação.

 

Nomeação

Primeiramente, Lacan traçará um paralelo entre a função de nomeação e a função da escrita. O traço que se escreve com o apagamento da coisa a nomeia segundo algo que ex-siste a ela, já que se refere ao traço unário. Além disso, as letras têm um nome, cada qual muitas vezes não significando nada, tendo sido emprestado de outras línguas.

Eu gostaria, de modo introdutivo, de lhes sugerir isso, é que se nós devemos considerar que o inconsciente é o lugar do sujeito onde isso fala, nós iremos agora aproximar esse ponto em que nós podemos dizer que algo, à revelia do sujeito, é profundamente remodelado pelos efeitos de retroação do significante implicado na fala. É à medida que - e pela menor de suas falas - o sujeito fala, que ele não pode senão, sempre uma vez mais, se nomear sem o saber, e sem saber com qual nome. (Lacan, 10/1/1962)

A nomeação se dá à revelia do sujeito, no ato de enunciação. Pois se refere à ordem inaugurada com o traço unário, ordem não natural de ex-sistência. O que haveria, porém, de especial num nome não seria exatamente uma ligação à estrutura de linguagem, que tem a ver com a fonética significante, escrita pela letra. Mas uma ligação ao traço, à forma escrita que não depende da fala. Ou seja, algo da ordem diferencial que aparece com o apagamento da coisa.

Como dissemos atrás, o traço unário permitiria ler algo do real: o Um da coisa apagada, sua singularidade em relação às outras. Quando na história humana surge a escrita - que transforma esse traço em letra, referente a uma fonética -, algo muda. Surge um sistema de linguagem, a escrita do significante.

Lacan insistirá, entretanto, em que, ao falar, o sujeito resgataria isso que tem a ver com o real do traço, que com o advento da escrita passou a ficar restrito ao nome próprio. O importante na nomeação não seria exatamente o "som" do nome - embora ele também o discuta comentando um texto de M. Gardinier -, e sim seu escrito, sua forma escrita, quase como um "ideograma".

Esse ponto é muito complexo nessas lições do seminário L'identification. Referir a nomeação ao real, e não ao simbólico, é dar um lugar ao sujeito quase que "fora" da estrutura significante. Fora da própria fala, algo da escrita que aparece ao falar, na enunciação. O um unário teria a ver com a singularidade que o traço "herda" da coisa. E, ao mesmo tempo, trata-se da cadeia significante, das voltas do significante em torno disso que seria real.

Como hipótese para entender esses desenvolvimentos de Jacques Lacan, aproximaríamos o que é real na nomeação do buraco traumático em torno do que os significantes girariam, naquilo em que aparece como Um, real e traumático (Silva Junior e Gaspard, 2015). Nesse sentido, o automatismo de repetição, por mais que se ligue à série simbólica, trará também algo do real, mais bem trabalhado por Lacan no seminário 11 (Lacan, 1964/1973), por meio do conceito de tuché.

Deixamos esse ponto como hipótese por não ser possível avançar mais que isso no presente trabalho. Caberá, agora, sintetizarmos o que discutimos à guisa de conclusão.

 

Conclusão

A diferença principal no que tange à letra refere-se à escrita: em L'instance de la lettre, por mais que se pudesse supor uma operação de escrita na letra, o conceito foi definido como estrutura localizada do significante. É um conceito puramente simbólico, que em sua literalidade permite ler o significante. No seminário 9, para além da leitura, Lacan falará da escrita. A leitura até certo momento ficará restrita ao traço unário: algo que se lê como signo. Com a escrita, esses signos servirão para escrever os significantes, segundo uma fonética. A letra continuará a permitir uma leitura do significante, enquanto estrutura localizada; mas o enfoque será dado à escrita, a partir da leitura do traço unário.

O próximo passo desta pesquisa seria aquele de uma busca dessa mudança, por meio dos seminários. Partindo do seminário 5 (seminário sequente ao texto L'instance de la lettre), seria importante analisar os trajetos e desvios da letra até o seminário 9, atentos também ao termo effaçons, importante nessa mudança. Trata-se de um outro trabalho, em que esperamos avançar, e futuramente publicar.

Com essas questões desenvolvidas e abertas encerramos este artigo, visando prosseguir na discussão, para entender os desdobramentos da letra na obra lacaniana.

 

Referências

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Recebido em: 30/4/2017
Aceito em: 16/5/2017

 

 

1 Tradução livre das citações de Lacan pelos autores.
2 Em francês, pas significa passo e não. Lacan se servirá dessa homofonia para criar um jogo com essas letras, indicando a relação entre a leitura de um traço e sua escrita (Lacan, 6/12/1961).

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