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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo jun. 2017

 

TEMAS LIVRES

 

Tricotilomania na análise de uma criança1

 

Trichotillomania in the psychoanalysis of a child

 

Tricotilomanía en el análisis de un niña

 

Trichotillomanie dans l'analyse d'un enfant

 

 

Josefa Maria Dias da Silva Fernandes

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, São José do Rio Preto. josefadiassf@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora, mobilizada pelo processo analítico vivido com Laura, uma criança que praticava tricotilomania desde tenra idade, apresenta algumas vinhetas clínicas. O diálogo analítico possibilita, gradativamente, a criação e restauração da subjetividade por meio da representação simbólica do que estava inominado. Contribuições de autores psicanalíticos iluminam as conjecturas sobre a experiência emocional vivida pela dupla analista-analisando, ressaltando a importância fundamental, para o trabalho do analista no aqui e agora da sessão, do contato com o seu mundo interno e o do paciente, contato em que se conjugam o sentir e o pensar.

Palavras-chave: tricotilomania, diálogo analítico, experiência emocional, simbolização, subjetividade


ABSTRACT

The author presents some clinical vignettes after being touched by the psychoanalytic experience with a patient: a child with trichotillomania from early age. The dialogue gradually enables subjectivity to be created and restored by using the symbolic representation of what was innominate. Contributions from psychoanalytic authors enlighten the conjectures about the emotions the psychoanalytic pair - analyst and analysand - have experienced. The author emphasizes that it is vital for the psychoanalyst's work in the session his contact with both his patient's and his own inner world. In this contact, feeling and thinking are combined.

Keywords: trichotillomania, psychoanalytic dialogue, emotional experience, symbolization, subjectivity


RESUMEN

La autora, movilizada por el proceso analítico vivido por Laura, una niña que practicaba tricotilomanía desde su tierna infancia, presenta algunas viñetas clínicas. El diálogo analítico posibilita, gradualmente, la creación y restauración de la subjetividad por medio de la representación simbólica de lo que estaba innominado. Contribuciones de autores psicoanalíticos iluminan las conjeturas sobre la experiencia emocional vivida por el par analista-analizada, resaltando la importancia fundamental, para el trabajo del analista en el aquí y ahora de la sesión, del contacto con su propio mundo interno y con el del paciente, contacto en el que se conjugan el sentir y el pensar.

Palabras clave: tricotilomanía, diálogo analítico, experiencia emocional, simbolización, subjetividad


RÉSUMÉ

Mobilisée par le processus analytique vécu avec Laura, un enfant qui manifestait la trichotillomanie depuis le premier âge, l'auteur nous présente quelques vignettes cliniques. Le dialogue analytique permet, peu à peu, la création et la restauration de la subjectivité, au moyen de la représentation symbolique de ce qui n'était pas nommé. Des contributions d'auteurs psychanalytiques illuminent les conjectures sur l'expérience émotionnelle vécue par le double, analyste/analysant, en soulignant l'importance fondamentale pour le travail de l'analyste dans l'ici et le maintenant de la séance, du contact avec son monde intérieur et celui du patient, contact où l'on conjugue le ressentir et le penser.

Mots-clés: trichotillomanie, dialogue analytique, expérience émotionnelle, symbolisation, subjectivité


 

 

Fragmentos de uma história clínica

Laura estava com 1 ano e meio quando um colega psiquiatra avaliou-a e solicitou que eu atendesse os pais. Tratava-se de um casal em ruínas e de um caso grave de uma criança com atos compulsivos de arrancar os cabelos.

Entrevistei os pais e orientei-os para que fizessem análise de casal. Como já estavam num processo de separação, não aceitaram esse encaminhamento, porém, solicitaram que eu indicasse para Laura um psicoterapeuta do convênio médico, alegando dificuldades financeiras.

Contaram que estavam casados havia dez anos e, depois de muitas tentativas e tratamentos para engravidar, resolveram adotar uma menina. Quando Rita, filha adotiva, estava com 4 anos, a mãe engravidou de Laura, fruto de uma traição com o melhor amigo do casal.

A mãe passou a gestação agoniada e não contou para o marido, que soube que não era o pai de Laura por ligações anônimas, quando ela já tinha 1 ano de idade. Inconformado, ele ameaçou de morte a esposa e o amigo e anunciou o término do casamento.

Fiquei sem notícias de Laura por muito tempo, e nas minhas conjecturas surgia a curiosidade de saber como ela estava se desenvolvendo. A menina parecia habitar minha mente de uma forma viva.

Para minha surpresa, após três anos e meio a mãe de Laura procurou-me novamente pedindo ajuda. Ao telefone disse que Laura havia piorado da tricotilomania, estava muito agressiva com as irmãs e não desgrudava da mãe nem um só minuto, deixando-a sufocada e sem paciência.

Na entrevista, contou-me que havia se casado novamente e estava com uma filhinha de 7 meses. Com o nascimento do bebê, Laura parecia ter regredido e estava tomando Ritalina por indicação do neurologista. Na escola, não suportava ficar sem a mãe por muito tempo e, em atos de fúria, arrancava os cabelos, batia a cabeça na parede e tinha dificuldades de concentração durante as aulas. Esses comportamentos assustaram as educadoras, e a diretora da escola exigiu que a mãe buscasse ajuda psicológica.

No início do atendimento, ao telefone, a professora me contou, desesperada e sem saber o que fazer para ajudá-la, que Laura chorava o tempo todo na escola pedindo a mãe e nunca fazia as atividades de casa, solicitadas à família. Até recentemente, ia à escola de carona com sua vizinha, dona do colégio; no final do dia a mãe demorava para buscá-las (ela e a irmã).

Laura tem três pais: o biológico, o adotivo e o padrasto. Do biológico ela nem tem noção da existência. Segundo a mãe, de vez em quando recebe ligações dele, mas não as atende e diz que ainda não se encorajou a revelar esse segredo.

O pai adotivo continua dando assistência financeira para ela e Rita, irmã mais velha. As duas dormem em sua casa uma vez por semana. Em uma entrevista ele me contou que mora sozinho, nunca mais levou nenhuma namorada a sério, "vive na farra" e sem planos nesse sentido para o futuro.

Já o padrasto parece ser uma pessoa interessada em ajudar Laura. Procura exercer a função paterna, às vezes, sem sucesso, impondo limites quando ela faz birras e fica muito teimosa. Numa entrevista disse-me que a mãe é dominada por Laura, fazendo tudo o que ela quer para vê-la calada, oferecendo-lhe roupas e brinquedos caros, "vive vestida como uma princesa". Depois dessas entrevistas ocorreram-me vários questionamentos, particularmente sobre a mãe de Laura. Seria ela dominada pela culpa, por manter o segredo, sustentar uma mentira sobre sua origem? Ela se culpa também por ser realmente ausente? Tem uma relação congelada, que impede o estabelecimento de intimidade?

 

Início do atendimento

No primeiro encontro, ainda na sala de espera, Laura olha-me fixamente, em seu rosto expressa um sorriso sutil. Senti naquele momento que eu já a atendia. Entramos, e ela estava bem tímida, mas logo mostrou sua inquietação na sessão. Conversou pouco, mas a primeira fala foi:

L - Doutora, você pode me ajudar a parar de arrancar os cabelos?

A - Nós vamos ajudar você.

Pede para desenhar.

 

 

A - Você desenhou quem?

L - Eu (silêncio). A minha mãe está lá fora com minha irmãzinha. Eu posso ver minha mãe? (Fala bem baixinho choramingando)

A - Você quer ver sua mamãe, pois está com medo de ela não estar te esperando?

Começa a chorar.

L - Quero minha mãe.

A - Eu estou aqui, você não está sozinha, vamos ver sua mamãe e depois voltamos novamente aqui. Está bem assim?

Acena com a cabeça, dando sinal de que concorda.

Fomos até a sala de espera e felizmente encontramos sua mãe.

Laura, choramingando, abraça-a e diz que ela precisa ficar esperando. E beija também a irmãzinha. Volta-se em minha direção indicando que queria voltar para a sessão.

A - Você precisou ter certeza de que a mamãe estava te esperando! Agora você parece mais tranquila.

Laura abaixa a cabeça e não diz nada. Pega uma folha de sulfite e começa a desenhar.

Durante uns 15 minutos, em silêncio, desenha sem levantar a cabeça. Observo e aguardo. Surpreendo-me com os detalhes de seu desenho.

 

 

A - Pode me contar o que desenhou?

L - Um rio muito perigoso. Um buraco bem fundo, e as pessoas estão fugindo para não cair no buraco. Tem um barco que está puxando e salvando um de cada vez e levando perto das árvores, onde tem terra, para salvar.

A - Nossa! Esse barco é importante. Ajuda as pessoas a se salvarem. Como aqui no nosso trabalho que iniciamos hoje, você espera que eu te ajude a parar de arrancar os cabelos.

Olha-me rapidamente e dá um leve sorriso.

L - A minha irmãzinha chora muito e ela dá muito trabalho para minha mãe.

A - A mamãe fica ocupada com ela e você se sente sozinha como no desenho que fez hoje...

Comentários

Nesse primeiro encontro deparei com uma garotinha linda, empática. Em mim despertou compaixão com seu triste olhar suplicando ajuda. Apesar do impacto sofrido diante das evidentes falhas no cabelo, na região temporal direita e parietal, procurei observar como ela apresentou-se durante a sessão e o que suscitou em mim. Percebi o quanto ficou angustiada e desassossegada ao deixar a mãe com a irmã. E considero importante ter acolhido sua angústia quando optei por deixá-la ir até a sala de espera para certificar-se de que a mãe ainda estava lá. Pareceu-me mais tranquila quando voltamos à sessão. Seu desenho surpreendeu-me por tratar-se de uma menina de 5 anos, expressando de imediato sua problemática emocional, com riqueza de detalhes. Entre eles, árvores que dão proteção e cercam as margens do rio. Como analogia ao psiquismo, sugerem reconhecer o desenvolvimento de defesas e recursos a fim de evitar as ameaças das vivências de desmoronamento, segundo o modelo de "buraco negro" descrito por Tustin (1981/1984), o estado terrífico comparado a um buraco negro, como observado em física (a força de gravitação do buraco negro é tão forte, que ela impede até partículas virtualmente desprovidas de massa, os fótons, de lhe escapar).

Sua angústia e seus desenhos me lembraram Winnicott ao propor uma distinção entre a angústia propriamente dita e o que a criança sente nos primeiros momentos de vida. Ele afirma: "o indivíduo deve ter alcançado certo grau de maturidade e a capacidade para a repressão antes que o termo 'ansiedade' possa ser adequadamente empregado" (Winnicott, 1958[1949]/2000, p. 262). Dessa forma, o autor apresenta a ideia de "angústias impensáveis" ou "agonias primitivas" a fim de descrever os sentimentos da criança diante de irritações e intrusões ambientais (impingements). Essa distinção deve-se à condição inicial do bebê, que, antes de haver conquistado a capacidade de recalcar, organizar um ego e estabelecer relações objetais, vivencia as falhas em seu ambiente como uma ameaça de aniquilamento completa que é sentida no corpo. Dessa forma, para possibilitar a experiência de continuidade de ser para o bebê, é necessária uma mãe-ambiente suficientemente boa que permita, ao exercer adequadamente suas funções, às vivências de aniquilamento serem as mais diminutas possíveis.

Sobre a tricotilomania2 não abordarei nosologia psiquiátrica, mas procurarei fazer uma correlação da caracterização desse comportamento com a abordagem de autores psicanalíticos que, com suas teorias, iluminam meu pensar sobre essa dinâmica de funcionamento psíquico.

Concebo a tricotilomania como um comportamento que denuncia falhas primitivas no desenvolvimento emocional do bebê. Apesar da singularidade de cada criança, bem como dos diferentes ambientes em que cada uma delas está inserida, há algo comum a elas: diante de situações de angústia, a criança pratica um ritual em que o enrolar e arrancar os cabelos denuncia algo ainda não constituído, dando a impressão de que o ritual preenche o vazio dos momentos em que experimenta desamparo e ausência do objeto. Ato que considero, no caso de Laura, como defesa autística, cuja finalidade é proteger o self primordial dos estados intoleráveis de não integração (Tustin, 1986/1990; Klein, 1946/1991).

Criança à qual falta a capacidade de representar a mãe em sua mente quando esta não está presente fisicamente não tem como organizar sua ansiedade em sua ausência.

Ao arrancar os cabelos, desde sua tenra idade, mostra falhas na inscrição pré-simbólica de sua vida emocional, a começar da relação corporal mãe-bebê.

Em situações de privação (Winnicott, 1968/1994), como as decorrentes de rupturas precoces dos laços familiares - como veremos que aconteceu com Laura -, o desamparo se perpetua, deixando o sujeito abandonado aos próprios impulsos, cujo efeito é a reinstalação da angústia. Quando o sujeito é inundado pelas forças pulsionais, sendo ele incapaz de significá-las, reestabelece-se o sentimento de desamparo, e, como saída possível para o estado angustiante, ele pode atuar, buscando significados.

O déficit simbólico faz-se notar na tendência a agir sempre que haja acúmulo de excitação pulsional, ou seja, sempre que o sujeito seja tomado pela angústia, em ocasiões como abandono e perda, perigo e medo, ódio, em que é reconduzido à experiência de desamparo.

 

Sessão após um ano de análise

Quando encontro Laura na sala de espera, ela está num canto, parecendo acuada.

Veio ao meu encontro e, no corredor até a sala de atendimento, disse que estava com enjoo, com vontade de vomitar e com muita dor na cabeça.

Pensei em direcioná-la ao banheiro, mas aguardei e continuamos a caminhar. Entramos na sala de atendimento, e ela pediu para desenhar.

L - Quando eu crescer, quero ser modelo.

Começa a desenhar e conta a história de uma menina que será modelo e capa da revista mais famosa. Mora sozinha, numa casa perto de um rio de água limpa e de uma floresta. As roupas que ela tem são coloridas, feitas por uma mulher bem velhinha que mora do outro lado do rio; para chegar lá precisa andar muito e, às vezes, sente medo e sai correndo, mas em outras fica encantada com o colorido da floresta.

A - Nossa! Quantas borboletas estão acompanhando a menina, que legal! A menina não está sozinha. O que será que a menina está sentindo?

Laura começa a fazer outro desenho e faz silêncio.

Pergunto quem são as figuras do seu desenho.

L - Eu e você.

A - Estamos juntas aqui, cuidando da menininha que está sonhando um dia ser crescida, olhada e admirada.

Dá um sorriso e começa a desenhar mais devagar; de repente, diz:

L - Minha família.

A - Quem você desenhou?

L - Eu e a minha irmã, meu padrasto, minha mãe. A Helena não está. Não tinha nascido. Estávamos indo na praia comemorar meu aniversário, acho que de 5 anos. Não sei quantos (fala bem baixo).

Lembrei-me de que no final de semana passado comemoraram o aniversário de sua irmã mais nova. Pensei sobre o enjoo do início da sessão: o que significaria? Lembrei-me de que seus primeiros anos não puderam ser comemorados, pois os pais se separaram. Agora, a irmã mais nova, com os pais juntos comemorava o aniversário.

L - Já está na hora de ir embora?

A - Ainda temos 5 minutos. Você ficou diferente; estava animada e, depois que falou do aniversário, ficou recolhida.

Dá uma olhada para mim, abaixa a cabeça e diz:

L - Minha irmãzinha é chata. Não gosta que eu pegue nos brinquedos que ganhou. Ela grita comigo.

Começa chupar o dedo, e enrolar os cabelos.

A - Quando sente que sua irmã tem tudo e você nada, sente que só tem o dedo para chupar e os cabelos para enrolar... Então você me deixa aqui sozinha, e fica sozinha com seus dedos e seus cabelos...

Assustada, retira o dedo da boca e a mão do cabelo. Olha-me e diz:

L - Na outra sessão eu quero brincar com as minhas bonecas.

Comentários

Laura sente dor de cabeça e enjoo por um acúmulo de emoções indigestas. Sente-se muito sozinha e, nesse estado de recolhimento afetivo, regride a uma experiência de autossensorialidade - chupa o dedo e enrola os cabelos.

Nas sessões ela não arranca os cabelos; isso acontece na escola e em casa, enquanto assiste a televisão.

Durante muitas sessões, desenhou a família e fazia desenhos em que eu e ela estávamos juntas. Às vezes, desenhava uma dupla: ela e a mãe, ela e uma amiga, ela e uma das irmãs, ela e a outra irmã. Pedia para levar o desenho para casa. Dizia ser importante levar e dar de presente para a mãe, para a amiga e as irmãs.

Minha impressão era que Laura queria levar algo de nossos encontros para outras relações, principalmente com a mãe.

"Ogden (2005) refere-se ao holding interno como holding metafórico, um desdobrador das tendências individuais, de forma a possibilitar ao sujeito a apropriação de sensações e ritmos vividos" (Sampaio, 2013). Assegurada pelas qualidades de confiança e quietude do self e do outro, a experiência de unidade do ser abre espaço para compartilhar o sonhar diurno.

 

Após dois anos

Abra os olhos e você
vai ver a escuridão do útero.
(Bion, 1979, p. 2)

Sessão I

Laura chega fantasiada de Elsa, do filme Frozen.

L - Vamos brincar? Eu sou a Elsa e você, a Anna. Eu conto a história e você ajuda a pôr os bonecos.

A - Aceito e aguardo.

L - Elsa tem poderes, precisa ficar isolada.

A - Tem poderes?

L - Ela congela tudo, e seus pais não querem ficar com ela. Esconderam-na num lugar bem distante, e agora ela vive isolada, num lugar bem longe daqui. Ninguém consegue chegar perto, porque ela congela a pessoa.

A - Nossa! Deve ser muito triste viver isolada.

L - Mas ela gostava da irmã e chorava escondido. Como não pode encontrar com ninguém, seu coração e seus cabelos ficaram congelados. Tudo o que ela toca vira gelo. As pessoas não olham para ela, têm medo.

A - Elsa! Sou eu, a Anna, sua irmã! Deixa eu entrar no seu castelo?

L - Não! Sai daqui. Eu sou muito perigosa.

L - Ela vai chorar (diz Laura referindo-se a Elsa).

A - Elsa! Abre essa porta. Eu quero te ajudar. Gosto de você.

L - Vai embora. Abre a janela e a espia atrás de um pano que congela na hora. Lembra! Tudo o que eu toco vira gelo.

A - Elsa! Você precisa acreditar que vai acabar essa maldição. Você pode se libertar, e eu estou aqui para te ajudar...

L - Elsa provocou um inverno infinito. Então a sua irmã Anna precisa encontrá-la e contar o que ela provocou. Precisa revelar os segredos de sua infância.

A - Laura! Que segredos são esses que Anna precisa contar para Elsa?

L - Ela é perigosa, destrói as pessoas. Todos sofrem por causa dela e não há sol. Inverno o tempo todo. Tudo é muito escuro e frio.

Tomada por uma forte tristeza, digo:

A - A Elsa quer muito acabar com o inverno escuro e triste. Precisa encontrar um jeito de aquecer seu reino.

L - Elsa sofreu um golpe. Está presa. Vamos, vamos encontrá-la.

É a primeira vez que encena e sai do lugar, correndo pela sala. Brincava sempre parada, sentada no chão ou numa cadeira pequena.

A - Nossa, a Elsa está reagindo, está se soltando. Corre para lá e para cá buscando uma saída. Descongelou! Está viva...

L - O príncipe diz que Anna está morta por culpa dela. (Pega dois bonecos e circula-os acima da cabeça da Anna.) Elsa chora.

A - Anna está viva.

L - Olha! O cabelo da Elsa está derretendo. Não está mais pedra de gelo.

Lágrimas escorrem em seu rosto.

A - Ah! O choro da Elsa mostra seu amor por sua irmã. Elsa também ama.

L - Eu quero desenhar. Olha o sol! Ele está aparecendo, está derretendo... Preciso desenhar.

 

 

 

 

Comentários

Em nossos encontros, durante muitas sessões, Laura vem utilizando a história do filme Frozen para brincar e demonstrar como está identificada com Elsa, uma personagem do filme com poderes de congelar tudo o que toca com a mão. Até mesmo seus cabelos ficam congelados em uma parte do filme. Imagino que nesses cenários nós nos aproximamos e estamos conseguindo lentamente descongelar sua alma. Por meio da identificação projetiva, venho experimentando sentir o que Bion afirma com propriedade: "Abra os olhos e você vai ver a escuridão do útero" (1979, p. 2). Essa experiência me permite funcionar delicadamente, levando um foco de luz à escuridão de sua vida emocional.

Destaco, em especial, essa sessão porque foi muito intensa e representativa de que estávamos nos aproximando mentalmente. Proximidade que aquece e descongela.

Carregada de uma força viva de emoções e sonhos, ela identificou-se com a personagem Elsa. E eu a acompanhei vivendo e experimentando junto com ela sua agonia, sofrimento, dor e, ao mesmo tempo, esperança. Encenou no palco da sessão analítica o fervor de suas emoções mais profundas. E eu, em minha função analítica, procurei nomear o que eu estava sentindo e "intuindo" da sessão, traduzindo em palavras a experiência emocional do momento.

Na sessão seguinte chega com o cabelo cortado. Fenômeno inusitado. Ela nunca havia deixado cortar seu cabelo. Por que cortou o cabelo? O que descongelou? Do que se aproximou na sessão? Parece que desenha o caminho que está percorrendo. Entre o horror de seu desamparo e a destrutividade há novos caminhos ainda não conhecidos pela dupla analítica.

Sessão II

Ao sair de minha sala sou surpreendida por Laura, em pé, me esperando encostada na porta que dá entrada ao corredor que leva a meu consultório.

A irmãzinha, no colo do padrasto, grita, querendo chamar minha atenção, mas foco meu olhar em Laura. Percebo-a ansiosa por entrar. Mas, ao entrar em minha sala, fica quieta por alguns minutos.

Pergunto:

A - O que está acontecendo?

L - A Rita está internada no hospital junto com minha mãe. Ela está com HN1 e está muito mal. Será que ela vai morrer? Você sabe me dizer?

A - Não sei o que pode acontecer, mas ela está sendo cuidada pelos médicos, e sua mãe está lá no hospital fazendo companhia a ela.

L - Na televisão eu vi que tem muita gente que morre dessa doença.

A - Você está assustada e com medo que ela morra, desapareça.

L - Ela brinca comigo. Ela cuida de mim. Coitada, ela está mal. Com os olhos cheios de lágrimas, pega uma folha e começa a desenhar.

A - Percebo que, quando se angustia durante a sessão, logo começa a desenhar, produzindo vários desenhos.

L - Estou desenhando bolas coloridas. Muitas estrelinhas no céu. Todas vão ajudar minha irmã.

A - Você está ameaçada com o fantasma da morte, mas tem esperança de que tudo vai dar certo.

Começa a fazer outro desenho e diz:

L -Eu e minha irmã. Estamos de peruca e de máscaras. Assim não seremos contaminadas com o mal. Unidas vamos lutar contra todos esses bichinhos, que estão no ar, mas são invisíveis... Você pode me ajudar a dobrar e fazer um avião?

Digo que sim, e ela entrega uma folha sulfite em minhas mãos, dizendo:

L -Você pode dobrar e fazer o avião?

Faço o avião e lhe entrego. Laura começa a desenhar janelas no avião dizendo:

L - Esta janela é da minha mãe, esta é do meu pai e esta é da minha irmã que está internada. Do outro lado são a sua janela e a da minha irmãzinha; ela ainda era bebezinha. Atrás da sua janela é a minha, bem ao lado do meu padrasto.

A - Nossa! Toda sua família está no seu avião. Até eu, cuidando da bebezinha. E o que você está fazendo?

L - Dá uma risadinha, vai em direção à caixa de ludo, pega a família e diz que a mãe está muito cansada, precisa dormir, não falar com ninguém.

Pega três crianças e diz:

L - Estão todos com fome. Ainda bem que existe a Tia Lu. Ela faz comida e mata a fome das infelizes crianças.

Comentários

Acredito que a dupla unida no setting analítico tem encontrado forças para enfrentar a dor e o desamparo da paciente. Laura revela que a analista tem o bom alimento, que mata sua fome. E a tricotilomania tem diminuído significativamente, e ela tem conseguido ficar mais tempo na escola sem chorar. Ainda tem dificuldades e tolera mais a ausência da mãe.

O encontro analista-analisando, possibilitando a esta falar de sua dolorosa história, amplia e enriquece os recursos de simbolização, pode expressar o terror que a afeta. Com efeito, as histórias criadas e os personagens de suas brincadeiras encenam, pela estreita semelhança, a sua própria história. São personagens ameaçados pelo abandono e falhas básicas da função materna.

 

Conclusão

A cada dia que passa vejo suas asas crescerem:
Novos desenhos, novas cores, voos cada vez mais distantes.
Está se transformando em borboleta.
(Rubem Alves, 1994, p. 43)

Considero a experiência psicanalítica fundamental para o contato com o mundo interno próprio e com o do paciente, em uma busca constante para conjugar o sentir e o pensar.

Quando a relação de continente (capacidade de sonhar, dormindo e acordado) e contido (pensamentos inconscientes derivados da experiência emocional vivida) é de "mútuo benefício e sem danos para ambos" (Bion, 1962/1997, p. 91), ocorre crescimento em continente e contido. (Ogden, 2005, p. 102)

Esse crescimento é facilitador da transformação da experiência em um objeto que pode ser "visto". Singularidade não é algo a ser conquistado ou mesmo buscado fora de si, é o fluir do self, aliado ao trabalho da construção diária na análise.

Por muito tempo fiquei intrigada com a tricotilomania instalada tão precocemente, e vários questionamentos sempre estiveram presentes, o que me remeteu às ideias de Bion (1970) sobre o mito individual. Associo o arrancar dos cabelos de Laura a uma tentativa de ela apresentar seu mito individual: Eu sou aquela que vim para destruir o casal, portanto, sou condenada ao desamparo e ao desassossego? Ou quer arrancar a não verdade de sua origem, contada pela mãe?

Penso que Laura está em um processo de transformação dos seus mitos. A dupla aqui apresentada tem conseguido descongelar o que estava parado e condenado ao temor de morte, sensações vividas pela paciente num passado bem primitivo. O calor do encontro analítico parece estar proporcionando o desenvolver de novos registros psíquicos que movimentam a confiança, o sonhar criativo e o pensar. "Como disse Roussillon (2012): quando o ambiente exerce uma função simbolizante, esta é internalizada, possibilitando ao bebê sonhar e a simbolização primária se realiza. Nesse sentido, o sonho é autossimbolizante" (Minerbo, 2016).

Laura traz a história do filme Frozen e se identifica com a personagem Elsa. Por muitas sessões encenamos vários episódios do filme transformado por nossa criatividade. Essa brincadeira vem ganhando espaço em nossos encontros e por meio de identificação projetiva, como Winnicott (1968/1994) pensou a identificação projetiva da mãe com seu bebê como a abertura de um caminho para "a experiência epifânica autoconstitutiva de ser e de um mundo para ser" (p. 184), tenho conseguido experimentar com ela as sensações mais profundas de seu abandono, desamparo, desespero, medo, ódio, compaixão, amor... E assim tenho auxiliado Laura a se reconhecer e viver, sonhar e transformar.

O brincar metafórico não muda o passado, mas permite criar novas compreensões deste, transformando as vivências. Oferecer metáforas e as brincadeiras promovem a sensação de estar junto com um objeto vivo que ajuda a desenvolver representações da presença do objeto. Seu potencial transformador realiza mudanças no modo de experienciar o presente nas perspectivas do futuro.

 

Referências

Alves, R. (1994). A alegria de ensinar (3a ed.). São Paulo: ARS Poética.         [ Links ]

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Recebido em: 7/4/2017
Aceito em: 21/4/2017

 

 

1 Trabalho apresentado no painel "Tricotilomania na análise de criança", 31º Congresso Latino-Americano de Psicanálise, Cartagena, Colômbia, 2016, e em Reunião Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, em 25/03/2017.
2 Em grego, thriks, trikhós, pelo cabelo, e tillo, puxar ou arrancar. Tricotilomania significa a mania de arrancar sistematicamente o próprio cabelo. Fonte: Dicionário Priberam da língua portuguesa, 2008-2023. Recuperado em 14 de maio de 2017 de https://www.priberam.pt/dipo/tricotilomania.

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