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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo June 2017

 

TEMAS LIVRES

 

Comentários sobre o trabalho "Aurora e o processo de parentalização"

 

 

Marie-Rose Moro

Psiquiatra de bebês, crianças e adolescentes, psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica de Paris, doutora em Medicina e em Ciências Humanas, com formação em Filosofia. Participou como convidada especial da III Jornada da Clínica 0 a 3 - Intervenção nas relações pais-bebê. A clínica contemporânea da parentalidade: vínculos e desenraizamento, nos dias 17-18 de março, 2017, na cidade de São Paulo, Paris. marierosemoro@gmail.com

 

 

Esta é uma situação muito bonita, paradigmática dos processos dinâmicos de construção da parentalidade. É verdade quando vocês dizem que a menina é esperta. E os pais também, não? O trabalho com os bebês e os pais, muitas vezes, dá essa impressão de algo mágico, porque com os bebês o trabalho está explícito. Vemos o processo acontecendo diretamente no corpo do bebê, no seu desenvolvimento (1), e o que me parece muito interessante é que, nesse caso, podemos ver isso acontecendo também diretamente nos pais. Como se os pais, por todos os traumas, todas as coisas que viveram, uma atrás da outra, tivessem esses traumas igualmente expostos. Então, também podemos ver o trabalho acontecendo com eles.

Por meio desse trabalho, que é apaixonante e tão bem apresentado por vocês, eu pensei muito na relação com os pais. Há um conceito de Monique Bydlowski (1991), que é o de transparência psíquica (2) dos pais. Ela o descreveu em relação às mães grávidas, dizendo que, durante a gravidez, alguns processos que se reativam e se reatualizam podem ser abertos e assim modificados, permitindo com isso que muita coisa seja elaborada e repensada. No trabalho com bebês, enquanto os pais estão lá com o(a) filho(a) e com as terapeutas, algo da transparência psíquica desses pais pode ser sentido e visto, e podemos notar esse processo dinâmico.

Também, se vê bem a importância da cocriação e da coorganização. Creio que parece ser muito interessante ver, de maneira progressiva, como se explicitam os cuidados maternos, o que nesse caso inclui também os cuidados paternos. Existe um lapso quando se fala de função materna em relação ao pai, mas penso que há uma razão para isso. A entidade ou o conceito de cuidados maternos é mais palpável, podemos vê-la, senti-la. Nesse caso, na história da menina Aurora, pensei também no livro que as enfermeiras fizeram no hospital. É muito interessante e algo que pode ser feito nas instituições que cuidam das crianças antes de elas serem adotadas. Recomenda-se bastante fazer um diário em que se escrevem as coisas que se veem, que se sentem ou que venham a preocupar. É um objeto incrível para os pais, bebês e, posteriormente, crianças (3).

O que me deixou preocupada foi se a história da mãe biológica estava escrita nesse diário, ou se tem algo que possamos imaginar. Pois é muito difícil levarmos em conta todos os pedacinhos da história. No caso da menina Aurora, muito dessa história inicial foi levado em conta. E isso é importante para se construir a parentalidade, uma construção interativa desta, e isso foi feito ali, com muito cuidado pelos pais, no momento de encontro deles com sua filha, no momento em que eles lhe deram um nome. O diário do hospital também constrói um pedaço da história. Além disso, sabe-se que houve uma tentativa de aborto, que é uma coisa negativa, mas isso não é o bastante na história, o que nos diz que talvez tenhamos que inventar um pouco mais.

Outro ponto importante é o fato de o pai ter um irmão adotivo e de nunca terem podido contar isso para o irmão. A mensagem é de que o pai não pode dizer ao irmão e poderá não dizê-lo à filha que eles foram adotados, por isso significar um sofrimento. Tanto o é que mesmo depois de anos, com o irmão já adulto, não puderam lhe contar e assinalar a adoção como um ato positivo. Algo que poderia ser falado assim: você é meu irmão, e eu te quero tanto que tenho medo de lhe dizer que é adotado (4).

O que quero dizer é que neste caso, e o que de forma geral vemos nos casos de adoção, é que o status, a emoção e o significado que se dá ao fato de ser adotado é algo muito forte. Forte porque tem uma ressonância na história de todos: da bebê, da mãe e do pai. Como vocês mesmas disseram, é uma sequência em que todos compartilham os sentimentos de serem abandonados, de mortes e de adoções. São três processos. Alguns compartilham os três e outros apenas dois, mas são três movimentos: o de ser abandonado, o de ter vivido uma perda e ser acolhido, e o de ser adotado. Todos esses processos podem ser trabalhados e integrados enquanto história em uma narrativa. Há uma história que é comum a todos e cada um também tem a sua própria história, na medida em que não é indiscriminado (5).

No momento do atendimento o centro é a Aurora, mas há uma problemática de diferenciação de cada um que é muito interessante, e a própria mãe da menina parecia estar consciente disso. Ela disse muito claramente que ela tem que se diferenciar da Aurora e que a Aurora tem que se diferenciar dela, ainda que seja difícil.

Esse é o primeiro capítulo da vida de Aurora. Um capítulo um pouco forte, com aborto, abandono, hospitalização, mas que pôde ter o seu destino mudado. Há nisto uma força muito importante, e vocês, terapeutas, otimizam isso nos pais. E é claro que as mudanças na Aurora, no seu tônus, no seu olhar, em sua capacidade de dormir, de comer, de se abrir ao mundo, aos prazeres da vida, foram muito importantes e os pais participaram ativamente, num movimento de fazer desses pais realmente pais. Esse já é o segundo capítulo de sua história.

Outro ponto do trabalho que me pareceu muito interessante é o de como figurar as angústias. Nas primeiras consultas as angústias estavam em tudo da vida. Elas eram fortes, pois tinham relação com traumas da realidade, como casar-se e perder o marido quinze dias depois, por suicídio. A realidade é tão violenta (6) que não se pode dizer que as angústias são imaginárias. A realidade era tão forte naquele momento em que a mulher - pois ainda não era mãe - não podia pensar, representar, imaginar, antecipar. Então, se isso aconteceu uma vez, poderia acontecer de novo. E ela nos diz isso, por exemplo, comunicando que não sabe se seria capaz de se dar conta de se essa menina poderia ser autista ou estar deprimida. Um dia o diagnóstico pode se confirmar ou ela pode morrer.

Creio que nessas situações, em que a angústia está relacionada a fatos da realidade traumática que não se podem antecipar, elas são muito fortes e podem se traduzir em processos muito arcaicos. Foi importante essa bebê e os seus pais chegarem para um trabalho de intervenção e encontrarem terapeutas que pudessem olhar para esse risco com muita seriedade. Novamente, penso que isso é muito importante, pois não se pode tomar como algo unicamente simbólico, fantasmático. É algo que está enraizado em questões muito fortes e que são processos que podem, claro, conduzir a processos autísticos, mas também a processos depressivos, por serem situações muito difíceis de simbolizar, de figurar (7). Então, é realmente importante que se busque essa criança, sem perder os pais, onde eles estão, na dor, no que falta, na ruptura. É necessária uma reanimação psíquica, de ir buscar com todos os sentidos, com todos os tipos de interação.

Na primeira cena vemos que o tônus de Aurora está comprometido. É difícil para ela esse eixo vertical de que Geneviève Haag fala muito, quando pensa nos processos autísticos. Para mim, essa contribuição dela é muito interessante. Quando as crianças não conseguem se apropriar desse eixo vertical, é preciso que as ajudemos a buscá-lo, a tentar, a sustentar. E, também, é importante que os pais imaginem o que se passa no corpo de seus filhos. Assim, é necessário um trabalho psicomotor junto com o psicoterapêutico, pois o psicomotor é um trabalho corporal e que permite ver, alinhar as diferentes sensorialidades, percepções de seu corpo, e não só as representações. Alinhar não só as sensorialidades, mas as percepções que o bebê tem de seu corpo, experimentando outros tipos de percepções, mais vivas, mais ativas, mais inscritas no corpo e no que sente o bebê. Creio que no hospital também se ocuparam muito bem disto, mesmo que ela tenha se mantido uma bebê passiva nos primeiros momentos, prematura, em que houve muitas estimulações, mas ainda assim passivas. Talvez fosse necessário, mais tarde, estimulações mais psicomotoras e sinestésicas.

Primeiro, os bebês, especialmente os prematuros, precisam de um contato corpo com corpo, uma estimulação mais passiva, mas, posteriormente, precisam de uma estimulação mais psicomotora. Lembrei-me agora de uma bebê, filha de uma mãe da África, cujo vídeo mostrei para alguns de vocês. Essa mulher estava muito bem e estimulava bem a sua filha. Porém, para nós e em um contexto diferente, essa estimulação parecia excessiva. Lembrei-me dela, pois o que quero dizer é que, não importa como a mãe estimula o bebê, o que é importante é que nos casos de adoção, o significado da relação vai depender das rupturas, das mudanças e dos traumas, tanto do bebê quanto dos pais. Então, as duas filiações precisam buscar um lugar na transmissão transgeracional que seja mais vivo, que não seja apenas relacionado com essa parte, essa cripta traumática. Assim, Aurora necessitava ser reavivada (8).

Outro pedaço da história desses pais que não sabemos é por que eles não podiam ter filhos. Isso pode ser algo importante. Na história de adoção há algo de poder ter um bebê juntos. Isso faz parte do que pode ser traumático e precisará ser elaborado de uma forma ou de outra.

Quando os pais dão um nome a essa menina, disseram que a chamariam de Aurora, mesmo nome dado pela médica. Todos no hospital ficaram espantados com a coincidência. O nome que dão à criança é importante e podemos dizer que aqui é algo de um processo coletivo. Não sabemos se a mãe biológica lhe deu um nome. A médica lhe dá um nome, e os pais, posteriormente, lhe dão o mesmo. Há algo de coletivo, assim como a história, que também é coletiva. Penso que demonstra como os pais não negam parte da história dessa menina. Parte do que acontece, do abandono, e sobretudo o que se passa no hospital, eles transformam em algo bom. Não existem fatos negados e nem escondidos, mas sim transformados em uma coisa interessante, bonita, afetiva, criativa, tanto por eles, quanto pelas enfermeiras. É como se essa bebê fosse capaz de se fazer amada pela equipe do hospital e depois fazer os pais se tornarem seus pais. É algo de uma vitalidade incrível. Podemos dizer que é um exemplo de esquema necessário para todas as coisas difíceis que há nesta história. Reconhecer algo de vulnerável, que pode ser elaborado e transformado. Vocês, terapeutas, chamaram de narrativa de amor e de esperança. É isso que tem que ser feito para a criança e para todos. Nem tanto contar a verdade de todas as coisas feias, mas sim contar uma verdade autêntica, criativa.

Winnicott tem um livro que se chama Conversando com os pais (Winnicott, 1982/2006). Acredito que vocês conheçam. Ele o escreveu para pais de adolescentes. Ele falava sobre o que escreveu na Rádio BBC. Para mim, esse é um livro de cabeceira. É um livro simples, que diz as coisas de forma clara, direta, sem ambiguidades. Isso de ser simples é algo que é muito difícil para mim também. Winnicott consegue isso e fala para os pais de adolescentes, dando-lhes conselhos claros, apesar de dizer que não se pode fazer isso. Ele diz que os pais têm que aprender a ser autênticos e falar sobre as suas emoções, das suas histórias verdadeiras e não inventar coisas que pensam que precisam ser ditas aos adolescentes e que imaginam que eles estejam buscando.

Nesses casos de adoção, em que precisa iniciar uma parentalidade em meio a muitos traumas do bebê, da mãe e do pai, creio que é muito importante um trabalho em que se autoriza os pais a serem autênticos. Um trabalho que faça uma relação entre a história, as emoções e os comportamentos dos pais. E isso não é fácil quando se vivem muitas coisas, quando temos medo, quando nos chamam mensalmente para falar da adoção, para saber se ela se concretizará, quando há muitas dúvidas, como neste caso, quando o pai estava desempregado, sem saber o que faria. Poder lutar de forma não artificial contra todas essas perdas, mortes, traumas é algo importante.

No atendimento de Aurora, apesar de não ter sido fácil, vemos isso ocorrendo. Vemos de forma muito bonita, por meio da evolução do caso, os efeitos de um trabalho. O conceito de puericultura emocional é interessante aqui. Novamente, quando se vivem muitos traumas é difícil deixar as emoções aflorarem, não ter medo. Os traumas inibem as emoções. Um autor francês diz que o trauma congela as emoções. No trabalho com essa família o que se desenvolve é o descongelamento delas.

O meu último ponto é sobre a apresentação do mundo, por parte da mãe, ao bebê. Esta mãe diz, apoiada por vocês terapeutas, que já pode mostrar as coisas do mundo à Aurora, com menos dúvidas. A função dos cuidados maternos engloba o holding, o handling e a apresentação do mundo pela mãe, do objeto, em pequenas doses, como disse Winnicott. Essa parte de apresentar o mundo nos parece evidente, mas, muitas vezes, em pequenas doses é difícil, sobretudo quando os pais viveram muitos traumas. Neste caso, vemos como a mãe, pouco a pouco, se apropria, sente que ela é capaz de apresentar o mundo e que não haja angústia ou instabilidade em excesso que impeça isso. Com vocês, no momento presente, e com a filha, ela faz isso, e podemos ver como esse trabalho da parentalidade, em uma psicoterapia precoce, vai atuar.

Muitos comentaram, entre eles, Stern, a importância do dia a dia e o reconhecimento dessa rotina para a construção da parentalidade, coisa que em um trabalho como este, de intervenção, fica visível. Vocês, terapeutas, fizeram um link disso com o que chamaram, de forma clara e evidente, de adoção mútua. Entre todas as adoções, a central é a da bebê, mas também há a adoção dos pais e, certamente, a adoção dos terapeutas. Isso acontece rapidamente, e a mãe reconhece e confirma quando fala, na segunda ou terceira sessão, que não sabia que psicoterapia de bebês e pais era tão forte e rápida.

Vemos a transferência precoce para as terapeutas, o que é importante, mas de muita responsabilidade. Temos que usar essa transferência para inventar outras coisas possíveis, darmos mais liberdade para o bebê (9). Neste caso, há um álbum de vida em que existe uma adoção, muitas coisas que aconteceram, e também muitas projeções traumáticas. Temos que desintoxicar a bebê, como se diz algumas vezes: poder transformar, sem negar, os traumas e as possibilidades para essa menina.

Na última cena vocês falam muito sobre o falso, de não cair no falso, do verdadeiro sem cair no velho, vemos, novamente, essa preocupação para a qual Winnicott chamou a atenção sobre a autenticidade dos pais. Também, vemos a autenticidade da menina, pois é importante que os pais se autorizem a ser autênticos para que a filha possa buscar o seu lugar, e que esse lugar não seja de um falso self, mas, sim, um lugar que lhe pertença, com suas diferentes projeções, no qual ela possa reinventar, como todos nós, todas as crianças.

Aurora é muito grata, muito boa essa menina! Faz tim-tim na última cena, como se concluísse um filme. Não era o fim, mas algo como nas consultas de Winnicott: o início de um processo que dá confiança aos pais e terapeutas a respeito de uma energia pessoal que ela tem, energia vital, suficiente para crescer, para crescer aberta para o mundo.

Obrigada.

 

Notas e apontamentos de Marie-Rose durante a discussão

1. O medo do estrangeiro nesse trabalho favorece o aparecimento de angústias de separação típicas desse momento do desenvolvimento, em que há maior angústia e o bebê não pode dormir e se separar. Mas Aurora, antes de ser adotada, viveu em uma instituição, e há múltiplas figuras de apego nas instituições. Então, agora ela vai recuperar algo de normal, algo que todas as crianças vivem, de diferenciação das pessoas de apego.

2. Moro em seu texto "Os ingredientes da parentalidade" define esse conceito de Bydlowski: "Como sabemos, para além dessas dimensões sociais e culturais, estas funções materna e paterna podem ser tocadas pelos percalços do funcionamento psíquico individual, por sofrimentos antigos, mas não apaziguados, que reaparecem de maneira muitas vezes brutal no momento da constituição de sua própria descendência: todas as formas de depressão do pós-parto e mesmo de psicoses que conduzem à perda de sentido e à errância. A vulnerabilidade das mães, de todas as mães, nesse período, é bem conhecida atualmente e teorizada especialmente a partir do conceito de transparência psíquica (Bydlowski, 1991) - por transparência entendemos o fato de que no período perinatal, o funcionamento psíquico da mãe é mais legível, mais fácil de perceber do que habitualmente. Com efeito, as modificações da gravidez fazem com que nossos desejos, nossos conflitos, nossos movimentos, se expressem mais facilmente e de maneira mais explícita, e, por outro lado, nós revivemos os conflitos infantis que são reativados, especialmente as ressurgências edípicas. Em seguida, o funcionamento torna-se opaco novamente. Essa transparência psíquica é menos reconhecida para os pais, que no entanto atravessam eles também múltiplas turbulências ligadas às revivescências de seus próprios conflitos, ao questionamento sobre sua própria posição de filhos, e à passagem de ser filho a ser pai. Eles os revivem e os expressam mais diretamente que de hábito. O período perinatal autoriza uma regressão e uma expressão que lhe são próprias. O exílio só faz potencializar essa transparência psíquica que se expressa nos dois pais, mesmo se de modo diferente no nível psíquico e no nível cultural. No nível psíquico, pela revivescência dos conflitos e pela expressão das emoções. No nível cultural, pelo mesmo processo, mas aplicado agora às representações culturais, às maneiras de fazer e de dizer próprias a cada cultura. Todos esses elementos culturais que nós pensávamos pertencerem à geração precedente se reativam, tornam-se de repente importantes e preciosos; eles se tornam novamente vivos para nós. É conveniente então propor aqui a imagem de transparência cultural para pensar e se figurar o que os pais vivem. A relação com a cultura de seus pais se encontra modificada, e então também a própria relação com seus pais" (Moro, 2005, p. 261).

3. O conceito de elementos compartilhados de Bion, elementos de sonho compartilhado (elementos alpha, beta, como quiserem chamar), é útil para poder sonhar sobre essa menina, sobre como os pais chegaram na instituição, como ela era. Não sabemos desses detalhes. A instituição parecia viva, ao contrário de mortífera, negativa, como outras, que são pouco sensíveis. Então, parece que há algo de compartilhado entre esses três - menina, pais e instituição -, como os elementos do sonho compartilhado, que funcionou bem e voltou a funcionar na terapia. Algo como um ingrediente vivo. Já a identificação projetiva tem aspectos que se fecham, que nos coloca em um lugar de onde nem sempre é fácil sairmos.

4. Antecipar a revelação e contar sobre a adoção é importante, sem dúvida, mas o modo pelo qual poderá contar sobre a adoção é mais. Como vai fazer? Que tipo de material vai utilizar? E isso, certamente, precisará de acompanhamento.

5. A ideia do diário, escrito pelos pais e a equipe que trabalhou com o bebê nos primeiros dias de vida, de poder deixar algo para ele da sua história, é muito boa. Pode ser algo escrito, dependendo da relação que se tem com isso, podem ser objetos, fotos etc. Lembrei-me do Haiti. Depois do terremoto, muitas crianças chegaram à França para serem adotadas. Elas levaram consigo muitas cartas e objetos, em uma bolsa. No Haiti a representação da adoção não é definitiva e em outros lugares do mundo é. Então, as coisas se complicam quando você dá o seu filho para ser adotado por outra família que tem uma representação da adoção diferente da sua. Nós encontramos muitas bolsas deixadas no aeroporto. Tivemos vontade de gritar e chorar. Outros pais não usaram o conteúdo das bolsas. Isso tudo para dizer que não é só difícil para os pais que deixam o seu filho para adoção, mas, também, para os que acolhem a criança. Se vamos acolher o bebê com as coisas concretas de sua vida, a sua história, precisamos ter cuidado, pois não é fácil. O diário é algo interessante, mas não é fácil. É algo que precisa ser elaborado. Existem muitos debates sobre o que necessitam as crianças que são adotadas. Alguns dizem que elas necessitam de algo da origem que tiveram. Eu creio que mais do que algo da origem, elas necessitam algo de sua história, algo que lhes faça sentido.

6. Nas situações de violência, o sentido que se dá para a maternidade é outro. Eu não tenho respostas para isso, porém, penso que não podemos ocultar esses problemas, que são também políticos. Para uma sociedade crescer, precisamos olhar para as crianças. Não podemos dizer que o problema não existe. Como clínicos, além de testemunhar e saber, podemos agir. Não podemos ficar em uma posição de impotência individual e coletiva.

7. Vou fazer um comentário sobre temporalidade, sobre o aqui e o agora, o presente, o passado e o futuro do bebê e como aparece na sessão. Há a psicopatologia, a forma de enxergar os sinais do bebê como autísticos, depressivos ou resultantes do trauma. Precisamos cuidar disso para salvar as crianças desses olhares e do lugar em que podemos colocá-las. Precisamos saber com o que vamos trabalhar. Neste caso, acredito que os sinais da criança eram resultantes do trauma.

8. A modalidade de transmissão que ocorreu nos afeta, assim como os processos de filiação e afiliação. Neste trabalho, primeiramente, abordou-se a filiação. A apresentação do mundo, a que grupos Aurora pertence, o nome que lhe foi dado são questões que aparecem e têm a ver com a afiliação. Não é uma mera demonstração, mas uma vivência. É muito interessante fazer a clínica psicanalítica assim.

9. A contratransferência é mais um instrumento técnico nas intervenções pais-bebê. Mas falar ao bebê e falar pelo bebê são coisas diferentes. Há muito tempo se iniciou um debate sobre isso, e os primeiros protagonistas foram Dolto e Lebovici. Saber se a criança entende o sentido do que se está dizendo era o que estava em jogo. Dolto falava com o bebê diretamente, com todos os sentidos fortes, conscientes e, certamente, inconscientes também. Falava com toda a dimensão da palavra e acreditava que o bebê entendia. Lebovici dizia que não. Para ele, o bebê não entendia os sentidos das palavras, mas a intenção do terapeuta. Hoje, quando vemos um trabalho bonito como este, podemos dizer que o debate já não existe mais. O bebê entende algo, o que já é bastante, mas este algo é a resultante da intervenção do terapeuta. O bebê até pode entender algo do sentido, dependendo do seu desenvolvimento. As técnicas são diferentes. Falar com o bebê e falar com os pais sobretudo na presença do bebê são coisas diferentes, e temos que decidir como fazer. Podemos falar do bebê, a partir dele, na presença dele e diretamente com ele. Todas essas técnicas permitem que o bebê fique em um lugar ativo na interação. Porém, são técnicas diferentes, os terapeutas têm estilos diferentes, e é algo que precisa ser feito com princípios e não mimeticamente.

 

Referências

Bydlowski, M. (1991). La transparence psychique de la grossesse. Etudes Freudiennes, 32,2-9.         [ Links ]

Moro, M.-R. (2005). Os ingredientes da parentalidade. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., 8(2),258-273.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (2006). A criança e seu mundo. São Paulo: LTC. (Trabalho original publicado em 1982)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 19/5/2017
Aceito em: 19/5/2017

 

 

Tanscrição, tradução e edição de Stephania A. R. Batista Geraldini1
Revisão técnica de Fátima Maria Vieira Batistelli e Maria Cecília Pereira da Silva
1 Psicóloga e psicanalista. Doutoranda do IPUSP - Departamento de Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano. Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP e da Clínica 0-3.

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