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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.92 São Paulo June 2017

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

À procura do pai. Observações sobre o filme Central do Brasil (Walter Salles, 1998)

 

Looking for father. Observations on the film Central Station

 

En busca del padre. Notas sobre la película Estación Central de Brasil

 

À la recherche du père. Notes sur le film Central do Brasil

 

 

Andrea Sabbadini

Membro da Sociedade Britânica de Psicanálise. Diretor do Festival Europeu de Filmes Psicanalíticos, Londres. a.sabbadini@gmail.com

 

 


RESUMO

O tema principal de Central do Brasil, obra-prima de Walter Salles (1998), é a separação e a perda. Ambos os personagens principais sofreram perdas dolorosas, uma mulher de meia-idade (Dora) e uma criança (Josué), pouco confiáveis, estão à procura de seu pai. No curso de sua jornada, uma jornada literal e metafórica, os dois encontram no "apego" que desenvolvem gradualmente um para o outro, repletos de ambivalência, uma maneira de reparar os danos que sofreram anteriormente em suas vidas.

Palavras-chave: estação ferroviária, criança, pesquisa por pai, jornada de descoberta, separação, perda


ABSTRACT

The main theme of Central Station (1998), a Walter Salles' cinematographic masterpiece, is separation, loss. The main characters are an unreliable middle-aged woman (Dora) and a child (Josué). Both of them experienced painful losses in the past and, together, have been now looking for his father. In the course of their journey, they both have found a way to repair the damages they suffered earlier in their lives. The way they have found arises from the "attachment" they have gradually developed for each other - an attachment which is fraught with ambivalence.

Keywords: railway station, child, search for father, journey of discovery, separation, loss


RESUMEN

El tema principal de Estación Central de Brasil, una obra maestra de Walter Salles (1998), es la separación y la pérdida. Ambos personajes principales sufrieron pérdidas dolorosas, una mujer de mediana edad (Dora) y un niño (Josué), poco fiable, están en busca de su padre. En el transcurso de esta jornada, una jornada literal y metafórica, ambos encuentran en el "apego" que se va desarrollando gradualmente entre uno y otro, repleto de ambivalencia, una manera de reparar los daños sufridos anteriormente en sus vidas.

Palabras clave: estación de tren, niño, búsqueda del padre, jornada de descubrimiento, separación, perdida


RÉSUMÉ

Le thème principal de Central do Brasil, un chef-d'œuvre de Walter Salles (1998), c'est la séparation et la perte. Les deux personnages principaux ont subi des pertes douloureuses, une femme d'âge moyen (Dora) et un enfant (Josué), peu fiables, sont à la recherche de son père. Au cours de son voyage, un voyage métaphorique et littéral, les deux trouvent dans "l'attachement" qu'ils développent progressivement l'un pour l'autre, plein d'ambivalence, une manière de réparer les dommages subis auparavant dans leurs vies.

Mots-clés: gare, enfant, recherche du père, voyage de découverte, séparation, perte


 

 

 

Central Station é a tradução inglesa do filme Central do Brasil, um título interessante considerando que a palavra "estação" significa um lugar de repouso, em que as coisas são "estacionárias". Mas, na verdade, no filme de Walter Salles o oposto é verdadeiro. Assim como o excelente Diários de motocicleta (2004) e o decepcionante Na estrada (2010), este é um road movie1 que trata muito mais de movimento do que de imobilidade. Movimento físico dos mais influentes, além de violentos e perigosos. Do Rio de Janeiro em direção ao Norte do país, onde tudo é mais lento, mais amigável, agrário e religioso. Um movimento feito, pelos dois protagonistas do filme, por trem, ônibus, caminhão, carro e a pé (Vale a pena notar aqui que Salles tem sido, por cerca de 30 anos, um muito bem-sucedido piloto de corrida).

O movimento, no entanto, sobre o qual estamos mais interessados em refletir aqui é o emocional que atravessa os dois personagens principais e sua relação: Dora (interpretada por Fernanda Montenegro, merecidamente nomeada para um Oscar pela sua performance) e Josué (Vinicius de Oliveira). Um estranho casal, se é que alguma vez houve um. Sua viagem física em busca do pai (e, aliás, pelo menos para a criança, da mãe também) torna-se uma jornada de autodescoberta e, portanto, de lenta transformação e crescimento. Ou mesmo de "conversão", pois identifica-se um motivo religioso que atravessa o filme: a busca por Jesus, o carpinteiro a ser encontrado no final de uma dolorosa busca moral. Deus existe? Ele abandonou seus filhos? Ele voltará do deserto?

No início do filme, conhecemos Dora, uma professora aposentada, sentada em uma mesa do lado de fora da Estação Central do Rio de Janeiro, em que agora ganha a vida escrevendo cartas (que não entrega) para diferentes analfabetos cariocas - ao contrário de Mario, o quase analfabeto protagonista de Il postino (Michael Radford, 1994), que ganha a vida entregando cartas (não escreve) ao poeta chileno Pablo Neruda. E, ainda, outra referência fílmica aqui, são aqueles que pedem a Dora que escreva suas cartas, eles me lembram os personagens que pegavam seus retratos tirados por Timothy Spall em Secrets and Lies (Mike Leigh, 1996).

Salles apresenta-nos Dora como uma mulher dura, insensível e desonesta, características talvez indispensáveis à sobrevivência em um submundo tão punível como o que povoa a estação de trem de uma cidade como o Rio. Ela pode agir e falar com crueldade, ela mente e rouba, e tem menos escrúpulos morais do que Irene, que, quando percebe que Dora vendeu a criança por um punhado de dólares para uma gangue aliciadora de menores, afasta-se da amiga e murmura: "Há um limite para tudo, Dora". E, então, Dora a escuta.

O outro personagem central do filme é Josué, um garoto de 9 anos de idade, inteligente, experiente e de rua. Autoconfiante o suficiente para sempre falar o que pensa, é também uma criança traumatizada pela morte de sua mãe, Ana, atropelada por um ônibus na frente de seus próprios olhos, e pela ausência de seu pai, Jesus, um homem que tem a reputação de ser um bêbado. Josué é uma criança, em outras palavras, que as circunstâncias privaram de uma infância normal. É significativo que nunca o vejamos brincar (exceto, sozinho, com um pião) nem interagir com outras crianças, isto é, até quando o vemos, no final do filme, exibindo suas habilidades em um jogo de futebol com seus meios-irmãos.

 

 

A suspeita justificada de Josué, de que Dora é uma mulher que continua mentindo e enganando-o, amacia quando ele descobre suas vulnerabilidades e percebe que, como um menino, ele afinal precisa da presença materna de Dora, mesmo tendo boas razões para odiá-la. Gradualmente, ela se torna uma personagem mais simpática, tanto para Josué como também para nós, os espectadores do filme, que vamos podendo conhecê-la e compreendê-la melhor. A história da vida de Dora, e em particular suas perdas, é contada como um espelho da história de Josué. Ela vem de uma família disfuncional, sua mãe morreu quando ela era apenas uma criança, e seu pai, mulherengo, as abandonou. Muitos anos depois, quando Dora era uma adolescente, ela o encontrou na rua, mas ele simplesmente não a reconheceu.

Dora tem medo de qualquer comprometimento emocional, até mesmo do envolvimento com Josué - um menino de idade semelhante à de seus alunos da escola primária - nos poucos dias da viagem a Bom Jesus do Norte. E, quando se atreve a tocar a mão e o coração do caminhoneiro evangélico que encontrou na estrada, acaba machucando-se novamente. Dessa vez, é a criança que assume o papel de pai substituto.

À medida que Dora e Josué iniciam a viagem para o norte do país, aprendem a confiar um no outro, a hostilidade original dá lugar a mais tolerância mútua, compreensão, respeito, e, até mesmo, ao amor. Há também, no decorrer desse processo, uma referência oblíqua à cena edípica. Quando o menino e a mulher mais velha compartilham uma cama e brincam, falando sobre nudez e sexualidade, Josué vangloria-se, não pela primeira vez, de suas improváveis experiências com namoradas.

O tema principal de Central do Brasil é a separação e a perda. Ambos os personagens principais experimentaram perdas dolorosas, e encontram no "apego" que eles desenvolvem gradualmente um com outro, cheios de ambivalência, uma maneira de reparar os danos sofridos anteriormente em suas vidas. Inevitavelmente, porém, também a sua relação tem de chegar ao fim. Eles viverão nos corações e mentes uns dos outros após a separação deles, ou serão, mais uma vez, esquecidos? Os sorrisos entre as lágrimas, na última cena, sugerem que a travessia das perdas alcançadas ao longo da jornada foi bem-sucedida o suficiente para justificar uma perspectiva mais otimista para o futuro. No entanto, achei o final sentimental demais. Minha impressão é que esse filme, de outra forma perfeitamente equilibrado, merecia uma cena mais sutil para concluir a jornada: talvez apenas a cena suave e poderosa oferecida pelo próprio Salles, de Dora pondo as duas cartas de Ana e Jesus, os pais de Josué, em uma prateleira sob seu retrato.

Fora essa pequena crítica, Central do Brasil é uma verdadeira obra-prima cinematográfica. Seus personagens são retratados como tridimensionais e psicologicamente críveis em todas suas ambiguidades. O ambiente social é natural, tanto em torno da estação de trem no Rio como em aldeias no interior do Norte, mostrando-se como um complemento mais eficaz às suas vicissitudes. A trilha sonora adiciona um pathos2 considerável ao que ocorre na tela. Uma joia a ser apreciada para enriquecer a compreensão dos espectadores.

 

Referências

Leigh, M. (1996). Secrets and Lies. Inglaterra: Thin Man Films.         [ Links ]

Radford, M. (1994). Il postino. Itália: Miramax Films.         [ Links ]

Salles, W. (2004). Diários de motocicleta. Argentina: FilmFour, BD Cine.         [ Links ]

Salles, W. (2010). Na estrada. França: Film4, Ciné+, Vanguard Films.         [ Links ]

 

 

Rcebido em: 14/11/2016
Aceito em: 3/4/2017

 

 

Tradução de Mireille Bellelis
1 Tipo de filme em que os protagonistas saem pela estrada, ou em viagem sem rumo, em busca de aventuras e por meio de variados encontros e experiências encontram um caminho para o autoconhecimento. (N. T.)
2 Na experiência do espectador ou leitor, desperta sentimentos de compaixão ou empatia criados pela qualidade do texto, da música, da representação etc. (N. T.)

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