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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora. jornaldepsicanalise@SBPSP.org.br

 

 

É com satisfação e gratidão que apresentamos este novo número do Jornal de Psicanálise, cujo tema "Sonhos" foi motivador para vários colaboradores, que, com seus criativos artigos, permitiram a composição de uma seção temática especialmente enriquecedora.

A relevância desse tema deve-se ao fato de que a concepção psicanalítica de mente é fruto da genialidade de Freud ao perceber, principalmente em si mesmo, que os sonhos realizam um processamento psíquico das experiências sensoriais e afetivas vivenciadas pelo ser humano no decorrer da vida, atribuindo-lhes um sentido emocional. No modelo freudiano de sonhos esse trabalho psíquico é ininterrupto, como também são contínuos os estímulos vitais externos e internos, geradores de registros mnêmicos que demandam um continente inconsciente para seu armazenamento, de modo que a consciência fique liberada para as funções de convivência e sobrevivência. Quando esse processamento onírico falha - quando não é possível sonhar -, o continente interno se fragmenta e os conteúdos inconscientes e conscientes não mais se diferenciam, configurando os estados de psicose.

É interessante constatar como na comunidade psicanalítica há uma tendência de supervalorizar, no modelo freudiano, a função do sonho de "guardião do sono" e de "realização de desejos", subestimando, de certa forma, sua função principal de "guardião da saúde mental" e, portanto, de figurabilidade, pensabilidade e diferenciação entre as instâncias Ics e Pcs-Cs, o que é detalhada e generosamente explicitado por Freud (1900/1990c) no desenvolvimento dos capítulos de "A interpretação dos sonhos".

Como pode ser visto na seção "Conversando e escrevendo", em que se encontra uma preciosa conversa com Luiz Tenório Oliveira Lima, profundo conhecedor da obra freudiana, provavelmente padecemos de certa resistência a ler e estudar esse texto básico de 1900, fenômeno que parece se manifestar nas várias gerações de psicanalistas. No pós-escrito de 1909 ao primeiro capítulo de "A interpretação dos sonhos", bem como em "A história do movimento psicanalítico" (1914/1990b), "Um estudo autobiográfico" (1925/1990a) e nas "Novas conferências introdutórias sobre psicanálise" (1933/1990d), Freud refere-se à falta de compreensão de sua teoria dos sonhos e a críticas de autores que nem sequer leram seu livro! Na "Revisão da teoria dos sonhos" (Conferência XXIX), ele comenta:

Algumas fórmulas passaram a ser do conhecimento geral, entre elas algumas que nós nunca apresentamos - tal como a tese de que todos os sonhos são de natureza sexual -, mas coisas realmente importantes, como a fundamental diferença entre o conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes, a percepção de que a função de realização de desejos dos sonhos não é contradita pelos sonhos de ansiedade, a impossibilidade de interpretar um sonho a menos que se tenha à disposição as respectivas associações do sonhador, acima de tudo a descoberta de que o essencial nos sonhos é o processo de elaboração onírica - tudo isso ainda parece quase tão alheio ao conhecimento da maioria das pessoas, como há trinta anos. (1933 [1932]/1990d, p. 18)

O problema, aqui, chama a atenção porque, mesmo considerando os inegáveis avanços teóricos e técnicos proporcionados pelos grandes autores da psicanálise que se seguiram, eles só aconteceram porque esses autores se aprofundaram no modelo de mente de Freud, que corresponde essencialmente ao seu modelo de sonho, ou seja, se alimentaram daquilo que é "originário" do campo da psicanálise, sem diluí-lo, como enfatiza Tenório.

Será que na transmissão e recepção dos conhecimentos psicanalíticos, no decorrer dos anos, estamos nos desconectando de suas fontes originais, numa espécie de "telefone sem fio"? Por exemplo, não é raro atribuir-se a Bion a originalidade do conceito de "pensamento onírico de vigília", e este é o aspecto central da primeira tópica freudiana, a essência da concepção de inconsciente, reconhecida e citada em diversas passagens pelo próprio Bion, em sua obra. No primeiro capítulo de "A interpretação dos sonhos", no item D - "Por que nos esquecemos dos sonhos após o despertar" - Freud faz uso de uma bela metáfora: "Os sonhos cedem ante as impressões de um novo dia, da mesma forma que o brilho das estrelas cede à luz do sol" (1900/1990c, p. 75). Não podemos perceber nitidamente nossos sonhos durante a vigília, mas eles estão presentes, fluindo, e por isso a função analítica é difícil, mas perfeitamente viável de se realizar mediante intensivo treinamento em associação livre e atenção flutuante, reverie, sem memória e desejo de compreensão ou, como propõe Freud, em estado de auto-observação acrítica, em repouso e receptividade a ideias involuntárias.

Não se trata de idealizarmos o pensamento freudiano, ou diminuirmos o valor original do pensamento dos autores que também se tornaram clássicos e dos autores contemporâneos, mas sim de apreendermos certo fio da meada imprescindível para a clareza do modelo. Por diversas vezes, não apenas na citação de 1933 acima exposta, Freud nos alerta quanto à frequente confusão que se faz entre "conteúdo manifesto do sonho" e "pensamentos oníricos latentes", o que impede a compreensão de que o "trabalho do sonho" (pré-consciente) - condensação, deslocamento, consideração à representabilidade e elaboração secundária - opera sobre os pensamentos oníricos inconscientes, criando uma barreira ou filtragem simbolizante, ou seja, o sonhar equivale a elaborarsecundariamente, a pensar os pensamentos oníricos latentes: "uma atividade crítica de pensamento, que não é uma simples repetição do material dos pensamentos do sonho, tem efetivamente uma participação na formação dos sonhos" (Freud, 1900/1990c, p. 300, grifo no original).

A especificidade conceitual e técnica do método psicanalítico é favorecida pela familiaridade com suas fontes originais que, vale ressaltar, são criativamente construídas no setting clínico. Nessa perspectiva, podemos dialogar com outros campos do saber e com a cultura, a partir de uma identidade "científica-artística" própria, exemplificada por Antonio Sapienza em seu livro Reflexões teórico-clínicas em psicanálise (Blucher, 2106), resenhado por Yone V. Castelo.

Nas seções adiante, temos valiosas reflexões sobre a clínica contemporânea, a atitude psicanalítica e, ainda, sobre questões relacionadas à seleção para os institutos de formação, nos levando a reconhecer a vivacidade da psicanálise e seu potencial transformador, bem como a importância do compromisso social das instituições psicanalíticas, numa época em que, infelizmente, compartilhamos de uma fragilização da ética e das conquistas democráticas, com desrespeito aos direitos humanos e brutal desigualdade econômica. Tanto em nossos consultórios como em espaços coletivos diversos, a especificidade da observação psicanalítica tem muito a agregar no sentido da apreensão do "não sonho", individual e grupal, e da impulsividade destrutiva contagiante da qual as instituições psicanalíticas não necessariamente estão imunes.

Na seção "Notas internacionais", parabenizamos Roosevelt Cassorla pelo prêmio Sigourney Award 2017, recebido no 50º Congresso Internacional da IPA em Buenos Aires, comunicado por Cinthia A. Jank e Silvia C. S. Karacristo. Ainda nessa seção, Stephania A. R. Batista Geraldini nos traz notícias desse Congresso, mas quero acrescentar a informação sobre o Tyson Prize (runner up) - América Latina, recebido por ela, em coautoria com Mariângela Mendes de Almeida. Ficam aqui registrados os cumprimentos aos três queridos colegas premiados, que representaram brilhantemente nossa Sociedade de São Paulo!

Agradecendo a parceria de Celso Antônio Vieira de Camargo e de toda a equipe do Jornal, espero que juntos possamos continuar desenvolvendo essa desafiadora e delicada função editorial, que nos traz tantos sonhos, por vezes "não sonhos" e sempre, muito aprendizado...

A todos, uma proveitosa e onírica leitura!

 

Referências

Freud, S. (1990a). Um estudo autobiográfico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 11-92). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925 [1924]         [ Links ])

Freud, S. (1990b). A história do movimento psicanalítico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 14, pp. 12-82). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914        [ Links ]

Freud, S. (1990c). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vols. 4-5, pp. 1-566). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1990d). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXIX - Revisão da teoria dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22, pp. 17-43). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933 [1932]         [ Links ])

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