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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dic. 2017

 

SONHOS

 

"Me alugo para sonhar": algumas ideias sobre sonhos e sonhar em psicanálise

 

"I rent myself to dream": some ideas of both dreams and dreaming in psychoanalysis

 

"Me alquilo para soñar": algunas ideas sobre los sueños y el soñar en psicanálisis

 

"Je m'amène à rêver": quelques idées sur le rêve et le rêver en psychanalyse

 

 

Edival A. L. Perrini

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Membro fundador e efetivo com função didática do Grupo Psicanalítico de Curitiba, GPC. Curitiba. edivalperrini@gmail.com

 

 


RESUMO

O autor reflete sobre o sonho e o sonhar fora e dentro da sessão analítica. Destaca a presença forte do sonho na psicanálise, desde Freud. Através de exemplos clínicos, apresenta o sonho, o sonhar, o sonho-a-dois, o sonho noturno e o sonho diurno como importantes fatores de comunicação entre analista e analisando.

Palavras-chave: sonho, sonho-a-dois, sonhar, reverie, comunicação em psicanálise


ABSTRACT

The author writes a reflection on the concepts of dream and dreaming both outside and within the psychoanalytic session. Dreams have had a strong presence in Psychoanalysis since Freud, the author emphasizes. In this paper, the author demonstrates, by using clinical examples, that dreaming, dream, dream for two, nightdream, and daydream are important factors of communication between analyst and analysand.

Keywords: dream, dream for two, dreaming, reverie, communication in Psychoanalysis


RESUMEN

El autor hace una reflexión sobre los sueños y el soñar, fuera y dentro de la sesión analítica. Destaca la fuerte presencia del sueño en el psicoanálisis, desde Freud. A través de ejemplos clínicos, presenta el sueño, el soñar, el sueño entre-los-dos (analista- paciente), el sueño nocturno y el sueño diurno como importantes factores de comunicación, entre analista y analizado.

Palabras clave: sueño, sueño entre-los-dos (analista-paciente), soñar, reverie, comunicación en psicoanálisis.


RÉSUMÉ

L'auteur réfléchit sur le rêve et le rêver en dehors et en dedans de la séance analytique. Il souligne la forte présence du rêve en psychanalyse, depuis Freud. Grâce à des exemples cliniques, il présente le rêve, le rêver, le rêve à deux, les rêves de nuit et ceux du jour comme des facteurs importants de communication entre l'analyste et l'analysant.

Mots-clés: rêve, rêve à deux, rêver, rêverie, communication en psychanalyse


 

 

"O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela." E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

Em termos concretos - perguntei no fim -, o que ela fazia?

Nada - respondeu ele, com certo desencanto. - Sonhava.

(García Márquez, 1992, p. 100)

 

I. Introdução

Das proposições relevantes que a psicanálise e a arte nos oferecem, o tema dos sonhos suscita inquietação pela densidade de mistérios que traz em seu âmago. Presente na vida humana em diferentes dimensões da curiosidade popular e do conhecimento, encanta a vida e provoca manifestações em diversas áreas da criatividade. A epígrafe acima, retirada do conto de Gabriel García Márquez "Me alugo para sonhar", cujo título tomo de empréstimo para nominar este trabalho, expõe a dimensão desse mistério ao privilegiar a história de Frau Frida, personagem que, até pelo nome, remete-nos aos primórdios da psicanálise. Frau Frida situa os sonhos na alma humana - pela sua condição espontânea de sonhar e fazer uso genuíno disso - entre o desconhecido e o conhecido, o insaturado e o saturado, o finito e o infinito, o nada e o tudo.

Dentro dessa peculiar geografia faz sentido, mesmo muitos anos depois, o prefácio que Freud escreveu para a terceira edição inglesa de "A interpretação dos sonhos" (1900/1969), em março de 1931:

Este livro, com a nova contribuição à psicologia que surpreendeu o mundo quando de sua publicação, permanece essencialmente inalterado. Contém, mesmo de acordo com o meu julgamento atual, a mais valiosa de todas as descobertas que tive a felicidade de fazer. Um discernimento claro como esse só acontece uma vez na vida. (Freud, 1900/1969, p. 38)

Ciente da força que temos para repetir, para dizer de novo tantas coisas que já foram ditas, o outro desafio deste trabalho é dar a ele uma dimensão particular, recolher elaborações, apreensões e construções singulares que os vários anos de clínica psicanalítica e exercício da poesia permitem. Desta maneira, sonhos dos meus analisandos, sonhos meus, sonhos transformados em poemas, e sonhos sonhados pela dupla analítica, os "sonhos-a-dois", ganham força de "realização", como sugere Bion (1962/1980; 1963/2004). Nesse contexto é que apresento algumas ideias sobre sonhos e sonhar, em psicanálise, levando em conta tanto os sonhos noturnos como os sonhos diurnos.

Não há melhor caminho para o exame do sonho do que vivenciar a sua natureza surpreendente: eis a outra fronteira presente no objetivo desta comunicação.

"Proa" é um poema que expressa o tomar posse desse movimento essencial que hoje vivencio e privilegio no sonho: ir ao encontro do outro, movimentar-se, construir parcerias, buscar a fertilidade criativa na vivência humana intrapsíquica e intersubjetiva:

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Que venham as tormentas, que venha o que vier,
tenho o sonho comigo, o sonho é meu pastor.

O mundo da aparência não me engolirá.
Conheço bem suas manhas, meu ofício é interior:
girassol que é girassol tem proa pro amanhecer.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Com ele eu teço o mundo, reinvento a via láctea.
Mistérios são bem-vindos, o sonho é meu pastor.

Ou eu busco a verdade ou ela não me achará.
Minha verdade, o sonho, é pomar e é brasão.
Seu universo, os versos, fio do sim e do não.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Encontro nele a luz, meu alimento e cor.
Que escorra a ampulheta, o sonho é meu pastor.
(Perrini, 2001, p. 83)

Sobre a qualidade dos sonhos, como realidade psíquica indiscutível e como potencial de comunicação na clínica psicanalítica, tomo emprestada do diálogo entre Hilda Doolittle e Freud a sua dimensão:

"Não sei se sonhei isso ou se simplesmente imaginei isso, ou se depois imaginei que sonhei isso." "Não importa", ele disse, "se você sonhou ou imaginou ou se simplesmente inventou isso, esse momento. Não acho que você falsificaria deliberadamente suas descobertas. O importante é que isso mostra a tendência de sua fantasia ou imaginação." (Doolittle, 1956/2012, p. 146)

Há que se considerar também a enorme construção que se fez sobre o manejo e o impacto dos sonhos em nossa clínica cotidiana. Da descoberta de Freud, em 1900, aos dias de hoje, centenas de colegas se debruçaram sobre o inquietante tema, valorizaram suas observações, partilharam suas ideias, e nos permitem perceber que a psicanálise contemporânea oferece um profícuo instrumental para que possamos acolher e trabalhar os sonhos e o sonhar, em nossas salas de análise. Outra construção, não menos significativa, ocorreu nestes anos de trabalho, dentro de cada um de nós.

O sonho se energiza com a força da vida apreendida no desafiador tempo presente, o agora que movimenta a psicanálise e os psicanalistas.

Internalizados o sonhar, o sonho noturno, o sonho diurno e o sonhar-a-dois como instrumentos de apreensão da experiência emocional e das "transformações" (Bion, 1965/2004) que a dupla analítica experimenta na sessão, podemos criar um "lugar" em que se vive a psicanálise. A palavra "alugar", escolhida por Gabriel García Márquez para localizar a vitalidade do sonho em "Frau Frida", me toca, e a uso neste trabalho porque sua origem marca exatamente a raiz latina, locus, que significa "lugar".

Interessante que a sensibilidade popular transformou a palavra "alugar" em "tomar todo o tempo de alguém" (Houaiss, p. 105), o que também coincide com o que observo no meu exercício psicanalítico: todo o tempo estou à disposição de meus sonhos para sentir por onde caminha a experiência emocional vivida com meu analisando.

Somente com base em mudanças internas faz sentido observar a transformação do "analista intérprete", como está em "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1969, p. 376), para o analista que "contracena" com os elementos que brotam na sessão, no sonho, na fala, em tudo aquilo que vamos sentindo no contato com o analisando: o que emerge no devaneio do analista. "O sonho do paciente mostra cenas que constituem um enredo ou história que estimulará o analista a contracenar no campo analítico" (Cassorla, 2009, p. 91).

Toda a riqueza conceitual descoberta por Freud fica preservada e considerada: o sonho como realização de um desejo, a presença da busca mental de representação, os movimentos acionados pela condensação, pelo deslocamento, a procura da simbolização, o caminho entre o pensamento onírico latente e o que realmente pode ser expresso, os meandros que percorrem os afetos nos sonhos. À medida, porém, que o psicanalista pode contracenar com o sonho do analisando, que sua "intuição psicanaliticamente treinada" (Bion, 1965/2004, p. 32; Sapienza, 1997, p. 101; 2001, p. 18) se mostra sensível a essa parceria, a comunicação do sonho - e o próprio entendimento do que é sonho - se expande, e adquire novas possibilidades de apreensão: "nós temos (passamos a ter) olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos" (Couto, 1994/2012, p. 13).

A experiência psicanalítica pessoal é vital para que esse viés possa ser atingido, construído e vivenciado como uma "experiência emocional" (Bion, 1962/1980). A intuição psicanaliticamente treinada é produto da relação de duplas psicanalíticas vivas, e é criada e se revigora em nossa análise pessoal, em nosso trabalho de psicanalistas clínicos, nas experiências de supervisão, e em reuniões, jornadas ou seminários em que podemos trocar experiências e ratificar conceitos com base na clínica partilhada. Quando a dupla psicanalítica constrói e contém essa parceria internalizada, o analista vive com o analisando uma experiência intrapsíquica e intersubjetiva: "A atividade clínica psicanalítica ocorre no campo de interação bipessoal e requer, além das condições mínimas do setting, um adequado equipamento mental do psicanalista" (Sapienza, 2001, p. 17). No dizer de Bion: "Uma experiência emocional não pode ser concebida fora de uma relação" (Bion, 1962/1980, p. 67).

Essa relação, quando internalizada, dá sentido e vida ao conceito de reverie (Bion, 1962): passa a fazer parte do continente analítico a possibilidade de o analista sonhar com base no sonho propriamente dito de seu analisando, e de todas as impressões sensoriais e emocionais oriundas da vivência da dupla. O analisando precisa do analista com intuição psicanaliticamente treinada para sonhar com ele. Fenômeno semelhante se dá entre o leitor e o poema, entre a pessoa e a obra de arte: a arte se "realiza" dentro de quem a observa quando há a possibilidade de existir esta experiência relacional, e, somente assim, a arte pode contracenar na produção de sonhos.

Essas questões, se consideradas, ampliam de forma substancial o que entendemos por "sonho", por "sonhar", por "pensar" e por "sonhar-a-dois", e passam a ser um instrumento vital da técnica psicanalítica.

O psicanalista "equipado" internamente com tais vivências contracena com seu analisando de forma natural e fértil, se as dificuldades inevitáveis da relação puderem ser contidas.

A familiaridade com esse olhar amplia significativamente a postura diante do que entendíamos originalmente sobre sonho e sonhar, e estabelece a dimensão do sonhar como alicerce de nossa atenção flutuante, e coração do "trabalho de sonho alfa". Naturalmente, deixa de existir uma fronteira rígida entre trabalho onírico do analista e trabalho onírico do analisando, bem como deixa de existir de forma separada aquilo que entendíamos como "transferência" e "contratransferência", para observarmos um fenômeno único: a "transferência-contratransferência".

Novas elaborações, colaborações e procedimentos técnicos emergem dessa experiência.

A diferença entre "sonho", "quase-sonho" e "não sonho", como está no útil e interessante trabalho de Rezze (2001), é um bom exemplo disso. Embora Rezze trabalhe com sonhos noturnos, fica muito claro que, se o dito "sonho" não é capaz de provocar associações de ideias, "pensamentos-sonhos", e se não leva o analista a ser tocado por impressões sensoriais que possam gerar trabalho de sonho-a-dois, este sonho perde a condição de ser chamado de sonho e fica situado como "quase-sonho" ou "não sonho". No "quase-sonho", por exemplo, o analisando ainda não tem acesso à função a que possa dar um significado àquilo que ele produz no "sonho". Não podendo chegar a nenhum significado, nem podendo sentir nenhuma emoção, o analisando não pode viver nenhuma transformação utilizável na relação com o analista. No "não-sonho" o que se observa é que áreas da mente que não podiam ser nomeadas, nem significadas, seguem sendo não nomeadas, nem significadas, apesar de poder haver aí, aparentemente, uma boa relação analítica: há o par, mas ainda é um par predominantemente estéril.

O mesmo critério pode ser expandido para a obra de arte. Se o poema, por exemplo, não puder mobilizar o leitor, se não despertar nele associações, pensamentos-sonhos, devaneios, se não o tocar internamente, estaremos diante do "quase-poema" ou do "não-poema".

 

II. Vinhetas

As vinhetas clínicas apresentadas a seguir mostram como trabalho clinicamente com as ideias destacadas nesta comunicação, e como sigo o movimento-proa dos sonhos que emergem em mim, com base nos estímulos-sonhos trazidos pelos analisandos.

1) Vera

Vera chega para a sessão, e observo que, ao entrar, não tranca a porta que separa o hall da sala de espera para o hall da sala de análise, como habitualmente faz. Me cumprimenta de forma pesada, como se estivesse muito cansada, e observo que seu corpo está ligeiramente arcado. Me entrega o valor dos honorários, em dinheiro, deita no divã e diz: "Me sinto aliviada!" Observo a discrepância entre o "peso" que percebi em sua entrada e o "alívio" que agora ela comunica, mas não digo nada. A sensação "pesada" que sinto desde sua chegada vai me tomando de uma forma clara, forte, como uma fotografia muito nítida.

Após pequeno silêncio, Vera passa a falar de amenidades que seguem me parecendo completamente distônicas com o clima de sua chegada. Como a imagem-fotografia de sua chegada segue forte e nítida em mim, e como observo que o que ela diz não me toca, não estimula nenhuma lembrança, ou imagem, ou devaneio, aponto o que observo. Digo-lhe que vi cansaço nela, um "peso" que ela me pareceu estar carregando, e incluo o fato de ela não ter trancado a primeira porta da sala. Mostro como era diferente a forma pela qual entrou na sala do modo com que fala, agora, no início de nosso encontro.

A persistência dentro de mim da "imagem-fotografia" pesada de sua chegada, mesmo após ela seguir falando de outros assuntos aparentemente mais amenos, é o único resquício de uma tentativa de sonho diurno que não evolui em mim. A observação da presença de nada que me toque, na sequência, confirma o sonho que não se estabelece, e sinaliza para que eu faça a comunicação que fiz.

Ela sorri, como se sentindo compreendida, e passa a falar sobre o peso que realmente sente de perceber que se enganou com a reação de seu marido, que, na verdade, a estava ajudando em relação à morte do marido de uma amiga, atitude de que ela, em sessão anterior, havia duvidado e sublinhado como não possível.

Diz pensar que ele devia ser poupado dos detalhes violentos que acompanharam aquela morte, e não achava que falar disso comigo, de novo, pudesse ter algum valor. Inclui também, na sensação de peso, a observação dolorosa de que a amiga estava reagindo, quanto à morte do marido, de forma "concreta e pouco sensível". Ambas as constatações a deixavam "muito decepcionada", já que acreditava ser distante a possibilidade da ajuda do marido, e não esperava que sua amiga, "por ser muito parecida com ela, feito uma irmã natural, sem tirar nem pôr", pudesse ter aquela reação tão diferente da que ela achava que teria.

Em seguida, lembra-se de não ter trancado a porta, e associa isso com um sonho em que ela, menina, habitava uma casa que era separada de outra casa anexa por uma porta, que permanecia sempre trancada. Em determinado momento, aparece, pela porta fechada que agora se abre, outra menina, e ela, adulta, pode dizer para ambas: "Agora vocês podem brincar juntas". Acrescenta ser ela a menina que permanecera fechada por muito tempo: "a minha menina que sempre trancava as emoções quando as sentia perigosas, e que, com a análise, pode deixá-las entrar".

A comunicação de que a análise a deixa mais livre para "brincar" me chega como uma imagem embaçada, neblina que não permite ver o que se passa com clareza. Preciso aguardar que essa imagem torne-se clara em mim, enfraqueça ou desapareça.

De repente, percebo que sua autorização é "apenas para brincar", ou seja, o "habitualmente permitido". Esta apreensão é acompanhada de uma clareza nítida, agora sem neblina. Posso dizer-lhe, então: "E brigar, não pode? Duas crianças que podem brincar podem brigar também, ou não?"

Ela acha graça, e lembra que deve ter sonhado esse sonho porque tinha lido sobre outro sonho, descrito em livro de Antonino Ferro (2007/2011, p. 19), em que havia referências a um sonho com casa, portas fechadas e trancadas, e que lá o fato de ter sido trancada a porta permitiu aparecer, na pessoa que sonhou, uma experiência muito ruim e desagradável de pânico.

Lembra também que, para que pudesse me pagar, teve de brigar, no banco de onde retirou o dinheiro, pois havia tido um problema com o caixa eletrônico. Este havia retido uma das notas, deixando-a com um valor menor do que o que havia programado retirar para o pagamento. Como o gerente do banco se negava a liberar o dinheiro que faltava, em espécie, e insistia em depositá-lo depois, em sua conta, ela foi firme com ele, e ficou contente por não o ter poupado, exigindo que ele lhe desse o dinheiro imediatamente, para que pudesse efetuar seu pagamento pontualmente.

A possibilidade de valorizar as impressões-sonhos causadas em mim pela observação da porta não trancada, o clima "pesado" de sua entrada, as imagens que se formaram, ora com nitidez, ora com embaçamentos-neblina, permitiram uma conversa viva. Vera pôde, até mesmo, perceber que valoriza a análise, considera sua relação comigo, mas isto não evita que tenhamos de lidar com seu desconforto e ódio pelo tanto que a análise custa, até financeiramente, e pelas coisas desagradáveis que sente comigo e que gostaria de não sentir: o que fazer, por exemplo, com o medo-certeza de que ela vai reagir como a moça do sonho lembrado e descrito por Antonino Ferro, que deságua sempre no pavor e no pânico?...

As nossas falas, associações e imagens-sonhos permitiram que evoluíssemos juntos na possibilidade de pensarmos os "freios" e as "trancas" que o temor da intimidade, da percepção da intensidade da vida psíquica (Perrini, 2011) e da ambivalência traz, mas que, quando pode ser reconhecido, pode ser nominado, "realizado" e acolhido.

2) Helena

Helena chega 20 minutos atrasada. Entra na sala aflita e pede desculpas pelo atraso. Deita no divã e fica alguns minutos em silêncio. Reparo que está inquieta. Aponto sua inquietação, e ela responde: "Está tudo muito difícil". Volta ao silêncio e permanece inquieta, enquanto vai se formando em mim uma nuvem espessa, que me traz sensações desconfortáveis de tempestade acompanhadas de ideias e imagens de um grave acidente de carro com muitos mortos e feridos.

Depois de algum tempo pergunto o que está pensando, e ela me diz: "Em um sonho estranho". A inquietação aparentemente diminui nela, mas em mim segue o clima de desconforto. Me percebo assustado com as imagens de um acidente que agora reconheço mais claras: foram vistas em jornal que li pela manhã e tratavam de uma família que se dirigia ao litoral e havia sido atropelada com seu carro por um caminhão desgovernado e sem freio.

Ela prossegue dizendo que sonhou estar durante muito tempo dando peixe para o seu cachorro. E que, diferentemente dela, seu cachorro gostava de peixe. Era uma situação muito prazerosa para ele e para ela. Mas "o estranho é que eu não gosto de peixe, eu não como peixe. Só como peixe que não tem gosto de peixe".

Como sua fala é calma e clara, e muito diferente do estado inicial da sessão, aponto para ela esta diferença. Ela concorda, mas segue dizendo que aquilo é estranho. Volta ao silêncio. Em seguida, diz que o único peixe que gosta de comer chama-se "Filhote". Lembra que "Filhote" é um peixe enorme, que chega a pesar 300 kg. Observo agora, quando me percebo mais livre, a imagem de um bebê que aparece junto a nós, na sala de análise: um "filhote" da sua experiência-tempestade comigo, e que ela sente ser do tamanho do peixe-nosso-encontro? Indigesto, grande demais, difícil de ser acolhido, impossível de ser cuidado, que corre grande risco de não sobreviver, ser atropelado por alguma coisa desgovernada?

Observo e comunico para ela que, apesar do mal-estar, ela diz gostar daquele "filhote".

Lembro-me, então, com clareza e nitidez, de que esse peixe era chamado pelos índios de "piraíba", e que na linguagem tupi isto significa "peixe ruim".Aponto issto a ela, que diz ser "curioso", acrescentando que "tem sempre muito medo, e que sentir todas as coisas assim difíceis é muito ruim".

Mesmo apontando haver uma esperança na vivência que temos tido de conversarmos sobre essas coisas, ela retorna ao silêncio e à inquietação inicial, enquanto nuvens negras voltam em mim. Digo-lhe que ela acredita que só pode ter "coisas ruins". Como sentir é uma experiência sempre acompanhada de algum desconforto, de alguma dor, ela sente que tudo sempre é muito difícil. Mostro seu receio-certeza de que, no fim, tudo aquilo vai se desgovernar e terminar em tragédia. Digo-lhe também que ela ainda não me sente suficientemente junto para que possamos acolher e experimentar os peixes que podemos pescar, para juntos descobrirmos o gosto e o perigo que estes "peixes" realmente representam.

Ela concorda, mas é uma concordância que me parece ainda intelectual. Volta a ficar em silêncio e inquieta até o final da sessão. Em mim, há agora uma sensação de relativo conforto: Helena está buscando formas de me comunicar seus terrores, e sinto isto como um movimento de vida.

Entendo o sonho de Helena como um "quase-sonho", conforme Rezze (2001). Há um contato comigo, há a demonstração de sua angústia, há a produção de um "sonho", há um trabalho sobre as imagens-sonhos que ele nos suscita, mas ela escuta o que conversamos de forma ainda concreta, intelectual, desconfiada, e o resultado de nosso encontro permanece algo estéril para acolher seu desconforto e provocar algum tipo de expansão mental: Helena ainda precisa garantir a sua sobrevivência mental.

Chegamos ao final da sessão de forma parecida a como começamos. Vejo que precisamos continuar sonhando juntos seus "quase-sonhos" e seus "sonhos não sonhados" (Ogden, 2005/2010), até que o seu mundo interno possa suportar comigo o trabalho de chegarmos a elementos oníricos com possibilidade de serem acolhidos, de serem pensados, de poderem ter significados vitais para ela, para mim e para nós.

3) Roberto

Aguardo Daniel chegar. Ele está 10 minutos atrasado, situação que não é habitual. Sinto-me tranquilo enquanto espero, mas percebo algumas vezes que algo difuso me intriga, pois me vejo pensando que ele é um analisando que não se atrasa. Aos poucos, vou-me dando conta de que estou ansioso.

Quando ouço a porta externa abrir e me levanto para recebê-lo, vejo que quem entra é Roberto. Me sinto perturbado, e me vejo fortemente desejoso de apontar a Roberto que ele está no horário errado. Consigo, com esforço, não falar nada e, em instantes, me dou conta do meu equívoco. Meu lapso segue me perturbando durante um tempo, que me parece enorme. Penso que se trata de acontecimento raro, em minha experiência clínica, mas pensar isto não me acalma. Me vejo tentando lembrar quando isso aconteceu antes, e não consigo. Percebo que o mal-estar e a erupção de muitas ideias desconexas me embaralham. Vivo uma experiência forte e desagradável de não conseguir "voltar a ser eu mesmo", como se tivesse me perdido de mim.

Quando consigo voltar para a sessão, percebo o analisando falando coisas que parecem banalidades. Me sinto convidado a ter uma conversa social. Como a forma de ele falar segue do mesmo jeito, que também não é o seu habitual, digo-lhe que estranho o seu atraso, como estranho a forma de ele conversar comigo: ambas as coisas me parecem diferentes do que eu conheço dele. Parece que não somos nós que estamos conversando. "Que estranho!", ele me diz. "Eu me sinto, mesmo, muito estranho, como se fosse outra pessoa: 'despersonalizado!', esta é a palavra!"

A partir daí pudemos conversar sobre sua angústia, e ele pôde dizer do pavor de constatar que as alegrias que sente com conquistas profissionais e pessoais que vem tendo estão impossíveis de ser desfrutadas, pois parece haver um demônio dentro dele dizendo o tempo todo que ele não merece aquilo.

Não há "sonho" nesse material clínico, se olharmos pelo viés freudiano. Se pensamos, porém, no trabalho do sonho alfa, o que acontece com analista e analisando, trata-se de um lapso que toca o analista como um sonho diurno, um trabalho de sonho do analista, e um trabalho de sonhar-a-dois, que permite, primeiro ao analista, perceber a função do seu lapso, a inicial "conversa social" do analisando (trabalho do sonho) e, finalmente, a possibilidade de o par analítico evoluir para questões emocionais ("eu perdido de mim" e a "despersonalização", por exemplo) que, no início da sessão, pareciam funcionar apenas como resistência.

 

III. Conclusão

Minha experiência clínica atual - "me alugo para sonhar" - está alicerçada na valorização de todos os detalhes que podem ser apreendidos na sessão, como assinala Ogden (2005/2010), mesmo aqueles que parecem nada ter a ver com o encontro analítico: ideias banais do dia a dia, lembranças novas ou antigas, músicas ou letras de músicas, poemas, enfim, tudo o que, antes, parecia ser dificuldade ou distração do analista, do analisando, ou resistência de ambos. O sonho, o sonhar noturno ou diurno, o trabalho do sonho e o sonhar-a-dois funcionam como uma bússola: neles há um norte que, se o apreendemos com paciência, determinação e fé, permite ao analisando e o analista irem construindo uma direção de investigação, conhecimento e experiências emocionais vividas que nos aproximam do nosso ser genuíno.

As resistências em mergulhar nesse novo "lugar" em que vivemos juntos com o analisando experiências que nortearão nosso caminho analítico são entendíveis: há uma troca de paradigma na forma técnica de exercermos a psicanálise. Sai-se da "neutralidade" e da valorização contratransferencial tida como obstáculo à análise -fatores que por décadas fizeram parte da técnica e da prática analítica -, para se trabalhar na intimidade, na consistência da assimetria construída sobre uma intuição treinada psicanaliticamente entre analista e analisando, e na valorização de toda comunicação como fator gerador de so- nho e de transmissão de conteúdos pré-verbais disponíveis para o trabalho de sonho e para o sonhar-a-dois.

Passamos a lidar com uma presença inquietante. Há um movimento a partir e em torno de uma multidão de pequenos caminhos. Um movimento plural que busca uma mente multidimensional. Precisamos acolher e conter a necessidade humana de escolher depressa uma direção, e, muitas vezes, precisamos desprezar o caminho que, inicialmente, parece ser o óbvio. De repente, abre-se uma alternativa, e ela faz sentido. E, quando a dizemos, percebemos, com surpresa, que não chegaríamos nunca a ela pelo convencional caminho do entendimento causal e da razão.

O trabalho de sonho alfa (proa) e o sonhar-a-dois englobam e expandem a noção inicial de sonho percebida por Freud, e confirmam o que pode ser apreendido deste trabalho: os sonhos estão, na alma humana, entre o desconhecido e o conhecido, o insaturado e o saturado, o finito e o infinito, o nada e o tudo. Se podemos acolher de verdade esse infinito, ir além dos anteparos naturais que tendemos a construir para nos "proteger", então "os mistérios são bem-vindos": me alugo para sonhar, pois o sonho é nosso pastor.

 

Referências

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Recebido em: 8/9/2017
Aceito em: 29/9/2017

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