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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017

 

SONHOS

 

Sonhando na sessão: comunicação primitiva e constituição do espaço psíquico

 

Dreaming in the session

 

Soñando en la sesión

 

Rêver dans la séance

 

 

Teresa Rocha Leite Haudenschild

Membro efetivo, analista didata e analista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. thaudenschild@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste trabalho, um paciente que nunca sonhou começa a dormir e a sonhar nas sessões, sempre acompanhado pelas interpretações da analista, que visam a articular as cenas desconexas dos sonhos, para que ele possa dar significado a suas experiências emocionais e se apropriar de seus recursos psíquicos - desde a discriminação de seus impulsos e sentimentos, até a consciência de como utilizá-los em suas relações objetais. Em análises de pacientes cuja comunicação é predominantemente muito primitiva, a autora propõe que o analista privilegie a escuta e a apropriação dos recursos psíquicos. Ela acredita que, se o analista favorecesse prematuramente algumas interpretações nas quais fosse ressaltada a transferência, a análise resultaria em impasses, e isso poderia comprometer a constituição e ampliação do espaço psíquico do analisando, procedimento básico para futuros desenvolvimentos. Serão apresentadas vinhetas clínicas referentes a um paciente de 47 anos, em análise há cinco. Nesse material, as interpretações visam à apropriação, pelo paciente, de seus recursos singulares. Essas interpretações predominam sobre as transferenciais, as quais, pouco a pouco, podem surgir.

Palavras-chave: reverie, continência, pensamento onírico de vigília, interpretações transferenciais, comunicações primitivas


ABSTRACT

This paper is about a patient who had not dreamed until he started sleeping and dreaming during the psychoanalytic sessions. The analyst makes interpretations on these dreams in order to articulate the disconnected scenes of the patient's dreams. It enables this patient to give meaning to his emotional experiences and hence he becomes capable of appropriating his psychological resources: from his impulses and feelings to his awareness of how to apply them in object relationships. In the analysis of patients whose communication is mostly very primitive, the author suggests that psychoanalysts should prioritize the listening and the patient's appropriation of psychological resources. If the analyst prematurely preferred some interpretations that emphasized transference, the analysis would result in impasses, the author believes. This preference might compromise both constitution and expansion of the analysand's psychological space which is the basic process for future development. The author brings clinical vignettes of a 47 year old patient who has been in analysis for 5 years. In these vignettes, the purpose of the interpretations is the patient's appropriation of his unique resources. These analyst's interpretations prevail over transferential interpretations which may gradually happen later.

Keywords: reverie, continence, oneiric thinking of vigil, transferential


RESUMEN

En este trabajo, la autora presenta el caso de un paciente, que antes nunca había soñado, que comienza a dormir y a soñar en las sesiones, acompañado por las interpretaciones de la analista dirigidas a articular las escenas desconectadas de los sueños, para que él pueda dar significado a sus experiencias emocionales y apropiarse de sus recursos psíquicos - desde la discriminación de sus impulsos y sentimientos, como también, la conciencia del uso que hace de ellos en las relaciones objetales - constituyendo, así, su espacio mental. En análisis de pacientes que tienen un tipo de comunicación muy primitiva, la autora propone que el analista priorice la escucha y la apropiación, por parte del paciente, de sus recursos psíquicos. Desde su punto de vista, si el analista hiciera, prematuramente, interpretaciones basadas en la transferencia, eso no sólo podría llevar a impasses en el análisis, como también podría comprometer la constitución del espacio psíquico del paciente, que es fundamental para que ocurran desarrollos futuros. Presenta material clínico de un paciente de 43 años, que está en análisis hace cinco años. En este material, las interpretaciones están dirigidas a que el paciente pueda apropiarse de sus recursos psíquicos singulares. Ese tipo de interpretaciones predominan sobre las interpretaciones transferenciales que irán surgiendo poco a poco.

Palabras clave: reverie, continencia, pensamiento onírico, interpretaciones transferenciales, comunicaciones primitivas


RÉSUMÉ

Dans ce travail, un patient qui n'a jamais rêvé commence à dormir et à rêver pendant les séances, accompagné toujours des interprétations de l'analyste, qui visent à articuler les scènes disjointes des rêves, afin qu'il puisse donner un sens à ses expériences émotionnelles et s'approprier de ses ressources psychiques - dès la discrimination de ses impulsions et de ses sentiments, jusqu'à la prise de conscience de comment les utiliser dans ses relations d'objet. Dans les analyses de patients dont la communication est surtout très primitive, l'auteur propose que l'analyste privilégie l'écoute et l'appropriation des ressources psychiques. Elle croit que, si l'analyste favorisait prématurément certaines interprétations dans lesquelles le transfert était mis en relief, l'analyse entraînerait des impasses et cela pourrait compromettre la constitution et l'expansion de l'espace psychique du patient, une procédure de base pour des développements futurs. On présente des vignettes cliniques concernant un patient âgé de 43 ans, qui est en cours d'analyse il y a 5 ans. Dans ces exemples, les interprétations visent à que le patient s'approprie de ses propres ressources singulières. Ces interprétations prédominent sur les transférentielles qui peuvent surgir peu à peu.

Mots-clés: rêverie, continence, pensée onirique de veille, interprétations transférentielles, communications primitives


 

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é focar comunicações do paciente relativas a funcionamentos psíquicos muito primitivos, alguns anteriores aos da posição esquizoparanoide, em que a noção do objeto (analista) e de si pelo sujeito já aparece, ainda que parcialmente (como o seio provedor e a boca que recebe).

Enquanto na posição esquizoparanoide o paciente manifesta controle, tirania, raiva etc., pois já tem um self mais integrado, nos funcionamentos correspondentes a estados de não integração de self (Winnicott, 1960/1982c), o paciente não tem noção de si e do objeto, mostra-se confuso, passivo, alheio (pode até apresentar manobras autísticas), e o analista terá que buscá-lo lá onde ele está.

Isso implica uma técnica mais ativa, em que o analista, com sua imaginação e seu repertório onírico (Bion, 1967), propõe significados para as experiências emocionais do paciente, como Melanie Klein fez com Dick, ao brincar com o trenzinho (1930).

Na clínica, o analista deve estar muito atento às mudanças do funcionamento mental do paciente, pois ele pode estar funcionando ora em estados de não integração, ora em estados de relação parcial de objeto, ou até em estados mais evoluídos.

Essa atenção é crucial, pois vai determinar o foco da intervenção ou interpretação. E, para captar qual é a intencionalidade (ou não intencionalidade: quando o sujeito nem sabe que existe, por exemplo) do paciente no momento, o analista precisa, fundamentalmente, estar atento a seus próprios sentimentos contratransferenciais. Precisa chegar muito perto da confusão do paciente, pois é por meio dessas formas confusas de vida mental que alguma forma vai se delineando (Haudenschild, 1987, 1996/2015c).

A vida tem formas harmoniosas (Langer, 1953/1980), rítmicas, que nunca se repetem, por mais semelhantes que sejam (na estrutura harmoniosa de uma árvore jamais um galho é igual a outro), formas que os artistas captam tão bem e expressam em suas pinturas, músicas, esculturas.

Essa sensibilidade para a captação da vida, em suas mais variadas formas (mesmo as mais sem vida, mais repetitivas), é adquirida pelo analista ao longo de sua própria vida viva (de ligação com suas próprias experiências emocionais em suas relações com seu mundo interno e externo), em sua análise e trabalho com os pacientes.

O analista afina sua escuta psíquica em todas as suas relações vitais. Essa é a genial descoberta de Freud: só se pode ganhar compreensão dos fenômenos psíquicos na relação interpsíquica. Ele põe duas pessoas numa sala para que uma ajude a outra a ganhar compreensão de sua vida psíquica, aí começa a psicanálise e sua especificidade.

A grande distinção entre a psicanálise e a abordagem dos organicistas, e de alguns desenvolvimentalistas, é que estes pressupõem ganhar compreensão do psiquismo de um sujeito como se ele fosse isolado, e cujo funcionamento pudesse ser observado como se faz em uma investigação num laboratório científico, como se houvesse uma "correnteza psíquica" independente de qualquer relação, ou apenas dependente de fenômenos biológicos naturais.

A mente não cresce como um vegetal, não desabrocha como uma flor: ela é constituída na relação com outra pessoa (objeto), passo a passo, talvez desde a vida intrauterina (Meltzer, 1989). O que se sabe, atualmente, é que as primeiras relações psíquicas do sujeito com o objeto cuidador (mãe) são determinantes para a compreensão e representação pelo sujeito de suas próprias experiências emocionais, desde as mais primitivas (Haudenschild, 2015b).

 

Sonhando com o analisando: utilizando a capacidade de reverie

Bion (1962a) chama de reverie a capacidade da mãe de sonhar, dar significado às experiências emocionais de seu bebê: metabolizar suas emoções confusas, sentidas por ele como indigestas, impensáveis, das quais ele pode até querer livrar-se. Essa capacidade pressupõe que a mãe já tenha adquirido suficiente maturidade psíquica, com predominância do nível genital de funcionamento mental para escutar as comunicações do bebê, discriminá-las, nomeá-las e devolvê-las mais digeríveis para ele.

Bion diz que desse modo a mãe recebe as identificações projetivas do bebê, devolvendo-as com um sentido.

Mas, quando são mais primitivas as comunicações, e nelas o sujeito pode estar num estado de passividade em que não está fazendo uso de identificações projetivas, penso que o analista também tem que usar sua capacidade de reverie para propor sentidos às comunicações do paciente.

Na análise de crianças isso é feito por meio de brinquedos, com os quais muitas vezes o analista monta pequenas cenas, dando conta da situação emocional vivida pela criança naquele momento. Ou então essa situação é dramatizada, expressivamente, na brincadeira do analista com o paciente (Haudenschild, 1993/2015a). Essa técnica é extremamente eficiente pela imediatez da comunicação e também pela figurabilidade.

Bion põe a figurabilidade, a representação ideográfica, por meio de imagens visuais, no umbral do pensar. A palavra grega phantasein quer dizer tornar visível. O brincar torna externamente visível a situação interna, que assim pode ser compreendida, ganhando representação visual, tornando-se o mundo interno colorido de fantasias relativas a seus objetos internos. O brincar põe em cena, dramatiza, aquilo que nunca foi vivido dessa maneira ou, às vezes, foi vivido fragmentariamente sem nenhuma compreensão do contexto da situação.

Com adultos o analista cria, algumas vezes, cenas visuais, modelos para a situação emocional presente, comunicando-as ao paciente, lembrando com base em seu pensamento onírico de vigília (Bion, 1962a) uma situação vivida por ele, uma cena de um filme, de um livro...

Tanto no brincar quanto no imaginar, o analista recorre ao seu repertório onírico, relativo às suas experiências emocionais já simbolizadas, que se alarga durante a vida e com uma análise pessoal suficiente. Sem deixar de lado a importância das aquisições culturais de sua época: literatura, artes etc.

Embora o analista tenha sempre que dispor de seu repertório onírico para poder acompanhar as situações emocionais vividas pelo paciente, poder escutá-lo de um modo sintonizado, ele deve distinguir quando emprestar seu repertório onírico, sonhar pelo paciente, ou não, quando este já pode sonhar suas experiências emocionais.

A seguir, trarei um paciente com falta de estruturação inicial de uma imagem estável de self e, portanto, uma imagem inestável dos outros (McDougall, 1975/1987). Paciente corajoso, eu diria, porque poucas pessoas assim procuram análise, pois, além da dificuldade de situar seu problema em seu psiquismo, não confiam em que alguém possa ajudá-las. Eu diria que naqueles que procuram análise há esperança de encontrar alguém que os ouça em sua singularidade. E, se esta basicamente vem à luz e se constitui no diálogo psíquico no início da vida com a mãe, quem não teve esta oportunidade ainda está à mercê do encontro de um objeto que se disponha a tal diálogo, muitas vezes em nível pré e não verbal, para poder encontrar-se consigo mesmo. É nesse diálogo, em que a mãe contém as identificações primitivas do bebê, que ele, além de introjetar os conteúdos projetados por ele (elementos beta) e metabolizados por ela (elementos alfa), vai introjetando continência e a capacidade de pensar (função alfa).

O paciente que vou apresentar teve no início de sua vida, no meu entender, uma mãe muito prejudicada psiquicamente. Não teve oportunidade de estabelecer com ela um saudável diálogo inicial, em que pudesse conhecer suas emoções e constituir seu self com representações adequadas de suas relações externas e internas, e muito menos adquirir autocontinência com base em um objeto continente. No início sua análise consistiu em dar continência para suas confusas emoções, nomeá-las e explorar seus significados, para que ele paulatinamente fosse construindo continência para elas, constituindo sua realidade psíquica. Assim, se fossem dadas interpretações saturadas e fortes de transferência (do medo do encontro, por exemplo), a continência adquirida pelo analisando até aquele momento do processo analítico poderia ser rompida, ou resultar em transferência negativa, paralisação, ou até interrupção da análise.

Mário

Mário tem 47 anos. É professor universitário, trabalha sempre em equipes, mostrando-se reconhecido aos colegas que o auxiliaram a chegar aonde está.

O pai morreu quando ele tinha 20 anos, ocasião em que ele procurou análise, pois desejava suicidar-se. Depois dessa primeira, sucederam outras análises: já não aguento mais, são quase vinte anos de análise!, diz ele ao chegar. Portanto, ainda tinha esperança de encontrar uma análise que o ajudasse.

A mãe é descrita como totalitária: determina, nos mínimos detalhes, a vida de todos que a rodeiam. Mário é solteiro, já teve uma parceira com a qual viveu algum tempo, mas que o deixou. Atualmente tem uma namorada, que ele diz que é como sua mãe: quer que tudo seja feito à moda dela.

Ele nunca sonha, no sentido de fazer uma narrativa de um sonho, mas atualmente, quando interpelado por mim, conta ter visualizado, durante a sessão, uma pequena cena, o que mesmo assim é muito raro.

Primeira sessão da semana, no segundo ano de análise

Mário entra, deita-se e começa, como de costume, a enrodilhar uma ponta da blusa com os dedos, sem parar (como uma manobra autística).

Pergunto-lhe o que pensa, e ele me responde nada.

Depois passa a fazer uma série de interpretações: de que ele pode estar pensando em nada, pois está com raiva de mim pela separação, então sumiu comigo e então ele sumiu também, e agora não pensa em nada. É um castigo! - diz ele, e esta me parece a única parte viva do seu discurso. Mário é muito inteligente e assimilou intelectualmente muitas das interpretações que recebeu em suas análises, repetindo-as sempre no início das sessões, no meu entender para se defender do vazio afetivo sentido por ele, dessa sensação de ser nada.

De certa maneira, ele sobreviveu, alimentado inicialmente, de algum modo, pelas relações com a mãe e depois com os analistas. E a repetição das velhas interpretações, acompanhada do enrodilhar da ponta da blusa nos dedos, é como uma velha ladainha, a defendê-lo de nosso encontro vivo, que lhe desperta ansiedade. Penso que, devido à capacidade de gratidão de Mário, guardar essas interpretações de memória foi a maneira que encontrou de guardar dentro dele o interesse e o afeto que lhe deram seus analistas anteriores em seus encontros.

"Tem mais samba no encontro que na espera", diz o nosso Chico (Holanda, 1966), e é desse samba que Mário foge. Foge porque tem medo (por ter quase certeza) da desilusão. Mário, em vez de viver a ilusão primária (Winnicott, 1952/1982b), viveu a desilusão precoce. Em vez de ser realizada a sua preconcepção (Bion, 1965/1984), a sua expectativa de um "seio pensante" (de um objeto primário capaz de reverie), com a introjeção de um objeto compreensivo (Bion, 1962a) que lhe desse oportunidade de se conhecer e desejar conhecer outros objetos, Mário parece ter vivido a incompreensão, a introjeção de um objeto incompreensivo (Bion, 1962b). Em vez de poder "esperar o seio" alucinando-o positivamente (como descreve Freud), ele tem de sua relação primária uma alucinação negativa (Green, 1993) - uma certeza de que não há nada que possa alimentar seu psiquismo.

Com pessoas como Mário, em vez de trabalhar na espera, na perda, no luto, em suma, na separação, temos primeiro que garantir uma base firme de trabalho no encontro (Alvarez, 1992/1994), na experiência de contar com um objeto compreensivo, capaz de reverie.

Se, por exemplo, eu seguisse a ladainha de Mário, ficaria rodando em círculos com ela (o que ocorreu por longo tempo no início de nosso trabalho), e a análise ficaria paralisada. Dei-me conta disso ao atender Mário após uma criança autista que fazia círculos na parede com o dedinho, para prender minha atenção, acompanhada de uma vocalização monocórdia e contínua como um mantra. O mesmo padrão repetitivo e adormecedor imperava na fala de Mário, no início das sessões, muito distante de uma forma viva de comunicação, embora sofisticada e intelectual.

Assim como crianças autistas usam seus rituais, que as põem fora da vida, fora do tempo, pacientes como Mário podem passar anos repetindo explicações intelectuais, em todos os seus meandros, para enrodilhar-nos numa conversa circular que nos distancia da vida, da temporalidade. Assim como aquelas crianças, com imagem precária de self, necessitam rotinas para sentir-se minimamente seguras (se a rotina se quebra, sentem-se desmantelar), pessoas como Mário servem-se extensamente de explicações intelectuais repetitivas, e estas precisam ser levadas em conta, mas como defesas, proteções para um self frágil.

Em vez de levar ao pé da letra suas interpretações e acompanhá-las, eu as ouvia e esperava por outras comunicações, que podiam ser, por exemplo numa segunda feira, sobre o que tinha feito no final da semana. Esta era uma comunicação corriqueira, que um amigo faz a outro, de fatos acontecidos e de como ele se sentia aqui e ali com essa ou aquela pessoa.

Comecei, então, a distinguir para ele suas comunicações mortas das vivas, chamando a atenção para a vivacidade e o frescor de sua voz ao me contar o fim de semana, contrastando com a conversa congelada das interpretações psicanalíticas.

Mas isso não é psicanálise - disse ele -, psicanálise é pesado, faz a gente sofrer. Pensei novamente numa criança autista que mordia fortemente o polegar para encontrar coesão de self, em momentos de ameaça de não integração (Haudenschild, 1993/2015b; 1993/2015a ou 1997/2015b). Mário precisava ruminar sofisticadas interpretações psicanalíticas, que o machucavam, mas lhe davam algum sentido de existir para alguém: para seus analistas anteriores e para mim como analista, que, de acordo com ele, deveria também privilegiar esse tipo de fala.

Como a pessoa existe, fundamentalmente, para si mesma, precisando apropriar-se de sua vida (Bollas, 1989/1992), a primeira meta da análise de alguém como Mário é a apropriação, por ele, de seu self e das experiências que se dão com base neste.

Conjeturo que o narcisismo patológico da mãe a impediu de investir no narcisismo saudável de Mário e penso que um analista que desse interpretações com base em teorias clássicas, e o convidasse a vir até estas, estaria tendo a mesma atitude que a mãe. Não o estaria ouvindo em suas requisições básicas, de fortalecimento do self próprio. Só com base nesse fortalecimento pode haver uma verdadeira escuta das intervenções e interpretações do analista, e pode haver apropriação verdadeira do que o analista diz e um alargamento da personalidade do paciente.

 

Mário começa a sonhar (no seu quinto ano de análise)

Sessão de quarta-feira (penúltima da semana)

Após o remoer inicial das velhas interpretações, Mário permanece em silêncio, e, quando pergunto sobre o que está pensando, ele responde nada, como de costume. Percebo que seu corpo está mais tenso, como que esticado da cabeça aos pés, as mãos fechadas e contorcidas sobre o peito. Aguardo os relatos costumeiros, que nesse momento estão ganhando mais vida, mas, como eles não vêm, arrisco perguntar: "O que é que você tem dentro do seu peito?"

Ele, assustadoramente, como que abrindo o peito com as duas mãos, num gesto forte, berra, quase urrando: Você quer que eu abra o meu peito e te dê meucoração? O berro ainda ecoa em meus ouvidos, assim como o sofrimento expresso, bruto, infinito...

Então compreendi, brutalmente, que resgatar o self de Mário, mais que buscar por trás do reprimido, era auxiliá-lo a encontrar e constituir sua singularidade com base na concretude do mundo em que ele vivia. Explico-me: quando eu, talvez animada pelos seus vivos relatos atuais, buscava ouvir suas associações, advindas de seus objetos internos e fantasias reprimidas, Mário sentia-se como se eu quisesse apropriar-me concretamente de seu interior, e tudo o que ele poderia me oferecer era seu coração concreto. A minha busca por associações era sentida por ele como a de um monstro voraz a sorver-lhe a interioridade. Eu era sentida como alguém que lhe exigia o coração, e, talvez pela primeira vez, ele se rebelou, urrando contra a monstruosidade de tal exigência.Depois de um silêncio, arrisco-me a dizer:

"Você sente que eu quero arrancar as coisas que você tem dentro, como um médico-operador que quer fazer bem o seu trabalho e não se importa com quem é o paciente e o que ele está sentindo".

Ele diz: Não entendi bem a última parte do que você falou (que era como eu lhe falava quando não escutava suas últimas palavras). Em seguida ele se relaxa e adormece por uns 10 minutos.

Acorda assustado.

Pergunto-lhe se sonhou, e ele diz:

Acordei por isso. Tomei um susto! (Silêncio) Sonhei que estava no meu carro a toda a velocidade, e que ia cair num precipício sem fundo. (Silêncio) Eu não queria morrer.

"Morrer?", pergunto.

É, eu não estava conseguindo fazer o carro parar. Eu ia morrer, então acordei.

"Acordou e está aqui comigo. E pode me contar o seu medo de morrer, de cair no precipício sem fundo...".

(Silêncio)

Pensando no meu enorme susto com o seu berro no início da sessão, mas não me referindo ao meu susto, e sim ao susto dele, continuo: "Mário, será que você não está muito assustado com a enorme força de seus sentimentos, que podem se descontrolar se você os soltar? ... Quando você berrou, hoje aqui, para eu parar de pedir coisas a você, você deu um berro forte. Será que eu posso escutar a força desse berro? Escutar o seu sentimento de dor, e muitos outros sentimentos fortes que estão nesse berro, ou será que ele, com toda a sua força, vai morrer, vai se perder num precipício sem fim?".

Mário pisca mais forte, sinal, para mim, de que "abocanhou" com a mente a interpretação. Você acha que vou ter jeito? - pergunta. E acrescenta: Aquele analista que desistiu de mim disse que eu tinha escolhido viver assim ... Eu queria uma garantia ... É tanto tempo ... Os meus colegas todos têm uma casa, e eu, nada. Todo esse tempo fazendo análise...

Digo: "Você está me falando do seu desespero de não ser ouvido, desespero que pode levar você à desesperança com a análise, a ter vontade de acabar com tudo: a força dos sentimentos da gente pode ser usada para viver, ou para morrer... Penso que você está muito assustado com as forças que está descobrindo dentro de você e quer que eu o ajude a conhecê-las e a ter algum domínio sobre elas".

A sessão chega ao fim e Mário, ao sair, olha-me nos olhos, o que é inusual. Penso que ele quer saber como estou após o impacto da força de suas comunicações. E quer saber também como eu o vejo.

 

Mário sonha com seu nascimento psíquico

Sessão seguinte: quinta-feira (a última da semana)

Mário chega, faz os comentários iniciais costumeiros sobre a separação, na qual ele sente que eu fico com tudo de bom, e de que como vir aqui o deixa tenso, e com medo de mim, e humilhado, já que sente que eu tenho tudo.

Fico um pouco em silêncio, depois digo que, como ele vem com essa ideia de mim, fica impedido de aproveitar o nosso encontro de outra maneira, de poder relaxar para ver o que acontece.

Ela vai se relaxando e adormece.

Acorda num sobressalto.

Pergunto se sonhou alguma coisa, e ele me diz: sonhei que estava deitado de costas em cima de uma mulher muito grande, gigante - vai passando a mão no divã para contar. Era bom. Mas, quando quis me levantar, sentia uma força que me puxava para baixo, que me prendia à mulher. Como se as minhas costas não pudessem se desgrudar...

Peço associações, e ele diz que só se lembra de que queria sair e não conseguia.

"Em que direção?" - pergunto.

Ele faz um gesto com a mão, da barriga para as pernas, em direção à parede para onde se estendem seus pés.

Conjeturo que esse é o movimento do nascimento e aguardo em silêncio algo mais que ele possa querer me dizer.

Após alguns minutos, digo:

"Ontem você me falava de sua queda num precipício sem fim e hoje você fala de se sentir amparado no corpo dessa mulher que, como este divã, se estende sob você, como a minha escuta ampara o que você me diz, como a mãe ampara a criança quando nasce".

Ele me diz: Até hoje eu não sei se fui eu ou meu irmão que ficou desamparado quando nasceu. Minha tia diz que fui eu. Minha mãe estava passando mal, e esqueceram do nenê. Até que minha tia viu, e foram cuidar da criança.

"Você está me dizendo que o seu desamparo psíquico pôde ser visto por essa tia, a Teresa. E como você se sente reconfortado por ser enfim amparado para nascer psiquicamente."

(Silêncio prolongado)

Agora o meu medo é de não desgrudar.

Acrescento: "O medo é de você querer ficar grudado ou de eu querer que você fique unido a mim, impedindo-o de dar seus próprios passos...".

Ele cochila novamente e acorda.

Pergunto se sonhou, se viu alguma imagem.

Somente um céu, bem azul.

"Um céu azul?" - pergunto.

É. Azul como este seu teto...

"Você sente que tem um chão para te amparar e um teto para te proteger."A sessão chega ao fim.

 

Representação da ambivalência dos objetos internos ou "Depois da tempestade vem a bonança"

A primeira sessão da semana seguinte

Após ele falar da raiva pela separação e de como achou que não adiantava vir, respondi que parecia haver alguma esperança de algo mudar, pois ele veio se encontrar comigo.

Ele se relaxa e adormece. Acorda sobressaltado e me diz: sonheicom um homem fazendo cocô em minha cabeça. Ao lado dele tinha uma mulher rica, bem vestida, com um colar de pérolas...

Peço associações e ele diz que se sentia humilhado debaixo desse homem que o menosprezava.

Proponho que esse homem é como ele sentia o pai, que exigia dele perfeição, e em comparação com o qual se sentia tão humilhado.

Ele ajunta: mas ele não está tão bem vestido como ela: é um pobre coitado. Está malvestido, como eu...

"Talvez você assim sentisse seu pai em relação à sua mãe."

Eu sentia que ele executava as ordens dela. Ela era de família rica, ele não...

"Parece que você sentia que ela tinha tudo de bom. Era ele que fazia as ruindades para você."

Por isso que senti tanto quando ele morreu: estava recuperando a amizade dele. Depois que ele morreu, não pude deixar de ver a ruindade da minha mãe. Parecia que agora que não tinha mais ele, quem ia ficar com a maldade toda era eu.

"Quando você vem para cá, pode sentir que eu também vou fazer isso com você: jogar o que é ruim em você e ficar com o que é bom."

(Silêncio)

Ele está super-relaxado.

Pergunto: "Pensou em alguma coisa?"

Tinha uma criança recebendo balas. Um prato de balas. Mas a criança não pegava. Deixava o prato, que estava cheio.

"Você sente que eu posso te oferecer balas. Sente que você merece balas, não cocô."Mas é como se eu não quisesse pegar...

(Silêncio)

"Seria como aceitar outra comida diferente da que sentia que teus pais te ofereciam?"

A sessão chega ao fim, e ele se vai. Pisa forte, firme.

 

Constituição do espaço psíquico e colaboração do analista

A emergência do self é concomitante à emergência do objeto: cada passo novo na emergência de forças internas desconhecidas próprias é acompanhado pela indagação sobre a misteriosa interioridade do objeto e a dúvida sobre esta (Meltzer, 1988).

Mas em casos como o de Mário, em que a estruturação de self é frágil, é preciso primeiramente descrever suas confusas experiências, ajudando-o a constituir seu mundo interno, para depois fazer interpretações transferenciais.

Como disse inicialmente, mesmo essas, teriam que referir-se particularmente ao encontro, ao medo de não encontrar o objeto (e cair num abismo sem fim), à alegria do encontro (quando ocorre).1 Mas, para isso, Mário precisa antes dar-se conta de seus sentimentos e da força destes, e discriminá-los. Esta força e as características de cada um dos sentimentos têm uma forma viva (Alvarez, 1992/1994) de se expressar no encontro com o analista, que precisa comunicar-se de modo expressivo e vivo com o paciente (Haudenschild, 1993/2015a). Senão o analista não dará conta dos significados dos sentimentos emitidos pelo paciente, que, em vez de serem incorporados e introjetados, serão excorporados (Green, 1991) sem encontrar um objeto para os acolher e devolver metabolizados.

Se imaginarmos que áreas importantes da personalidade de Mário, entre elas sua própria imagem de self, ainda estão caminhando do vazio para a representação, um estágio transicional se impõe para que o simbólico seja atingido (Winnicott, 1951/1982a). Portanto, o uso que ele fará do objeto (analista) terá um pé na equação simbólica e um pé na simbolização, como um objeto transicional, investido por ele de sentidos próprios. Dar uma interpretação transferencial enfatizando a separação, enquanto ele ainda está se apropriando dos objetos, seria prematuro.

Penso que no sonho da queda no precipício Mário está se apropriando da força de seus impulsos e sentimentos, sente que são tão fortes, que talvez ele não os possa controlar (o carro que ele não consegue segurar).

Quando, um pouco antes, perguntei quase concretamente "O que é que você tem dentro do seu peito?", Mário respondeu, numa linguagem concreta, que foi como ele pôde entender minha pergunta e me sentir: como alguém querendo "abrir-lhe o peito" muito concretamente, forçá-lo a mostrar o coração, e a crueldade implicada nisso.

De algum modo a minha fala - propondo um modelo metafórico concreto (o médico-operador) para descrever o sentimento dele - pôde abrir caminho para nosso trabalho: ele dorme e sonha, trazendo sua própria representação do que sentia ter dentro dele, uma força enorme e incontrolável.

Se no sonho ele pode se perder num abismo sem fim, ao acordar encontra um objeto atento, a quem pode contar o seu medo de morrer (o que faz o bebê com sua mãe, para receber de volta esse medo metabolizado; Bion, 1962a), o seu medo de "não ter mais jeito", medo de morte psíquica.

Quando se refere aos colegas que têm uma casa, penso que está se referindo à casa psíquica: ao espaço psíquico próprio que ele quer ter.

Para isso ele precisa primeiramente de um objeto, de uma personalidade suficientemente forte e firme, para testar seus sentimentos (Bion, 1962a), sentidos por seu self frágil como incontroláveis. Sentimentos que são os elementos básicos para a constituição de sua realidade psíquica e a estruturação de seu self, como o são os tijolos para uma casa.

Portanto, o primeiro passo seria a apropriação pelo paciente de seus próprios sentimentos, para, aos poucos, ganhar representações de suas experiências emocionais.

Quando o paciente fica contente com uma nova aquisição, o analista precisa comemorar, compartilhar com ele seu contentamento (Alvarez, 1992/1994). Não é preciso que sejam grandes aquisições: estados mentais positivos podem surgir de relações primitivas que são aquisições básicas para a instalação posterior de relações mais evoluídas (como as da posição depressiva). Assim, quando, por exemplo, a criança (ou o paciente) está aprendendo sobre as propriedades do objeto que regressa e, principalmente, sobre os seus próprios recursos e sua capacidade para fazê-lo retornar, é preciso comemorar com ela esse descobrimento. É essa confiança básica que levará a criança a arriscar novos desenvolvimentos.

Costumo dizer que, inicialmente, o analista "é mais um palhaço no carnaval" do paciente (Jobim, 1973), mas um palhaço importante, que o paciente cada vez mais pode distinguir como muito especial, principalmente porque ele é responsável pela manutenção do circo, do espaço da análise. Esse espaço que se constitui com base nas relações do paciente com o analista possibilita ao paciente apropriar-se de seu espaço psíquico.

O analista está lá: disponível, vivo, atento, ativo, se necessário, chamando para a vida psíquica que, às vezes, está informe, confusa. Os primeiros sentimentos ganham aos poucos seus contornos mais nítidos. Depois, o uso desses sentimentos se faz nas experiências de relação, e assim por diante.

O importante é que aquela vida psíquica singular venha à luz, vá ganhando sua forma particular.

Interpretações transferenciais prematuras poderiam abortar tanto o contentamento pelas pequenas aquisições que surgem, quanto o que se delineia em termos de consciência de si.

Quando na interpretação me apresento como "médico-operador", Mário pode ter-me sentido, na transferência, como um pai que se responsabiliza pelo que fez, que não o deixa só com sua dor (como o pai que morreu e desapareceu quando ele começava a apreciar sua companhia), e ele, então, pode adormecer e sonhar. Em vez de focar o que significo para ele nesse momento, ou enfatizar a relação transferencial - que fica vivamente fazendo parte de nossa história e pode ser evocada em futuras evoluções do processo analítico -, prefiro focalizar para ele o exercício do seu "sonhar" como uma conquista-apropriação.

A apropriação de seus recursos internos, iniciada pela apropriação da força de seus sentimentos - sentida por ele como perigosa, pois pode até levá-lo à morte no fundo de um precipício -, é seguida pelo sonho em que Mário se vê deitado no solo-corpo de uma mulher gigantesca que o ampara, mas que o pode prender. Então ele faz força (sinal de que se apropriou de sua força singular) para se desgrudar, para nascer... Há, no querer se desgrudar, um movimento para a autonomia, para explorar o mundo afora, perder-se até, para se encontrar. Mas contando com um objeto de referência ao qual retornar, se desejar.

Há agora um objeto (tia-analista) atento a seu desamparo convidando-o sempre para as relações vivas do mundo humano se ele se isolar como uma-coisa-entre-coisas (Haudenschild, 1993/2015a).

Após sentir que seu mundo tem um solo (um corpo humano vivo que o ampara), Mário sonha com o teto desse mundo: um céu azul como o teto da minha sala (encantador? apavorante em sua infinitude celeste?).

O importante agora é que Mário já sente ter um solo firme e um teto limitando sua casa mental.

Após ter constituído um espaço mental vivendo a experiência de ser sustentado por uma mulher gigantesca (mãe idealizada) e coberto por um céu infinitamente protetor (pai idealizado), o paciente pode pensar a cena até então impensável: a cena primária constituída por um casal formado por uma rica mulher e um homem que faz cocô na cabeça dele, Mário, executando as ordens da mulher. Dessa cena pode-se depreender a estruturação psíquica de Mário, em que o ego sente-se humilhado, atacado, restringido, por um superego rígido, por um objeto incompreensivo, no dizer de Bion.

Britton (1998) diz que a criança pequena desloca para o pai tudo o que é ruim da mãe, idealizando-a.

No sonho, a mulher é preciosa (como seu colar de pérolas) e o homem é malvestido. Mas nem por isso deixa de humilhar Mário, malvestido como ele.

A elaboração de Mário, partindo da constatação da força de seus sentimentos e de seu desamparo e constituindo uma representação de uma relação idealizada com a mãe (solo, terra), depois com o casal idealizado (pai-céu protetor), torna possíveis como contraponto a aproximação e a representação de um casal em que a mãe aparece idealizada e o pai, denegrido, mas que denigre Mário, esmerdeando-o.

A colaboração do analista, com sua firme escuta, mantendo o fio das elaborações do paciente, permite a este aproximar-se cada vez mais de si mesmo, de sua história particular, que se reconstrói ao correr das sessões.

A firmeza do analista é expressa por sua atenção firme, que dá sentido de continuidade à relação viva com o paciente, relacionada por Athanassiou (1982) à atenção privilegiada que a mãe dá a seu bebê. Atenção que mantém, por exemplo, um olhar disponível, ao qual o bebê pode retornar (Fogel, 1976; Macfarlane, 1977). Atenção que mantém uma sequência de eventos, tornando-a uma experiência de relação, a cada sessão. Atenção que junta eventos de sessões distantes numa experiência que dá sentido à experiência presente. Atenção que, dia a dia, constrói a história da relação. História fundamental, no caso de pacientes como Mário, que ainda não têm uma história de vida psíquica contínua.

Essa história se constitui numa duração (assim como a pintura se constitui numa dimensão, a da tela), num tempo: o proporcionado pelo setting. Se respeitado, o quanto proporciona de sentido de tempo, sentido de retorno, sentido de encontro, de despedida, de limite de realidade... O setting é o silencioso ajudante mais precioso do terapeuta: é o tempo transitório de vida que tem com seu paciente, representante ineludível do nosso tempo de vida, limitado, apontando-nos a passagem do tempo, que não pode ser desperdiçado.

O sentido da passagem do tempo é o sentido da vida, o sentido de que a vida é mortal, tem um curso e um fim. Se olharmos para uma árvore viva, todos os dias veremos galhinhos tenros brotando e folhas secas caindo: é a vida, nascendo aqui, morrendo ali. Uma árvore sintética não morre e não cresce - não tem vida -, e pode durar eternamente, não precisa regas, nem cuidados. Pacientes como Mário podem não ter o sentido da passagem do tempo, e poderiam ficar enrodilhando infinitamente os dedos, por infinitas sessões. E é o analista, cuidador de mentes, que muitas vezes tem que despertar o paciente imerso nesse tempo cíclico, eterno, sem fim (Meltzer, 1975).

Além da atenção privilegiada, dando sentido de experiências próprias e continuidade vital a eventos que poderiam ser vividos aleatoriamente pelo paciente, o terapeuta precisa ser ativo, para reivindicar que o paciente viva sua potencialidade humana: convidando-o a sair de formas paralisantes de vida (manobras autísticas), propondo um espaço transicional (por meio do brincar, de descrever as experiências emocionais, se possível com modelos visuais), discriminando para o paciente o que é vida e o que é paralisação de vida...

Esse convite à vida é representado por Mário pelo "prato de balas" que ele sente que lhe ofereço. Sente que é merecedor de um doce alimento, em vez de um bombardeio de excrementos. Mas quem está sempre na expectativa destes estranha, duvida da oferta: será uma armadilha? Ele diz: É como se eu não quisesse pegar...O encontro com o objeto compreensivo é sentido pelo analisando como ameaçador, ele que tem um longo convívio com um objeto incompreensivo interno, o qual já faz parte da constituição de seu self.

A partir daí, haverá um longo trabalho de análise, de progressos e regressos, de e-voluções.

Muito desse trabalho será dedicado à discriminação entre o que é clausura narcísica (paralisação e morte) e o que é contato com realidade e vida. O que numa sessão pode ser contato com realidade e aquisição pode transformar-se amanhã em clausura repetitiva e morta, como as velhas interpretações que Mário remoía repetitivamente ao iniciar a análise, no começo das sessões.

Sair da clausura de nossas preferências teóricas e das teorias que fizemos sobre nossos pacientes, sair de nosso próprio narcisismo e ir até onde o paciente está no momento, para "dançar" com ele ou, se está parado, para convidá-lo para a imprevista dança da vida humana, faz parte de nosso trabalho, e em casos como o de Mário, em que se tem de investir no narcisismo saudável, isso é primordial. Senão, estaríamos repetindo a relação inicial com a mãe narcísica...Para finalizar, queria sublinhar novamente a importância do sonhar com o paciente, para que ele possa representar suas experiências emocionais e ampliar sua continência a elas, ampliando assim sua vida psíquica e sua personalidade. E ainda insistir no aprender com a experiência de sonhar no encontro analítico, muito semelhante ao "brincar junto" com a criança, em que ela aprende, e nós também, a expressar toda a riqueza de seu mundo mental e a pensar, acolhendo pensamentos nunca dantes pensados...

 

Referências

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Recebido em: 7/9/2017
Aceito em: 24/10/2017

 

 

1 Ver caso Gabriel em "Utilização da capacidade de reverie do analista, do brincar ativo e do desenho: opções técnicas na análise de crianças que não se comunicam verbalmente" (Haudenschild, 2015e/1996) e "Supervisão de Anne Alvarez - caso clínico Gabriel" (Haudenschild, 2015d/1999).

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