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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dic. 2017

 

SONHOS

 

Interpretação de sonhos e contemporaneidade: uma regra ainda fundamental

 

Interpretation of dreams, and contemporaneity: a still fundamental rule

 

Interpretación de los sueños y contemporaneidad: una regla que aún es fundamental

 

L'interprétation de rêves et la contemporanéité: une règle toujours fondamentale

 

 

Marta Foster

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. martafoster@terra.com.br

 

 


RESUMO

Neste trabalho apresento situações clínicas que justificam a continuação da interpretação dos sonhos noturnos, tal qual proposta por Freud (1900/1972), utilizando o método da associação livre de ideias, sinônimo da regra fundamental. Tenho observado que em nossos meios essa forma de escutar o sonho noturno tem sido substituída por outro método. Justifico minha proposta alegando que, em minha experiência, observo que a interpretação de sonhos realizada dentro dessa abordagem possibilita desenvolvimento da escuta psicanalítica, e que aspectos primitivos do mundo mental do paciente podem emergir em sala de análise, recebendo um maior acolhimento pelo paciente, trazendo maior percepção da complexidade de seu mundo mental e ampliando seu interesse em ser apresentado a si mesmo.

Palavras-chave: regra fundamental, processo associativo, sonhos noturnos, interpretação, associação livre de ideias


ABSTRACT

In this paper, the author presents clinical situations which justify extending the interpretation of night dreams by using, as proposed by Freud (1900), the method of free association of ideas, synonym of the fundamental rule. In the psychoanalytic field, this way of listening the nocturnal dream has been replaced by other method, the author observes. The author justifies her proposal by bringing her clinical experience. From her perspective, this approach to the interpretation of dreams enables the psychoanalytic listening to be developed. Primitive aspects of the patient's mental world may emerge in the psychoanalytic room. When this situation is observed, these aspects are better accepted by the patient. They bring him a greater perception of the complexity of his mental world and they increase his interest in being introduced to himself.

Keywords: fundamental rule, associative process, night dreams (nocturnal dreams), interpretation, free association of ideas


RESUMEN

En este trabajo presento situaciones clínicas que justifican la continuación de la interpretación de los sueños nocturnos, tal como fue propuesta por Freud (1900), utilizando el método de la asociación libre de ideas, sinónimo de la regla fundamental. He observado que, en nuestro medio, esa forma de escucha del sueño nocturno ha sido substituida por otro método. De acuerdo con mi experiencia, la interpretación de los sueños a partir de ese enfoque posibilita el desarrollo de la escucha psicoanalítica y, al mismo tiempo, permite que surjan, en la sala de análisis, aspectos primitivos del mundo mental del paciente que son mejor recibidos por él, extendiendo la percepción de la complejidad de su mundo mental y ampliando su interés en ser presentado a sí mismo.

Palabras clave: regla fundamental, proceso asociativo, sueños nocturnos, interpretación, asociación libre de ideas


RÉSUMÉ

Dans ce travail, je présente des situations cliniques qui justifient la poursuite de l'interprétation des rêves nocturnes, comme ce qui a été proposé par Freud en 1900, en employant la méthode de la libre association d'idées, synonyme de la règle fondamentale. J'observe que dans nos cercles cette façon d'écouter le rêve nocturne a été remplacée par une autre méthode. Je justifie ma proposition en affirmant que, dans mon expérience, j'observe que l'interprétation des rêves accomplie selon cette approche permet le développement de l'écoute psychanalytique et que les aspects primitifs du monde mental du patient peuvent émerger dans le cadre. Elle est meilleure acceptée par le patient, et elle lui apporte une plus grande prise de conscience de la complexité de son monde mental, en élargissant son intérêt à être présenté à soi-même.

Mots-clés: règle fondamentale, processus associatif, rêves nocturnes, interprétation, livre association d'idées


 

 

Um só pedal mil fios move,

As lançadeiras, disparando, vão e vêm,

Os fios, invisíveis, não se detêm,

E um só golpe mil junções promovem.

Goethe1

Pode parecer um paradoxo falar de contemporaneidade ao abordarmos questões que nos remetem ao começo da descoberta do valioso processo de investigação da mente humana, batizado por Sigmund Freud de psicanálise. É possível, também, acrescentar que seria talvez impossível a existência da utilíssima ferramenta de trabalho que é a interpretação dos sonhos apartada dos sentimentos de medo e paixão.

Há quase três décadas venho coordenando grupos de estudos sobre o capítulo 7 - "Os processos oníricos", de "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1972). Tem sido estimulante a continuidade do estudo, e a cada vez que releio a obra fico interessada em tentar transmitir a riqueza do principal conceito proposto, que é o do processo associativo. Sabemos que "o homem não é um polipeiro de imagens" (Laplanche/Pontalis, 1967/1986, p. 70) e, portanto, o agrupamento das associações, os eventuais isolamentos, as "falsas conexões", juntamente com sua possibilidade de acesso à consciência, inscrevem-se na dinâmica do conflito defensivo próprio de cada um. Nesses anos tenho escrito a respeito desse processo (Foster, 2002, 2004, 2006, 2010), e digo que a "via régia para o inconsciente" é a associação livre de ideias, e isso é possível ocorrer quando se acentua o fato de não ser fornecido ao paciente qualquer ponto de partida. É nesse sentido que a regra da associação livre é utilizada como sinônimo de "regra fundamental".

Acho importante relembrar que Freud nunca acreditou na associação livre de ideias como um simples conceito, e sim como procedimento metodológico.

Esclarece isso em nota de rodapé, datada de 1914:

É o inconsciente que faz a escolha apropriada de um propósito para o interesse, e isto "é válido tanto para as associações de ideias no pensamento abstrato quanto para a imaginação sensorial e a combinação artística" e a produção de chistes. Por esta razão, uma limitação da associação de ideias a uma ideia excitante a uma ideia excitada (no sentido de uma psicologia de associação pura) não pode ser defendida. Tal limitação poderia ser justificada "apenas" se houvesse condições na vida humana em que o homem se achasse livre não somente de todo o propósito consciente, mas também da influência ou cooperação de todo o interesse inconsciente, todo o estado de ânimo passageiro. Contudo, esta é uma condição que dificilmente ocorrerá, porque mesmo que se em aparência abandonarmos completamente nossa sequência de pensamento ao acaso, ou se nos entregarmos aos sonhos involuntários da fantasia, sempre outros interesses principais, sentimentos e estados de ânimos dominantes prevalecerão mais numa ocasião do que em outra, e eles exercerão sempre uma influência sobre as associações de ideias. Nos sonhos semiconscientes, ocorrem sempre apenas aquelas ideias que correspondem ao principal interesse (inconsciente) do momento. A ênfase assim colocada na influência dos sentimentos e estados de ânimo sobre a livre sequência de pensamentos torna possível justificar completamente o procedimento metodológico da psicanálise. (Freud, 1900/1972, p. 564, itálico da autora)

Portanto, Freud (1900/1972) mantém sua proposta de que toda a comunicação tem intencionalidade e, como Bion (1962) acrescentou, tem função, e, como Klein e colaboradores (1946) nos trouxeram, é defensiva.

Isso quer dizer que o que o paciente vive conosco em sala de análise é escutado pelo analista como associativo, sendo essas associações resultado da experiência emocional que ocorre entre paciente e analista. Essa comunicação aparece em forma de pensamentos ao paciente, que são trazidos ao analista de forma "não verbal, pré-verbal e verbal" (Foster, 2008), e são nossos aliados, pois à medida que são autorizados pelo ego já terão passado por transformações, tais como censura, deslocamento e condensações, e poderão ser vistos como "pensamentos em busca de pensador" (Bion, 1965), possibilitando, com base na investigação psicanalítica, conduzir-nos às emoções das quais partiram.

Eles, os pensamentos que absolutamente escolhemos, pois acodem à nossa mente sem que tenhamos algum poder e responsabilidade sobre isso, serão tratados pelo paciente de duas formas: em uma delas são vividos como uma espécie de miomas a serem eliminados. Nesses casos, quando o paciente se apresenta dessa forma, buscam-nos como se fôssemos os cirurgiões plásticos que com seus bisturis/falas terão a condição de eliminar esses pensamentos indesejados.

A outra forma é poder acolher esses pensamentos, tornando-os, portanto, disponíveis para serem pensados, e possibilitando o desenvolvimento mental.

Mas o que isso tudo tem a ver com "a interpretação dos sonhos"?

Minha pequena introdução foi para falar da descoberta de Freud, que ultrapassou a área dos sonhos noturnos, tão bem estudados por ele, permitindo-nos o contato com a complexidade dos "pensamentos diurnos", e também com os sintomas, estudados mais amplamente por Klein, Bion e outros, como acima tentamos expor.

Entendo os sonhos noturnos da forma que nos propôs, pensamentos que em vida de vigília tornaram-se insuportáveis ao ego (Freud, 1900/1972). Nesse sentido, conforme nos traz, em razão de estarmos dormindo, o ego, agora imbuído de outras funções, sendo uma das principais a de nos manter dormindo, tem suas defesas "rebaixadas". Esses pensamentos, insuportáveis em vida de vigília, ganham, então, a possibilidade de virem à consciência, como acima mencionei. Passarão por transformações e se mostrarão em forma de imagens, de cenários que serão vividos como agradáveis ou aterrorizantes. Para o analista, em sua função interpretativa, isso não fará diferença.

Essa descoberta científica revolucionária foi uma quebra de paradigmas na época, que Freud nos relata de forma pormenorizada em seus livros iv e v, chamados "A interpretação dos sonhos". Foi-nos informado, em nota de editor, que Freud teria terminado de escrever seu livro sobre sonhos em 1899, mas queria publicá-lo somente em 1900, alegando que seria a "revolução científica do século" na área dos estudos da mente humana. Penso que não estava errado em sua intuição. Ele define seu livro com as seguintes palavras: "[Este livro] contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida." (Freud, 1931, p. 13).2

Para que a interpretação dos sonhos seja possível, necessitaremos da colaboração do paciente com suas associações livres de ideias. Essas associações é que se tornarão a via régia para o inconsciente. Os personagens e os cenários apresentados nos sonhos noturnos necessitarão ser associados pelos pacientes, jamais pelos analistas, como Freud disse em nota de rodapé: "nada ocorria àquela que sonhara em ligação com 'canal', e eu, naturalmente, não podia lançar luz sobre o assunto" (Freud, 1900/1972, p. 552). Ou seja, não é que Freud não soubesse ou pudesse associar algo com o termo "canal", mas ele determina que a associação seja do paciente, e não do analista. Bion, também, traz algo a respeito, quando diz: "minhas associações livres guardei-as para mim, mesmo porque se supõe que seja eu o analista" (Bion, 1985, p. 129).

Se o paciente nada associa e não conseguimos o estímulo necessário para que suas defesas baixem e ele possa colaborar nesse processo, não temos senão a percepção de que estamos diante de resistências, e nosso legado é continuar investigando. Algumas poucas vezes, em minha experiência, o paciente comunica aquele sonho ou outro sonho de outrora, também de forma associativa com algo que estamos vivenciando, e nessas situações observo que se autoriza a associar.

Uma experiência desse tipo aconteceu quando conversava com o paciente X: Estávamos conversando sobre a percepção do paciente de como ele lida com suas conquistas. É como se não pudesse obter delas nenhum tipo de satisfação ou prazer. Quando ocorre sentir prazer, é como se se sentisse culpado, e sua fantasia é que merece ser castigado por isso. O sofrimento é grande com essa percepção de seu funcionamento mental, e ele se lembra de experiências primitivas extremamente doloridas e traumáticas em sua infância. Nesse momento, dentro desse clima, ele se lembra de um sonho que teve algumas vezes quando era mais jovem: "eu tinha ganhado uma moto de meu pai e estava muito feliz, porque queria muito a moto, mas, no momento em que eu ia acelerar, ela não deslizava, eu não conseguia acelerar, ela não saía do lugar".

Não é difícil a criatividade do analista ser posta em ação, e ele sonhar muitas coisas com essa cena contada pelo paciente, mas, se nos contivermos, guardando nossas associações para nós, como propõe Bion (1985), buscamos o nosso parceiro, que sempre é o paciente, e então pedimos a ele para dizer-nos o que associa com seu sonho. Ele silencia alguns minutos, diz que tem dificuldades em associar. Silencia, novamente, e diz: não sei..., de uma forma que, é possível observar, estamos diante de áreas sensíveis, diante de resistências do paciente. Seguindo as orientações de Freud, encaminhamo-nos em outra direção, fragmentamos o sonho apresentado e pedimos ao paciente para dizer o que associa com "moto". Associou com liberdade. Continuamos: e com acelerar a moto? Ele associou com potência, com poder.

Quando passo a sonhar o sonho de meu paciente para ele, na tentativa de aproximá-lo de seu mundo mental, é possível trazer-lhe os aspectos conflitantes que tem em relação às suas conquistas. Observo a ele que a associação, trazida no sonho por meio da representação da moto como "liberdade", ao recebê-la de presente do pai, personagem que ele admira, valoriza e é um "companheirão", demonstra ser conquista dele próprio. Isso possibilita que ele acolha o presente e esteja feliz consigo mesmo; no entanto, ao tentar fazer uso do presente recebido, experimenta uma espécie de castigo e ameaça.

É como se rogasse uma praga em cima de si mesmo: agora você tem a liberdade desejada, mas não poderá fazer uso de sua potência, de seu poder! Ou seja, não pode ter o prazer completo, não pode gozar em paz.

O paciente sente que lhe fazem sentido essas interpretações, as quais associa com várias situações em sua vida, e isso possibilita que ele se dê conta dos sérios problemas de relacionamento em sua vida pessoal e profissional que isso tudo tem lhe causado. Problemas que ele acreditava virem sempre de fora, o que o fazia estar permanentemente "com ódio à realidade" (Bion, 1956/2011, p. 207).

É fato que o aparecimento de um sonho noturno em sala de análise é acontecimento especial. É resultado do trabalho da dupla em função da relação existente entre paciente e analista. Diríamos que ele escapa para a consciência, dando-nos, então, a oportunidade de acesso a áreas primitivas do psiquismo de nosso paciente. Freud (1900/1972, p. 557) nos alerta de que "ninguém deve esperar que uma interpretação de seus sonhos lhe caia no colo, como maná vindo dos céus" e propõe que qualquer pessoa que se interesse por interpretar sonhos deve familiarizar-se com as expectativas e regras estabelecidas nos seus escritos a respeito, e cita Claude Bernard para propor ao analista um tipo de escuta: "trabalhar com tanta persistência quanto um animal e com a mesma indiferença pelo resultado" (1900/1972, p. 558). Há que se ter tolerância para suportar "as trevas", sobre as quais ele já informou logo no início de sua famosa tese.

Nesse sentido, entendo que escutar um sonho noturno como se fosse um sonho diurno, em que se poderia dispensar o uso da regra fundamental, como tem sido proposto em nossos meios, é, em minha opinião, perder uma conquista científica que tem trazido resultados valiosos. Sem dúvida, o estudo de "A interpretação dos sonhos" é espinhoso, lento, e a percepção de suas dificuldades é, como Freud nos diz, a de "sairmos das luzes para as trevas". Mas, se tivermos fé científica no processo associativo, nosso trabalho será compensado. É o que tenho experimentado em minha clínica, e tantos outros colegas e autores também experimentam.

Por que falo de contemporaneidade?

Nada é mais contemporâneo do que as descobertas sobre o inconsciente. Em março de 2013, o tema, tal qual proposto por Freud, foi capa da revista brasileira Superinteressante. Entrar nesse universo, no qual temos que escutar, escutar, sem saber se ao final teremos condições de interpretar algo, é mesmo angustiante, em muitos momentos sentimos medo. Tenho medo de interpretar um sonho se aquele for o último dia de trabalho antes de um feriado prolongado ou antes das férias, pois tenho a sensação de que o sonho nos põe diante de áreas tão primitivas e por vezes indigestas, que necessita ser "mastigado". Acontecem com frequência associações com experiências doloridas e traumáticas vividas pelo paciente, o que chamo de expansões psíquicas, e aí acredito que nossa presença torna-se muito importante para dar continência e representação ao que poderá surgir.

Essas observações feitas acima nada têm de novo no que se refere à importância do processo associativo. Tomas Ogden, em seu artigo "Tres aspectos de la técnica psicoanalítica" (1998), cita um número bastante expressivo de autores psicanalíticos que corroboram as ideias de Freud, e também as ideias aqui apresentadas. Cita Altman (1975), Bonime (1962), Etchengoyen (1991), French & Fromm (1964), Garma (1966), Gray (1992), Rangell (1987), Segal (1991) e Sharpe (1937). Temos aí, também, Klein (1946) e Bion (1962). No entanto, nesse texto ele propõe o que chama de "uma visão revisada" de aspectos da técnica da análise de sonhos (Ogden, 1998, p. 89). Justifica esse fato, que, penso, pretende ser a proposta de uma mudança de paradigma, ou seja, a proposta de uma "revolução científica", alegando que, se o sonho é sonhado no curso de uma análise, representa uma manifestação do "terceiro analítico".

Concordaria com Ogden se ele estivesse se referindo às associações trazidas pelo paciente no decorrer do encontro analítico, nomeando esse fenômeno de "terceiro analítico", mas, quando ele vai citar seu exemplo, refere-se a um sonho noturno que é contado pelo paciente. Diz ele que o sr. G começou uma sessão dizendo ao analista que havia despertado durante a noite e que por largo tempo se sentiu bastante perturbado, e, então, passa a contar ao analista o sonho que teve e que acredita teria feito com que despertasse (Ogden, 1998, p. 94).

Essa situação clínica trazida não difere em nenhum ponto da proposta de Freud, não justificando a dispensa do uso da "regra fundamental". Tenho estudado outros autores psicanalíticos, que corroboram as opiniões de Ogden. No entanto, até o momento, atenta aos tantos e tantos textos que me surgiram sobre o assunto no decorrer desses anos, não me é aceitável eliminar a solicitação da associação livre de ideias, enquanto método, quando um paciente conta-me um sonho noturno. O que tenho observado é que os pacientes ficam mais interessados em seus sonhos e em sua complexa estrutura psíquica, e mais estimulados com o próprio processo da análise, por serem apresentados a si mesmos.

 

A clínica: fragmento de uma sessão de análise

O paciente está no horário, é a terceira sessão da semana, inicia dizendo que foi na psiquiatra e silencia.

A - O que isso significa para você?

P - Significa que estou me cuidando, foi muito diferente da última vez que estive lá. Desta vez fui de bicicleta, estava me sentindo bem, da última vez estava desesperado. Foi muito importante ver a diferença.

A - Tem trabalhado por isto.

P - Temos - silencia

A - Ouvi sua condição de me incluir, assim como a inclusão da psiquiatra, e chamaria isso de parcerias, no entanto, não podemos deixar de levar em consideração que essas parcerias só estão sendo possíveis porque você nos autoriza, como neste momento em que só podemos estar conversando porque está aqui e se está podendo se beneficiar da medicação é porque está a tomando adequadamente.

P - É (silencia alguns poucos minutos). Estou percebendo aqui com você que parceria não dá para dispensar, necessitamos dela. Eu sempre achei que poderia fazer tudo sozinho. Pensando nisso, me lembrei de um sonho que tive esta noite. Quando acordei tentei analisar, usando o método que você usa, mas não consegui nada.

Silencia e em seguida conta o sonho:

P - Eu estava no salão de festas de um prédio no qual passei minha infância, ia todas as férias para lá. Nesse lugar tinha a namorada de um amigo meu, mas que no sonho namorava um outro amigo, e este amigo que ela estava namorando também estava lá. Ela segurava um gatinho branco, pequeno, muito bonito. No mesmo lugar tinha uma família de macacos grandes, era uma família e tinha um deles que era o líder. Eles ficavam de um lado e a gente de outro. De repente, o gatinho começou a se transformar, saiu correndo para cima, justamente do líder, começou a bater nele, a afrontá-lo de tal forma, que todos saíram correndo; aí não me lembro de mais nada.

A - O que você associa com esse sonho?

P - Esse sonho me dá a ideia do absurdo. A situação toda é absurda!

A - E os personagens: o amigo?

P - Ele me lembra força, força física, forte fisicamente.

A - Ela, a namorada?

P - Ela me lembra mistério, ela é misteriosa!

A - O gato?

P - Frágil, delicado.

A - O ambiente em que o sonho acontece?

P - Intimidade, privacidade.

A - Os macacos - a família de macacos?

P - Assustador, que dá medo, mas no sonho sabemos que eles não vão nos atacar se não formos lá. Existia um sentimento de ameaça, mesmo sabendo que, se não fôssemos lá, não teria perigo.

A - Vou "sonhar" o seu sonho, para verificar se podemos aproximá-lo de seu mundo mental. Você traz esses personagens que dão representação aos vários aspectos seus, afinal, o sonho é seu, e foi você quem pôs todos os personagens no seu sonho, no seu mundo, assim como o cenário, as imagens.

Um aspecto de seu sonho é que considera absurdo o fato de figuras tão estranhas aparecerem, como uma família de macacos, para a qual na sua associação você traz a característica da proximidade, e como o líder que é quem possibilita a eles estarem juntos. Mesmo assim, um gato, que é frágil, delicado, se transforma em algo tão assustador, que mesmo os grandões com líder, e tudo, saem correndo, fogem, ficam com medo. Mas o tom com que me conta seu sonho me dá a ideia de que na intimidade, na privacidade, em que há o casal de namorados, porque você também traz o aspecto da intimidade, há transformações incríveis, assustadoras, misteriosas e que são muito fortes, como a transformação de um gato tão frágil e delicado em algo que você considera absurdo, dado o inesperado, que assusta até aquele que a assusta e que pode ser muito ameaçador.

Isso tudo me dá a ideia de que esse sonho nos aproxima de aspectos do seu mundo mental com essas características específicas que o sonho nos traz. Há dentro de você esses personagens... Antes que eu continuasse minha comunicação, ele me diz:

P - Conforme você foi falando, eu fui me lembrando de algo que aconteceu na minha vida e que é muito difícil de falar. Eu nunca imaginei que falaria um dia sobre isso na minha vida e nem aqui. Mas conforme você foi dizendo veio tudo na minha cabeça. Eu tive uma namorada que foi muito importante para mim; mesmo não estando com ela, não tem um único dia que eu não pense nela. A relação da gente era muito louca. Para você ter ideia, um dia eu estava em aula e não atendi o celular, quando saí tinha 72 ligações dela para mim. Eu até contei.

Outra vez ela pulou o muro da minha casa para falar comigo, e eu tinha um pit bull em casa, ela também jogava pedra na minha janela. Ela era completamente enlouquecida por mim, e eu gostava disso tudo. Quando brigávamos, ela me batia, era uma doideira, chegou uma vez que eu bati nela, de tão louco que ela me deixava. Mas era muito forte o que vivíamos. Eu realmente gostava de tudo aquilo, me sentia importante, gostava de ver o que ela era capaz de fazer para estar comigo, para ficar comigo. Um dia, do nada, ela disse: não quero mais namorar com você. E não quis mesmo. Eu fiquei desesperado, a gente estava há quatro anos juntos, aí inverteu, eu procurava por ela, mas nada, ela não quis mais. Foi desesperador. Ele complementa: nessa situação o gato dócil se transformou. O forte se acovardou. Eu sei que isto tudo tem a ver comigo, não sei como lhe explicar.

A - Você disse que se lembra dela todos os dias, isto me faz pensar que alimentos indigestos ficam arrotando, pois não puderam ser mastigados.

P - É verdade, eu nunca falei disso com ninguém, não tenho a mínima condição de fazer isso. E também, junto com isso, me vem na memória uma coisa que lhe disse quando comecei aqui, que quando contasse a meu respeito você poderia desistir de me atender, ou não gostar de mim (silencia). O fato é que ela engravidou, quando namorávamos. Fazia uns dois anos e ela chegou me dizendo que ia fazer o aborto. Eu nem pensei direito, concordei com ela, mas também me ressenti de que ela nem sequer mostrou dúvidas em relação a ter um filho meu, ela não queria, e pronto. Normalmente é o homem que não quer, no entanto, ela não quis. Eu me sinto muito mal com isso. Hoje não faria isso, nós não temos o direito de tirar a vida de ninguém, e a criança já está lá, ela tem um coração batendo.

A - Essa forma de você falar sobre o que lhe aconteceu, com relação ao aborto, lembra-me outras situações nas quais você desconsidera o contexto em que viveu determinada experiência. Você mesmo disse que tinha 22 anos e ela 20 anos, ambos jovens e assustados com a situação. Você fala criticando e atacando sua decisão, tirando totalmente de contexto.

P - É, eu sei que eu tenho mesmo essa mania, pude ver isso aqui com você e tenho observado isso com muita frequência na minha vida. Tenho prestado atenção, e me ajuda muito perceber isso e o que faço comigo, mas nessa situação é mais grave, não sei se você é favorável ou contra o aborto, mas eu não gosto do que aconteceu, não queria que tivesse acontecido. É muito ruim. Hoje, se minha namorada engravidar, jamais gostaria que ela abortasse, não temos esse direito.

A - O tom que usa para falar a seu próprio respeito, neste momento, me remete ao seu sonho, como se o sentisse tão assustador, que pudesse também me assustar.

 

Comentários

O que quero demonstrar com o material clínico acima é que a possibilidade de acolher o sonho noturno do paciente, poder sonhá-lo e trazer esses aspectos que o sonho dele estava nos mostrando possibilitou acesso a áreas de seu psiquismo muito sofridas, traumáticas e primitivas. Corroboro Klein e colaboradores, que ao nos apresentar os elementos primitivos e cindidos de sua paciente, trazidos de seu sonho, fazendo uso do método associativo, possibilita maiores progressos na síntese (1946, pp. 337-338). Acredito que, sem essa valiosa ferramenta de trabalho, esses aspectos levariam muito tempo para aparecer, devido às resistências às quais estamos expostos.

O que eu observo é que quando vamos com o paciente "tricotando" seus sonhos, ele vai abertamente nos trazendo suas associações. É como se o ego não se desse conta de que está nos prestando um serviço, está ficando à mostra. Vejo a resistência diminuída, e o que é importante, o paciente aceita, vindo dos sonhos, aspectos muito primitivos de seu psiquismo. Quando tocamos nesses mesmos aspectos sem a ajuda dos sonhos, ele se defende violentamente. Eu fico impressionada com a facilidade com que o paciente trilha comigo caminhos complexos, difíceis e assustadores de sua vida mental através do sonho, como se pudesse me dizer: esse sou eu, não tenho como negar.

Finalizando, desejo reiterar que lidando com os sonhos noturnos o analista se vê diante de muitos desafios. Destaco dois deles, que penso são muito importantes. Não cabe ao analista interferir no processo associativo do paciente, fazendo interpretações prematuras baseadas em suas próprias associações.

E o outro desafio é que, na ausência de associações do paciente, se o analista ficar na posição de analisar somente o conteúdo manifesto, embarca em interpretações provavelmente errôneas e superficiais (Altman, 1975; Garma, 1966; Greenson, 1967; Sharpe, 1937; citados em Ogden, 1998).

Embora esses autores todos tenham sido citados pelo próprio Ogden (1998, p. 89) em seu trabalho, necessito, também, citar o próprio Freud:

Não se deve esquecer que, ao interpretar um sonho, temos como oponentes as forças psíquicas que foram responsáveis pela sua deformação. Dessa maneira, é uma questão de força relativa saber se nosso interesse intelectual, nossa capacidade de autodisciplina, nosso conhecimento psicológico e nossa prática de interpretar sonhos capacitam-nos a dominar nossas resistências internas. (1900/1972, p. 559)

Entendo a proposta de Freud em seus escritos quando diz que, se a teoria não dá conta da experiência, muda-se a teoria, porque a vida é soberana. Mas fico atenta ao fato de que podemos correr o risco de mudar a teoria, não porque não dê conta da experiência, mas sim porque, sem nos darmos conta, não nos permitimos ter a experiência.

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam ...
O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso
ver o que não foi visto, ver outra vez o que já se viu,
ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que
se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva
caíra, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que
mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso
voltar aos passos que foram dados, para os repetir,
e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso
recomeçar a viagem. Sempre... (Saramago, 1981, p. 76)

 

Referências

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Recebido em: 18/9/2017
Aceito em: 22/10/2017

 

 

1 Goethe J. Fausto. Parte I, Cena 4, S.e, 1808.
2 Prefácio à terceira edição inglesa (revista). "A interpretação dos sonhos", L&PM, 1900.

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