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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dez. 2017

 

SONHOS

 

Ivy: criando apoios internos1

 

Ivy: creating an internal support

 

Ivy: creando apoyos internos

 

Ivy: la création des appuis internes

 

 

Miriam Altman

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. miriam@miriamaltman.psc.br

 

 


RESUMO

Na forma de um roteiro cênico, este trabalho apresenta uma paciente que foi pouco reconhecida e investida, desde sua infância, com um olhar que a valorizasse, o que trouxe importantes questões na área narcísica e consequentes defesas. Por meio do relato clínico pretende-se evidenciar o trabalho do percurso analítico na busca por uma integração e continência. Acompanhando a paciente e o seu relato de sonhos, a analista percebeu a falta de conexão entre a pessoa que os relatava e a que os sonhava, incapaz de viver suas emoções, apesar da riqueza onírica. Intrigada por esse outro self que aparecia, através de contundentes sonhos noturnos, revela-se a importância da escuta analítica para a linguagem pouco simbólica, com consequente falta de representação. A autora baseia-se em autores como Freud, Bion, Ogden e Winnicott para aproximar-se do conceito do irrepresentável.

Palavras-chave: sonho, narcisismo, continência, superego sádico, o irrepresentável


ABSTRACT

In a theatrical format, this paper presents a patient who has had almost no recognition nor appreciation since her childhood. Significant issues in the narcissistic area and consequent defenses have arisen from this situation. The author's purpose is to show, through a clinical vignette, the psychoanalytic path towards achieving integration and continence. The analyst notices, when she listens to the patient talk about her dreams, a lack of connection between the person who tells the dream and the person who dreams the dream. This person is unable to experience her emotions, despite the oneiric richness of her dreams. The author is intrigued by this other self which emerges from these stunning, night dreams. This paper reveals the importance of psychoanalytic listening for a less symbolic language and therefore lack of representation. Based on authors such as Freud, Bion, Ogden, and Winnicott, the author deals with the concept of the "unrepresentable".

Keywords: dream, narcissism, continence, sadistic super ego, the unrepresentable


RESUMEN

Como si fuera el relato de un guión teatral, este trabajo presenta a una paciente que fue poco reconocida e investida con una mirada que la valorizara, y eso provocó importantes cuestiones en el área narcisista y, consecuentemente, en la construcción de defensas. A través de este relato clínico, la autora se propone mostrar el camino seguido en el proceso analítico en la búsqueda de una mayor integración y continencia. Acompañando a la paciente y al relato de sus sueños, la analista percibió una falta de conexión entre la persona que los relataba y la que los soñaba, incapaz de vivir sus emociones, a pesar de la riqueza de su producción onírica y se sintió intrigada por ese otro self que aparecia, a través de los contundentes sueños nocturnos. Este trabajo revela la importancia de la escucha analítica para un lenguaje poco simbólico y, consecuentemente, con falta de representación. Para aproximarse al concepto de lo irrepresentable, la autora se basa en autores como Freud, Bion, Ogden y Winnicott

Palabras clave: sueño, narcisismo, continencia, super-yo sádico, lo irrepresentable


RÉSUMÉ

Sous la forme d'un scénario, l'auteur présente une patiente qui n'a pas été reconnue et investie par un regard qui puisse la valoriser, ce qui a entraîné des questions importantes dans le domaine narcissique et les défenses consécutives. Le rapport clinique met en évidence le parcours psychanalytique à la recherche d'intégration et de contention de la patiente. En suivant la patiente et son récit de rêves, l'analyste constate un manque de connexion entre la personne qui rêve et la personne qui raconte, incapable de vivre ses émotions, malgré la richesse onirique. L'auteur, intriguée par cet autre self qui apparaît dans des rêves nocturnes inquiétants, met l'accent sur l'importance de l'écoute analytique dans ce cadre où le langage est peu symbolique, ce qui entraine le manque de représentation. L'auteur utilise comme référence le concept de l'irreprésentable chez Freud, Bion, Ogden et Winnicott.

Mots-clés: rêve, narcissisme, contention, surmoi sadique, l'irreprésentable


 

 

Prólogo

Primeiramente, gostaria de expor a principal inquietação que me acompanhou nesta escrita e que talvez até tenha sido o que, inicialmente, me mobilizou a escolher essa paciente para este trabalho, sem eu saber.

Subitamente, me vi diante de uma enorme quantidade e riqueza de material onírico, sonhado à noite. Muitas imagens com conteúdo emocional forte, riqueza simbólica, cenários impressionantes, dramas profundos.

Só que eu não conseguia reconhecer a Ivy nesses sonhos. Não parecia que a pessoa que os sonhou era a mesma que havia me contado todos eles! Diante disso, ao longo de três anos, fui observando, no contato analítico e através da minha intuição e contratransferência, os aspectos muito primitivos que surgiam no nosso contato. Essa cisão começou a me causar certa estranheza, que foi aumentando à medida que fui me debruçando mais a fundo sobre a escrita, e penso que foi o motor, a força propulsora que me impulsionou à pesquisa e ao interesse em elaborar este artigo. Por fim, também acredito ter sido o fator que me levou a aprofundar a análise com minha paciente e, espero, ampliar a nossa reflexão.

Grotstein veio ao encontro dessas minhas inquietações, pois, graças à leitura de trechos de Quem é o sonhador que sonha o sonho (2003, pp. 48-90), ele me fez companhia como um interlocutor dessas inquietações, por sua visão do inconsciente como inefável e como alter ego do próprio ego.

Ao se referir a isso, menciona "o Outro" de Lacan, indicando ser esse outro self a inefável natureza do sonhador, que "fala" dentro do analisando, tal qual o locutor de um texto despersonalizado e, de certo ponto de vista, realmente Outro.

Em última instância, o Sonhador que Sonha o Sonho é o Inefável Sujeito do Ser, que registra mudanças catastróficas e as transmite como uma narrativa ao Sonhador que Compreende o Sonho para compleição corretiva. Em uma hora analítica nós podemos apenas nos maravilhar com a efetividade do Sonhador que Sonha o Sonho. (Grotstein, 2003, p. 55)

Fecho este breve prólogo com o poema "Ismália", de Alphonsus de Guimaraens, que me tocou profundamente pelo seu lirismo. Desde quando ele me foi apresentado, tornou-se impossível não ver Ivy e rever este artigo:

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

 

Ato único: As torres (Sobre os sonhos)

Ivy sempre trouxe diversos sonhos para a sessão. Grande parte desses sonhos relatados continha aspectos hostis e violentos, seja na atmosfera ou nas imagens que surgiam. Quartos escuros, vermes, assassinato, atentados, confusão, isolamento, armas, falta de comunicação, morte, falta de controle, picos gélidos, torres altíssimas, alturas inalcançáveis. O clima persecutório é a característica mais comum em seus sonhos.

Em particular, Ivy me descreveu um sonho que foi bastante significativo para nós duas e, portanto, para este artigo. Nele, ela ansiava por escalar, adentrar e explorar torres. Apesar do clima pesado de terror e perseguição, ela se encontrava confusa e adiando suas ações para apenas observar o movimento dos outros e as próprias torres. A escuta desse relato me deixou com uma sensação de angústia por não estar entendendo nada e também de uma grande confusão, de estar bem perdida. Com frequência seus sonhos pareciam muito longos e complexos, e ocasionalmente me senti assim. Em seguida, eu estava num clima de sonho e não tinha mais aquela angústia inicial. A partir disso, fiz uma associação desse sonho com aspectos de medo e proteção, mas Ivy prontamente descartou essas ideias.

Percebendo que ela negava minha narrativa, pensei em outra hipótese: a ideia das torres como representação de uma ascensão do homem de um estado primevo para outro, mais elevado, em que vigora o mundo do pensamento. Existe a ideia de que a narrativa não lhe seria útil nesse momento, pois Ivy funcionava num nível da ação. Eu percebia que era preciso me conectar com ela em outro nível.

Ela prossegue e diz que só começa as coisas se estão perfeitinhas. Acha que está tudo travado pelo medo de não se desenvolver do jeito que espera. Dessa forma, ela parece ter consciência de que, se a Ivy catalogar e idealizar, ela só se faz mais fechada, incapaz de entrar nas torres que encontra. Mas isso não é o suficiente para mudar, pois a exigência é excessiva, é ser Deus, a melhor. Menos que isso é nada, é enlouquecer. Não sabe que caminho tomar, se encontra sem lanterna e no escuro, assim como em seus sonhos.

Veio-me, então, a imagem do iceberg de Freud, cuja maior parte era o Inconsciente, submersa, enquanto apenas a ponta representava o Consciente. Acompanhando uma imagem que narrou da torre despencando, vejo um Ego decepado e, em vez de aparecer um Eu, aparece um Super-Eu.

Por fim, também associo algumas dessas imagens ao início de sua análise, a escuridão do desconhecido, e ao medo do início desse processo que está por vir. A ascese é longa, e para fazê-la é preciso uma entrada lenta, sem pressa, uma escalada cuidadosa.

De todo modo, nesse início de análise já surge com toda a força esse superego que a massacra com exigências cruéis, pois aspira sempre à perfeição e ao ideal. Ela rumina nas sessões sobre coisas que deveria ter feito e não se perdoa por não ter conseguido, tanto na vida profissional como nas coisas mais simples.

Com todas essas questões, Ivy faz um exame de consciência minucioso, julga-se errada e inicia um processo doloroso de autorrecriminações, em que se penitencia e mortifica, tal qual num sistema religioso.

 

Cena 1: Apresentação à clínica

Desde os primeiros contatos com Ivy, me impressionou sua enorme vontade de ir em busca de si mesma, como quem anseia por alcançar o topo de uma torre (em busca da perfeição) e também os subterrâneos de sua mente. Mesmo diante de grandes obstáculos internos, postos por ela mesma assim como pelas adversidades enfrentadas por ela na vida, seus conflitos a impulsionavam a desenvolver muita garra, tornando-se uma espécie de guerrilheira. Uma sobrevivente?

Logo no início de nossos encontros fiquei um pouco confusa, pois deparei com uma pessoa a meio do caminho, num "entre" vários estados. Meio feminino/masculino; meio moleca/rapaz; meio agressiva/deprimida. Algo híbrido, pouco definido. Cabelos meio grisalhos, vestida de alpargatas, calça jeans com a barra dobrada, camisão largo por cima. Um ar meio desleixado! Quando não vinha de shorts, camiseta sem manga, bastante despojada.

Foi desse modo que Ivy chegou a mim: bastante endurecida, armada, como se estivesse pronta para uma guerra. Suas defesas, estas sim, tinham uma consistência de pedra, algo que relaciono com os aspectos violentos de seus sonhos, como se estivesse precisando sobreviver a uma catástrofe!

Foi nesse clima de desistência e desesperança que se deu o início de nossos encontros analíticos. Nossos encontros eram assim: Ivy entrava e saía de cabeça baixa, não ousava olhar em minha direção. Em duas situações em que ofereci repor sessões, ela recebeu minha oferta com muita desconfiança. Não precisava, estava bem como estava. Tinha muito medo de precisar de mim. O medo de dirigir o seu olhar e, de repente, não encontrar o meu era muito grande. Ou de dar de encontro com um olhar vazado, vazio, ausente! Ainda não podia correr o risco... assim fomos por meses a fio... tateando a sua invisibilidade.

Relacionando isso à Fase do Espelho, de Lacan (1936), o que ocorria aqui era uma repetição daquele medo de não ter o brilho de um olhar em que ela pudesse se ver refletida, o primeiro espelho do bebê: o olhar da mãe. Penso que isso se deve a um momento muito inicial da constituição do eu. "Podemos pensar que tal unidade é precipitada por uma imagem que o indivíduo adquire de si mesmo segundo o modelo do outro, e que é precisamente o ego. O narcisismo seria precisamente a captação amorosa do indivíduo por essa imagem" (Laplanche & Pontalis, 1970).

Ivy parecia ter raiva de mim, que não a ajudava a mudar sua dor melancólica, e na sessão soltava vários palavrões inúmeras vezes. Agitava-se muito, comunicando o tanto de aflição contida nela, como uma panela de pressão prestes a estourar. Repleta de raiva, revolta e expressando grande ansiedade.

Via-se em suas palavras e atitudes que Ivy tinha muita pressa. Queria descarregar essa tensão, pois não havia ainda espaço psíquico que pudesse suportar essa angústia ainda sem representação. Penso que Green (2010) explicita bem essa noção quando formula suas ideias a respeito do irrepresentável, ou seja, quando diz que a presença da pulsão de morte cria um excesso pulsional que ataca a possibilidade de qualquer tipo de representação. Afirma ainda que a representação perde seu lugar central, e são as moções pulsionais que assumem o protagonismo. O "Isso" substitui o Inconsciente, que passa a ser apenas uma qualidade psíquica. Trata-se de uma nova problemática: pulsão/descarga ou elaboração/representação. Estamos diante do fracasso da palavra, da representação e da interpretação, diante da compulsão e da atuação. Desse modo, ainda segundo Green (2010), o irrepresentável constitui referência essencial a esse modelo.

Todos esses sentimentos de urgência nesse início me faziam pensar nela como se estivesse com uma metralhadora voltada para si. Um franco-atirador disparando sem parar, com pouco espaço mental para ouvir e conversar. Era o começo de uma longa ascensão que teríamos de empreender com muito cuidado, enfrentando os abismos e as geleiras.

 

Cena 2: Interpretando os sonhos

Um dos primeiros comentários que fiz sobre os sonhos de Ivy foi prontamente rejeitado por ela, com certo descaso. Por isso, contive mais meus pensamentos, pois percebi que era frequente Ivy reagir dessa forma às minhas intervenções. Seus sonhos são impactantes e bastante desconexos em vários momentos. Então me dei conta de que talvez Ivy não pudesse ainda receber algo de mim que lhe fizesse algum sentido. Freud (1900) nos diz que o sonho é a reapresentação ao pré-consciente dos conteúdos inconscientes reprimidos e não elaborados, e é a possibilidade que nós, analistas, temos de dar algum sentido a esses elementos para os pacientes, ou seja, interpretá-los. Mas não parecia ser este o caso aqui, pois Ivy ainda não estava preparada para receber tal conteúdo. Parecia-me que faltava a ela uma experiência de continência e contato afetivo e pensava que era necessário que esse continente fosse construído por intermédio de nossa relação!

Em "O aprender com a experiência", Bion (1962) esclarece a diferença entre elementos alfa e beta. Minha impressão era que minha paciente vivia rodeada por elementos não digeridos, que seriam precisamente os elementos beta. Em termos kleinianos, vivia numa melancolia, em posição esquizoparanoide, sem conseguir se deprimir no sentido da posição depressiva. Também não era capaz de movimentos PS⇔D, mas sim vivia uma depressão persecutória, descrita por Klein (1946/1991).

Durante todo o seu processo de análise, Ivy trouxe muitos sonhos. Inicialmente, sonhava bastante com quartos e camas sujas, com bichos, em que não encontrava um lugar limpo e confortável onde pudesse ficar. Esses pesadelos confusos faziam com que ela despertasse com angústia e desespero. Minha percepção era que esses lugares inóspitos falavam desse mundo interno tão pouco receptivo a ela própria, trazendo tamanho sofrimento.

Em muitos momentos me vinha à mente o que Ogden (2010) nos fala de o analista poder emprestar sua mente para ajudar o paciente a sonhar sonhos anteriormente não sonhados e interrompidos, e também dos pesadelos como "sonhos ruins" em que a "capacidade de sonhar fica interrompida". Mas esse empréstimo da minha mente só funcionava em termos, porque antes haveria que se fazer um trabalho de criação de um vínculo e de comunicação.

Seguindo ainda a teoria bioniana, penso que o conceito da barreira de contato foi também me ajudando a dar sentido à falta de conexão entre a Ivy que sonhava os sonhos e a que os contava (Bion, 1962). É como se fossem duas pessoas diferentes, havia uma falta de porosidade, uma impermeabilidade. Não havia comunicação entre os aspectos Inconscientes e os Conscientes, pois isso depende igualmente da relação continente⇔conteúdo e também da possibilidade de movimentação PS⇔D, que era ainda muito incipiente em Ivy. Para completar tínhamos também um superego primitivo e cruel que atacava duramente a capacidade pensante do ego (função alfa), decepando-o, mas que ainda era um sonho sonhado por mim e não assimilado por Ivy.

Enfatizo que o contato emocional entre nós era distante, frio, e as expressões emocionais dela careciam de sentimento, entonação e profundidade. Parecia estar a maior parte do tempo em PS. Aprisionadas, estávamos sem possibilidades de movimento para D.

Eu observava que toda vez que ela se deprimia e ficava mais triste o que surgia era uma crueldade excessiva. Sentia-se desajeitada, incapaz e sem recursos para viver a vida possível, a que estava a seu alcance. Possivelmente eram esses sentimentos de culpa e esses ataques que a impediam de obter alguma integração.

 

Cena 3: A torre de Babel (Processo da análise)

Depois de ter ouvido o sonho das torres, relacionei-o ao mito da torre de Babel, fato que achei muito interessante, pois me ajudou a pensar em diferentes aspectos da mente de Ivy. A leitura do artigo "O estrangeiro", de Carmen Mion (2003), me trouxe inspiração, pois nele ela relata sua experiência clínica, o que me remeteu à relação com Ivy. Nesse artigo a autora diz, fazendo referência a Bion (1992), que os sonhos expressam a versão armazenada e comunicável de uma experiência emocional particular, em que os elementos alfa estão constantemente conjugados. Tendo esse vértice em mente, o sonho passa a ser considerado como um mito pessoal a ser investigado. Sobre o mito da torre de Babel e a confusão inserida por meio das diferentes línguas, Bion sugere que esse é um ataque à palavra e à linguagem, portanto, ao vínculo, feito por um Deus que fica muito hostil (Bion 1992, p. 249).

Durante o primeiro ano de nosso trabalho, aparecia com mais intensidade e frequência (e, portanto, me chamava muita atenção) o nível de exigência que Ivy tinha com relação a si mesma. Dizia que não suportava a ideia de ser uma pessoa comum, medíocre. De fato, sempre almejou ser excepcional.

Assim, oscilava entre o sofrimento atroz de tentar ser o absoluto tudo ou a mediocridade do nada. Pensando na dupla herança do superego, vejo que ela acreditava que "se fores como o Ideal obterás satisfações" (Freud, 1923/1974). O ego Ideal se refere a essa formação intrapsíquica que se diferencia do ideal do ego e pode ser definida como um ideal narcísico de onipotência, forjado com base no modelo de narcisismo infantil (Laplanche & Pontalis, 1970). A partir de um superego extremamente rígido, de um pai invasivo e assustador, portanto, pouco protetor, Ivy foi erigindo suas barreiras protetoras.

Junto a isso, a fantasia de "sua majestade - o Bebê", aquele estado em que os pais e sobretudo a mãe dão ao bebê um lugar especial e todas as atenções e cuidados são voltados para o pequeno ser, proporcionando-lhe a sensação de que o mundo gira ao seu redor, faltou a ela (Freud, 1914). Esta falta rondava sua vida, impedindo-a de ser ela mesma e poder se desenvolver. Almejava esse estado em que pudesse finalmente ser especial e vista, pois tinha um sentimento de ter sido invisível para sua mãe. Para ser amada e reconhecida precisaria ser plena. Residia aí sua fragilidade narcísica.

Ao mesmo tempo, Ivy se apresentava, transferencialmente, como alguém que não tinha importância para o outro, e nisso o que mais me chamou atenção foi ela dizer que "queria ser invisível, sumir", no sentido de desaparecer quando não era atendida e compreendida. Não queria ter que explicar e pedir, queria apenas que notassem suas necessidades e sua expectativa, seguia em silêncio até um momento de desistência, sentindo-se rendida e invisível. Tal pensamento parecia confirmar sua teoria de que não era de fato amada pelos pais.

As crianças criam suas próprias teorias; essas podem virar crenças arraigadas, e de fato, desenvolver raízes dentro de si. Depois disso, só mesmo através da análise (e/ou com muita sorte) é que se pode ter a oportunidade de questioná-las. Mas eu fui percebendo ao longo do contato com Ivy como era difícil para ela se questionar e, sobretudo, se responsabilizar pelos seus sentimentos de raiva, rancor e ressentimento. E, por consequência, também os de amor e gratidão.

Durante muito tempo, no nosso contato, eu a via como uma criatura tão frágil, vulnerável, com uma autoestima tão variável, que o papel de vítima lhe assegurava um poder por meio do recurso da fraqueza. E eu pisava em ovos e parecia que até media minhas palavras, com receio de ofendê-la!

Continuando com a hipótese de sua fragilidade narcísica, poderíamos nos indagar se a falha estivesse ligada à falta desse olhar, tão importante dos inícios da vida. Como uma falta primordial, que pudesse refletir uma imagem que a reconhecesse. Associo essa falta inicial ao receio (que permaneceu durante anos) em dirigir seu olhar para mim.

Junto a isso, as interpretações transferenciais nem sempre eram bem-vindas por também resvalar neste ponto: o outro (ou seja, eu) ainda não podia ser percebido como diferente dela, com necessidades próprias, e fazendo parte dessa relação. Esses fatores levavam a que muitas vezes me sentisse pisando em ovos e sendo bastante cuidadosa nas minhas formulações. Era mister, primeiro, que ela pudesse constituir-se para, depois, haver a possibilidade de alteridade, e, portanto, um outro tipo de relação.

 

Cena 4: A invisibilidade no campo analítico

No início do terceiro ano de análise, Ivy decidiu parar nossos encontros por duas semanas para viajar. Quando nos reencontramos, ela não aparentava ter voltado de uma separação de duas semanas. Parecia que nada havia acontecido!

Além disso, Ivy afirma que pensou em parar a terapia o mês todo, pois sentia não ter o que dizer e que as coisas estavam se repetindo. Mesmo assim, acabou não falando nada por não saber bem como funcionava a interrupção e como seria isso, mas queria falar a respeito. Essa questão não aparece mais nas próximas sessões, mas a minha impressão é que houve uma maior aproximação entre nós. A camada de gelo, dos picos, que ela trouxera na primeira sessão após a sua chegada, agora me parecia como uma defesa que pairava entre a gente. Como se algo entre nós gelasse a relação, oscilasse, e depois começasse a descongelar. Assim sucessivamente, em movimentos e temperaturas que vão seguindo como as estações do ano, embora, ao mesmo tempo, sem previsão.

Percebi, então, que nisso havia uma relação com o seu desejo de encontrar casa e estruturas próprias, deixar de ser invisível; e que, de certo modo, seria esse o tema dessas sessões. Durante todo o nosso processo analítico, Ivy morou em repúblicas, tendo que dividir sua moradia com outras pessoas. E resolver empecilhos como distância e preço, além do forte medo que tinha de se isolar.

Nesses momentos, me vinha à mente a falta da constituição de um espaço interno, o que impossibilitava a ela se sustentar, ter um eixo próprio para sua existência, e se apropriar também do seu espaço externo. Essa falta de continência para suas próprias necessidades acarretava as citadas consequências na sua vida: tinha dificuldades em reconhecer suas necessidades, mesmo as mais básicas, e em ocupar um lugar, o que a envergonhava. Parecia se envergonhar com a própria existência! Isso despertava em mim compaixão.

Escuto uma menina realmente brava falando da sua raiva, de não se sentir ouvida, atendida, presente. Sempre de cara muito fechada, sem conseguir fazer as pazes com a família, nem com o trabalho que escolheu. Mas quando eu falo com ela e me aproximo, assim, de um jeito muito especial, não me impondo muito, de mansinho, ela se desarma, degela.

Esse estado, porém, dura pouco. Algumas sessões depois, quando esse assunto volta à superfície, Ivy retoma a diminuição das sessões. Sua proposta é de duas sessões semanais, mas digo que precisaria continuar, pelo menos, três vezes por semana. Percebo em suas palavras e atitudes que se eu insistisse muito ela teria que romper e parar completamente, não suportaria. Vem-me à mente o modo com que funciona com os namorados: se está com alguém que a quer muito, sente-se sufocada; é um amor que a prende, e ela não aguenta. Vejo claramente esse momento dessa forma e, por isso, não insisto, para não a assustar. Eis um dos momentos em que, contratransferencialmente, piso em ovos.

Em contrapartida, ela está aliviada de poder se expressar e ser respeitada emo seu pedido. Fora outras questões do cotidiano, como falta de tempo e horários apertados, eu sentia que Ivy ficava incomodada por ter a sensação de estar vivendo uma relação muito próxima e íntima comigo. Ou vivia um grude com o outro ou sentia que precisava romper. Esta era a gangorra dos seus relacionamentos, repetida nesse momento, em ato, na transferência.

 

Cena 5: Inexistência

Com o passar dos anos, Ivy foi podendo me olhar de um modo diferente. Muitas vezes me observava, lançando um olhar para meu corpo e minhas roupas, como se quisesse absorver algo além daquilo que estivesse aparente. Um olhar penetrante! Quem sabe, o início de uma identificação com o corpo e a alma de uma mulher?

Eu percebia também que as expressões de sua sexualidade se davam num nível pré-genital. Parecia-me que o contato com os namorados era sempre borrado por sentimentos de ofensa, invasão e humilhação, apesar de se sentir sexualmente atraída por eles. Então, Ivy buscava intimidade com as amigas, "namoradas"; isso, porém, tinha o sentido de um encontro de afeto, pois não se sentia atraída sexualmente por elas. No artigo de Ferenczi (1932/2006), fica interessante perceber essa situação em que a criança anseia por uma relação afetiva e terna, mas acaba por se sentir ofendida e humilhada. Existe uma confusão de línguas, no dizer desse autor, no sentido de que a criança anseia por ternura e o que ela encontra é a sexualidade genital do adulto.

Sua dificuldade com a introjeção e com a possibilidade de identificar-se com o feminino estava o tempo todo presente em seu corpo e, transferencialmente, na nossa relação. Mantinha uma distância de mim quando me enviava alguma mensagem pelo celular, hábito que mantém até hoje, e sempre iniciava com um "dra.". Cara a cara, não se dirigia a mim de forma pessoal e, basicamente, não me chamava de nada. Rapidamente se deitava no divã, como que cumprindo um protocolo. Existia frieza na relação que, hoje escrevendo, relaciono com os inúmeros cenários de gelo que aparecem repetidamente em seus sonhos. Depois de bastante tempo, ela deixou o "dra." de lado, mas me pergunto, apesar dos progressos que tem feito na análise, o quanto de gelo foi possível descongelar da alma de Ivy...

Ao mesmo tempo, sua comunicação continha um paradoxo (Winnicott, 1963) muito grande, pois também abrigava expressões não-verbais significativas. Parece-me que o seu corpo vai comunicando o que ainda não pode ser representado em palavras, da mesma maneira que um bebê comunica o que sente para sua mãe. Izelinda Garcia de Barros2 fez uma observação interessantíssima sobre isso: parece ter o conhecimento inconsciente de que só através de um objeto vivo ela chegará a esse seio desejado, amado, odiado, destruído e reconstruído ao longo da análise. Nesse viés, poderíamos até associar suas mudanças de comportamento nas sessões com esses estados de espírito na relação comigo: analista seio nutridor.

Essas expressões não-verbais remetem aos seus braços musculosos devido aos esportes que pratica quase compulsivamente. Assim, eu observava que modos de defesas autísticas muito primitivas, compulsivas, como pedalar, escalar, correr, lutar, tinham como função preservar a integridade primordial do self (Tustin, 1986).

 

Epílogo

Este artigo foi ganhando forma e vida como se fosse uma peça de teatro, com um roteiro simbólico para ser acompanhado; através de livres associações, tal como Freud formulou em "A interpretação dos sonhos" (1900), para a compreensão dos fenômenos inconscientes dos neuróticos. Mas isso não se deu apenas por essa forma artística. O poema "Ismália" acompanha a peça, e ambos ganham novos significados.

O lirismo desse poema me deixou fascinada! Mas junto a isso vem um aspecto doloroso. O sonho enlouquecedor junto ao canto. A busca das alturas e do sublime, as asas de um anjo, o mergulho duro até o mar. Um suposto suicídio no fim? E, claro, sonhar e torre juntos, acredito que sempre vão me remeter a Ivy.

O processo de redação deste artigo foi muito significativo e produtivo para mim. Vez ou outra escuto ou leio coisas que sinto vontade de adicionar ao trabalho, como o poema. Penso que a escrita ajuda o analista a elaborar tanto a análise do paciente quanto o ocorrido durante a sessão.

Para mim, a escrita a respeito de Ivy, que participou da conclusão da minha formação psicanalítica formal, me trouxe diversas reflexões. Por exemplo, uma coordenadora de grupo que muito admiro me disse algo que ficou profundamente registrado: "Miriam, enquanto lia seu trabalho pensava que a mulher invisível pode tornar a analista visível".

Para concluir, tem mais uma coisa que gostaria de revelar. Algo que apenas consigo nomear como uma comunicação inconsciente. No fim de junho de 2016, me encontrei com Ivy pela última vez. Ela veio falar sobre seu anseio de parar a análise, porém, mais uma vez, ela se sentiu perdida em como fazer isso. Com vergonha, não sabia como funcionaria, nem como diria essas coisas.

Apesar desse medo em me ofender (seria por isso a vergonha?), ela disse que precisava conversar comigo a esse respeito. Disse que vinha se sentindo muito bem e que queria ter uma experiência de ficar só, de se experimentar.

Justamente nesse momento eu encerrava minha análise didática. Já tinha também finalizado a apresentação do seminário clínico, em que apresentei meu relatório, ou seja, estava encerrando uma etapa importante da minha formação. E, como dizem Gabbard e Ogden (2010) em seu belo artigo "Tornar-se psicanalista", é um momento em que estamos nos debatendo para encontrar nossa própria "voz", nosso próprio "estilo". Acredito que, num mesmo sentido, Ivy também estava se arriscando e decidindo falar com voz própria!

Animada, ela continuou, dizendo que a análise foi uma experiência muito importante e única, diferente das outras terapias, que não a ajudaram. Ela reforçou o quanto tudo isso foi importante para ela. Eu, nesse momento, pude sentir o quanto ela também havia sido importante para mim, e pude expressar esse sentimento para ela, que deu risada e disse que parecia não acreditar. Ficou sem jeito de ouvir isso de mim e se comoveu. Não era habituada a trocas afetivas sinceras, ficava desarmada, sensível demais, quase ferida. Do meu lugar, atrás do divã, pude perceber todo seu desconforto sofrido!

Eu fiquei pensando por que a vergonha e por que me ofenderia! Provavelmente ainda estaria no registro do narcisismo, em que tudo o que é diferente ofende o outro, mas percebi também que não era o momento de falar, mas sim de escutá-la.

Lembrando o poema que citei, acabo vendo aqui uma nova possibilidade para aquele fim. Algo novo, uma escolha dela, vitalizada, uma voz própria. Ivy começou a aceitar seus sonhos, a subir até a lua no céu sem o medo que a habitava com tanta frequência. E também desceu até a lua do mar, este lugar mais palpável, mais real. Ela queria arriscar e caminhar sozinha.

Eu lhe perguntei se pretendia encerrar naquele mesmo dia, e ela disse que sim. Que se sentia preparada, pois vinha fazia tempo pensando nisso e ficou o mês todo se preparando para essa conversa.

Eu disse que eu não estava exatamente preparada, mas que podia tolerar. Que ela poderia ter compartilhado comigo, em vez de ter vivido essa sua decisão sozinha. Ela disse que era algo a se pensar. Ao nos despedirmos, nos abraçamos e ela respondeu que poderia algum dia voltar.

Existia um clima esperançoso no ar. E nesse momento me lembrei de que, recentemente, ela havia me dito que mudou para um apartamento só seu. Estava conseguindo ter a experiência de morar sozinha, ocupar seu próprio espaço, sem precisar ser sustentada e apoiada pelos outros. Chegou a me dizer que "agora tem uma casa dentro dela também"! Havíamos partido de uma casa muito inóspita, e agora ela já tinha onde morar e até mesmo me parecia muito satisfeita com sua nova morada.

 

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Recebido em: 2/5/2017
Aceito em: 22/5/2017

 

 

1 Este artigo é resultado do segundo relatório oficial da autora para a SBPSP, com supervisão de Carmen Mion e apresentação realizada em maio de 2016.
2 Izelinda Garcia de Barros, membro efetivo, didata da SBPSP, participou da banca examinadora do relatório em que este artigo se baseia.

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