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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dic. 2017

 

SONHOS

 

Sendo no encontro analítico: reviravolta, sonhos, verdades1

 

Being in the analytical encounter: turnaround, dreams, truths

 

Siendo en el encuentro analítico: virada, sueños, verdades

 

Être dans la rencontre analytique: revirement, rêves, vérités

 

 

Giovanna Albuquerque Maranhão de Lima

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. giovannaamlima@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora, inspirada na ideia de que psicanálise é feita em pequenas doses, aborda questões relativas a ser, a sonhos e a verdades partindo da experiência de uma única sessão analítica. A reviravolta vivida nessa sessão instrumentaliza a cesura que faz emergir o desconhecido, o fora do script. O artigo levanta a hipótese de que sonhos são formas estéticas que verdades encontram para se apresentar na sessão analítica.

Palavras-chave: função alfa, sonhos, reverie, verdades, estética


ABSTRACT

Inspired by the idea that psychoanalysis is carried out in small doses, the author addresses issues related to being, dreams and truths based upon the experience of a single analytical session. The session turnaround enables the caesura that allows the emergence of the unknown, the out-of-the-script, and the dreams. The paper's hypothesis is that dreams are the aesthetic form used by truths to present themselves in the analytical session.

Keywords: alpha function, dreams, reverie, truths, aesthetics


RESUMEN

La autora, inspirada en la idea de que psicoanálisis se lleva a cabo en pequeñas dosis, aborda cuestiones relacionadas a ser, a sueños y a verdades, partiendo de la experiencia de una única sesión analítica. La virada vivida en esa sesión viabiliza la cesura que hace surgir lo desconocido, el fuera-de-script. El artículo plantea la hipótesis de que sueños son formas estéticas que verdades descubren para presentarse en la sesión analítica.

Palabras clave: función alfa, sueños, reverie, verdades, estética


RÉSUMÉ

Inspirée par l'idée que la psychanalyse est faite de petites doses, l'auteur relève des questions relatives à être, aux rêves et aux vérités, en s'appuyant sur l'expérience d'une seule séance d'analyse. Le revirement vécu dans cette séance permet à la césure faire ressortir l'inconnu, le hors du script. L'article soulève l'hypothèse que les rêves sont des formes esthétiques trouvés par les vérités, pour pouvoir se présenter dans la séance analytique.

Mots-clés: fonction alpha, rêverie, rêves, vérité, esthétique


 

 

Navigare necesse est, vivere non est necesse.

(Pompeu, citado por Lima Neto, 2007)

 

Introdução

Senti-me instigada a escrever este trabalho, com base, principalmente, na experiência clínica da sessão que tento descrever a seguir.

Diante da complexidade que envolve as questões relativas a ser, a sonhos e a verdades, que vêm sendo exploradas por filósofos, artistas, poetas e psicanalistas, ocorreu-me investigá-las partindo do material clínico de uma única sessão de análise. Inspiro-me na ideia de que psicanálise é feita em pequenas doses.

Trata-se de um encontro analítico em que se dá uma reviravolta, a partir da qual o analisando adormece, começa a ver imagens e a associar enquanto as vê.Esta experiência, assim como a forma que a escrita deste trabalho foi tomando, representa uma maneira pessoal de apropriação das palavras de Bion:

É necessário que toda e qualquer sessão psicanalítica não tenha nem história nem futuro ... O único ponto de importância, em qualquer sessão, é o desconhecido. O analista não deve permitir que nada o que distraia de intuir o desconhecido. (1992, pp. 392-393)

 

A sessão

Ao entrar na sala, Paulo me dirige rapidamente o olhar. Em seguida, caminha até o divã, senta-se enquanto tira os sapatos e deita-se. Ao observar sua chegada, sou tomada por uma impressão dúbia: a de que Paulo segue um script, movimentando-se segundo este. Mas também a de que existe algo que escapa a esse script: algo que vou chamar de "tensão" e que "vejo" no seu caminhar, nos seus gestos e principalmente, no rápido olhar que me dirige.

Após alguns minutos em silêncio, Paulo diz:

Eu...

Quando ouço "Eu" seguido desta longa pausa, sinto um clima de suspense e de expectativa, que me "chama" e me mantém atenta. O tom de voz de Paulo é grave, causando-me a impressão de que, na sequência, ele dirá algo inusitado, profundo. Ele diz:

Hoje não fui trabalhar. Tinha que entregar uns relatórios. E, como eu não consegui terminar essas coisas, liguei no meu trabalho e inventei uma mentira. Eu disse que estava indisposto, que não estava me sentindo bem. Vou ver se consigo terminar esses relatórios hoje.

Sinto aqui, que o "Eu" inicial é de uma natureza e o que Paulo diz na sequência parece ser de outra natureza. Vou pensando: que naturezas serão estas? Estará Paulo fazendo uma confissão? Será uma descarga? O que será que estamos vivendo? Resolvo apresentar a Paulo algo sobre essas minhas indagações. Digo:

Você está começando nosso encontro com isso... tem "eu"... você fica quieto... depois vêm as coisas que você falou... Fiquei pensando... o que será que o moveu a começar por aí?

Paulo me ouve. Em seguida mexe-se no divã, parecendo sair do lugar onde estava até agora e mover-se em busca de outro lugar para si. Ele diz:

Não sei... não sei...

Eu me mantenho aguardando. Depois de um tempo quieto, Paulo diz, com um tom de voz que soa para mim como de alguém que está mergulhado em si mesmo:

Na verdade, eu não sei o que estou fazendo aqui.

Vivo nesse momento uma experiência emocional intensa, difícil de ser descrita em palavras. O clima do encontro muda; agora é de mergulho e reviravolta. Sinto que o que Paulo está vivendo e tentando expressar através de suas palavras tem grande força e que se impõe perante nós dois.

Surge na sua fala "verdade" e "não sei". Toda essa experiência me transmite verdade, coragem e, também, desamparo. Como quem acompanha o que está sendo vivido ali e estimula delicadamente esse clima, digo apenas:

Hum, hum!

Após uma longa pausa, Paulo diz:

Estou sentindo um cansaço... é um cansaço de dentro.

Digo:

Agora você está experimentando algo de dentro...

Paulo me ouve e fica quieto. Sua respiração começa a ficar mais profunda. Ele agora tem a perna esquerda apoiada sobre a direita, que está dobrada. Este "conjunto de pernas" começa a pender para um lado e para outro, para um lado e para outro, me fazendo ver uma espécie de escultura com movimento. Ou seria um móbile?

Começo a pensar num equilíbrio instável. Vou pensando: estará Paulo tentando se equilibrar entre o mundo da vigília e o mundo dos sonhos? Estou em contato com isto, quando o ouço falar:

Agora me vi agachado, pegando umas coisas do chão: tomate, pepino e alface. É pra fazer uma salada.

Sentindo-me impactada e ao mesmo tempo enlaçada pela experiência em curso, me pergunto o que estará acontecendo. Estará Paulo vendo imagens que brotam da "salada vigília-sonho"? Como quem está sondando, digo:

Você pegou o cansaço de dentro há pouco, e agora surge a salada.

Após uma pausa, Paulo diz:

Acho que se eu abrir os olhos, vou parar de sonhar. Então, vou continuar com os olhos fechados.

Digo:

Para sonhar seus sonhos.

Paulo responde: É. (pausa) Eu vejo um sonho, e, quando vou pensar em te falar, ele já se desfez. Você surgiu em um desses sonhos, e em seguida desapareceu. (pausa) Parece que quero dormir, para poder sonhar (pausa). Agora estamos em uma casa grande, a gente não mora lá. Na sala de espera tem um bebê no colo de um adulto, e mais uma criancinha. Vamos pra parte de cima da casa, entro numa sala grande. Tem uma cadeira grande, de palhinha trançada. Tem outra pessoa, ela levanta e vai embora. Você fica sozinha.

Digo: Hum, hum. E você? Onde você está?

Paulo responde: Eu passo por essa sala, e você está lá. Eu passo, e saio.

Após uma pausa, diz: "Agora passei por um hospital (pausa) agora passo por uma escola..."

Aqui tenho a impressão de que Paulo está saindo não só da casa do sonho, mas também do próprio sonho. A sessão está acabando, ele começa a "acordar" e se espreguiçar, enquanto me diz: "Acho que estou precisando fazer uma pausa, sabe? Assim, pra pegar umas coisas do chão".

Ao ouvi-lo, surge em minha mente a imagem da salada vigília-sonho do início da sessão, a qual agora vem precedida de uma pausa. Seria uma pausa nos sonhos? Pausa para montar outra salada, depois dessa sessão? Tendo este pensamento em mente, respondo dizendo "E fazer uma salada"; em seguida, encerro a sessão.

 

Ressonâncias

Apresento a seguir algumas ressonâncias desse encontro analítico.

O analisando chega à sessão como quem está automatizado e, ao mesmo tempo, deixa que algo consiga escapar ao seu script e seja captado pela analista. Surge em sua primeira fala "Eu", trazido por um tom de voz profundo, que sugere presença. Mas, em seguida, este Eu é acompanhado de reticências, como uma "presença falhada" ou uma "quase ausência". A analista se pergunta o que está acontecendo; é um jogo presença-ausência?

A fala que vem na sequência do "eu das reticências" parece ter mais a função de seguir automaticamente um script, como numa espécie de mentira. A analista faz uma intervenção que culmina com a formulação da questão: "O que será que o moveu a começar por aí?" Ela traz para o encontro nesse momento a dimensão do desconhecido e da busca. O analisando parece acolher sua proposta de investigação através de uma aproximação hesitante ao não saber" Não sei... (pausa) não sei..." Mas, na sequência, o que era só uma aproximação hesitante transforma-se em mergulho e amplifica o desconhecido presente no encontro, através da fala do analisando: "Na verdade, eu não sei o que estou fazendo aqui".

Dá-se a reviravolta: agora existe um Eu com palavras, embalado por verdade e que traz o não saber de Paulo.É esse mesmo Eu que, estimulado pela pequena dose oferecida pela analista - "Hum, hum!" -, anuncia a seguir o cansaço vivido por Paulo naquele momento do encontro. O cansaço de Paulo, depois de experimentado, também se transforma em cansaço com uma natureza: "é um cansaço de dentro", diz ele.Uma vez que o dentro pôde ser experimentado e nomeado, Paulo entrega-se mais e começar a "ver" o que ele nomeia como sonhos. Em seguida, surge a salada.

Associo o clima da sessão ao de um ambiente em que as verdades daquele momento parecem encontrar lugar e lanço a pergunta: o que vem a ser verdades na clínica psicanalítica? Quais seriam as formas expressivas que verdades podem assumir em um encontro analítico?

Paulo diz para a analista que vê um sonho e, quando pensa em lhe contar, o sonho já se desfez: ela havia surgido e desaparecido em um desses sonhos. Aqui, passam a existir em concomitância a analista que o ouve e acompanha e aquela analista dos sonhos, que surge, desaparece, ressurge. Paulo está em contato com a transitoriedade de sua vida mental, está vivendo esta transitoriedade.

Após levar a dupla para dentro de uma casa, apresentando para a analista alguns de seus ambientes e personagens, Paulo começa a sair da situação de intimidade, dirigindo-se para lugares públicos. Indago se temos, aqui, outro jogo presença-ausência?

 

Considerações teóricas

Inspirada nessa experiência clínica, apresento a seguir algumas correlações teóricas pautadas principalmente pela obra de Bion.

Tomo o O desse material clínico como o sendo de Paulo. Com base nas experiências emocionais vividas pela dupla durante o encontro analítico, penso que, quando a sessão termina, Paulo era mais ele mesmo do que quando a sessão começa.

As transformações ocorridas durante o encontro parecem ir mais na direção de sendo O do que na direção de conhecendo - vínculo K -, o que pode ser tomado nesse contexto como o script que Paulo segue em alguns momentos da sessão, principalmente no início.

Proponho que as imagens que ele vê ao longo da sessão sejam o que formulo como "pequenos sonhos", seguindo de perto a linguagem usada pelo próprio analisando. Esses pequenos sonhos são expressão de sua função alfa. É a partir da experiência do "cansaço de dentro" que a função alfa do analisando é ativada, e ele começa a "ver" imagens ao longo da sessão: "Agora me vi agachado...", "Eu vejo um sonho, e quando penso em te falar...", "Agora estamos em uma casa grande..."

Esse cansaço, decorrente do encontro com a analista, necessita ser processado, digerido. Isto requer processamento pela função alfa, que corresponde a uma abstração proposta por Bion (1962/1994). A função alfa é responsável por transformar os elementos beta decorrentes do encontro - por exemplo, o choque entre as duas personalidades, a do analisando e a da analista - em elementos oníricos.

A fala de Paulo "Na verdade, eu não sei o que estou fazendo aqui" nos remete à ideia de "não-seio" (Bion, 1962/1994), se pudermos ouvi-la assim: "Eu não-seio o que estou fazendo aqui". Esta escuta propicia a realização do conceito de não-seio, sublinhando a não-presença, base constituinte do pensar psicanalítico.

Sobre não-seio, afirma:

Restringirei o termo "pensamento" à união de uma pré-concepção com uma frustação. O modelo que proponho é o de um bebê cuja expectativa de um seio se una a uma "realização" de um não-seio, disponível para satisfação. Essa união é vivida como um não-seio, ou seio "ausente", dentro dele. O passo seguinte depende da capacidade do bebê de tolerar frustração. Bion (1962/1994, p.129)

Posteriormente, Bion (1965/2004) propõe que "o não-seio pode ser representado pela imagem visual do ponto. Possui o significado de um seio que foi reduzido a uma mera posição - o lugar onde o seio estava".

O não-seio, em caso de ser tolerado, poderá evoluir para pensamento. No material clínico é no momento em que o analisando dá a reviravolta, passando do "Eu da presença falhada" para o "Eu que anuncia a não presença", que acontece a evolução para pensamentos oníricos.

Surgem então seus pequenos sonhos, que podem ser tomados como pensamentos na dimensão coluna 2 da grade de Bion (pensamentos oníricos, mitos, sonhos), no sentido de serem compreendidos como aproximações graduais à verdade do analisando.

A esse respeito, cito Junqueira Filho (2003):

A coluna 2 foi apresentada por Bion em Elements of psychoanalysis como albergando formulações sabidamente falsas, mas que dotam o paciente com uma teoria que poderá agir como barreira defensiva contra sentimentos ou ideias que poderão vir a ocupar seu lugar. Em 1963 (publicado em 1997) Bion elabora um artigo exclusivo, denominado "A Grade", onde a col. 2 é proposta para a alocação de afirmativas que, independentemente de sua veracidade, têm a função de funcionarem como resistência ao desenvolvimento psíquico (representado pelo signo psi). Este artigo foi modificado e publicado em 1977 com o mesmo nome, "A Grade", constando agora um reconhecimento explícito da necessidade de distinguir-se um relato mentiroso de um relato falso (ligado este à precariedade essencial da natureza humana): a col. 2 continua a ser proposta como refúgio para formulações que se reconhece serem falsas, mas que impedem o surgimento de mudanças catastróficas.

Infelizmente, no último capítulo de Elements of psychoanalysis, conjecturando sobre possíveis aprimoramentos da Grade, Bion faz a afirmação que dá margem a mal-entendidos quanto ao conceito de coluna 2. Diz ele, "Senti que a coluna 2 poderia ser substituída através de um sentido negativo ao eixo horizontal ... Poder-se-ia então dizer que todos os 'usos' de 1 (seta) n poderiam ser usados negativamente, como barreira contra o desconhecido ou contra o conhecido que não agrada". Com esta afirmação, abrem-se as portas para a compreensão equivocada da Grade Negativa (domínio de -K) como uma versão elaborada da coluna 2, como propôs Symington (1996, p. 113); no meu entender, fica claro que Bion reservou a col. 2 para categorizar estratégias resistenciais protelatórias, e não fenômenos -K, opinião coincidente com a de Meltzer (1984, p. 81).

Proponho que essas estratégias resistenciais sejam as pequenas doses de verdades que tanto o analisando como a analista precisaram providenciar ao longo do encontro, na direção do O da sessão, o sendo do analisando. Nesse sentido, ressalto o pensamento bioniano de concepção processual de verdades na clínica psicanalítica:

Um desenvolvimento mental saudável parece depender de verdade do mesmo modo que um organismo vivo depende de alimento. Caso falte verdade ou ela seja deficiente, a personalidade deteriora ... a falta de respeito pela verdade pode resultar em inanição da psique e retardo no desenvolvimento. (Bion, 1965/2004, p. 54)

O conceito de verdade na obra de Bion tem um significado diferente daquele usado no sentido religioso, em que a verdade é considerada algo absoluto. Como afirma Talamo "para Bion, a verdade, ao invés, está em contínuo devenir, em evolução - não se trata apenas de nos avizinharmos mais da verdade, mas do fato de que ela mesma evolve" (2000, pp. 63-64).

Verdades aqui compreendidas como uma busca, algo em constante movimento, que não se encaixa em um script. Os sonhos são independentes do tempo, do espaço e da lógica formal da realidade. Livres, os sonhos podem expressar verdades - com v minúsculo e no plural.

Formulo a hipótese de que os pensamentos oníricos e sonhos são formas estéticas que algumas verdades encontram para se apresentar nessa sessão analítica.

E a associo com as palavras de Freud:

O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição ... A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhe empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. (1916/1996, p. 317, 318)

Será que podemos pensar os sonhos como flores - nem sempre belas - que duram apenas uma noite e que na manhã seguinte já não existem mais, ou que têm sua existência esmaecida? Ou ainda, sonhos-flores que duram apenas uma sessão?

Durante a escrita da sessão e como parte de sonhá-la, me veio à mente a imagem de uma sonda espacial e sua função de exploração e pesquisa em outros planetas, asteroides, satélites (Talamo, 2000). Penso que durante essa sessão a dupla analista-analisando foi seguindo essa espécie de sonda, sem ideia de para onde ela levaria e vivendo o desconforto de, na maior parte do tempo, estar diante do desconhecido.

A reverie da analista parece ter possibilitado que a sonda pudesse seguir adiante, explorando. Reverie é um conceito formulado por Bion (1994) e que está ligado à capacidade da mãe de receber e metabolizar a informação sensorial consciente do bebê, transformando-a em elemento alfa, necessário para desenvolver a função alfa e, consequentemente, o seu aparelho para pensar.

Talamo (2000), ao referir-se à reverie, diz:

Essa disposição mental do analista que, à primeira vista, parece tão distante de Freud, embora não seja outra coisa senão a evolução da atenção livre e flutuante através da reverie materna, é uma emanação de um conceito metapsicológico subjacente a toda a obra de Bion, o conceito de verdade. (2000, p. 62)

A reviravolta vivida nessa sessão instrumentaliza a cesura que faz emergir o desconhecido, o fora do script. Quando mergulhamos em profundidade na vida mental, deparamos com a cesura e a descontinuidade que lhe são próprias. Kirchbaum aborda essa questão:

Já o "instrumento" utilizado pelo psicanalista para observar e participar da experiência psicanalítica é da mesma ordem de grandeza do "objeto" investigado. Como nesta experiência psicanalista e analisando participam e se observam mutuamente, a experiência é transformadora para ambos, analista e analisando. Por transformadora estou sugerindo que, no mesmo momento em que ocorre a experiência de conhecer, os participantes da mesma não são mais os mesmos. Ocorre um corte, uma cesura, como Bion conceituou, a partir de uma citação de Freud. Há, portanto, uma descontinuidade entre o antes e o depois dessa experiência, promovida pela cesura e constituindo nova camada, coerente com o último modelo de funcionamento mental, proposto por Bion. A cesura estabelece a descontinuidade. (2011, p. 4)

As cesuras que foram se dando nessa sessão viabilizaram o surgimento sucessivo de novos estados emocionais.

Concluo, retomando a epígrafe do trabalho "Navegar é preciso, viver não é preciso". Sonhar é necessário, viver a experiência emocional é ousar, criar.

 

Referências

Bion, W. R. (1992). Notas sobre memória e desejo. In W. R. Bion, Cogitações (pp. 392-397). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

Bion, W. R. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados. (pp. 127-137). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (2004). Transformações. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Freud, S. (1996). Sobre a transitoriedade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 313-319). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1916)        [ Links ]

Junqueira Filho, Luiz C. U. (2003). Sobre a gênese e o uso de formulações emocionais relativas. In Sismos e acomodações: a clínica psicanalítica como usina de ideias (pp. 167-81). São Paulo: Rosari.         [ Links ]

Kirchbaum, I. (2011). Estímulo para conversas psicanalíticas. Apresentado no grupo Conversas Psicanalíticas da SBPSP, em 21 de maio de 2011. São Paulo.         [ Links ]

Lima Neto, L. de. (2007). Securitização de ativos: iniciando a exploração da nova fronteira. Dissertação de Mestrado, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.         [ Links ]

Talamo, P. B. (2000). Por que não podemos nos intitular bionianos. Ide, 32,60-65.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 2/5/2017
Aceito em: 29/7/2017

 

 

1 Artigo desenvolvido com base em trabalho apresentado em Reunião Científica na SBPSP em 24 de agosto de 2015.

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