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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017

 

AULA INAUGURAL DO INSTITUTO DE PSICANÁLISE

 

Atitude psicanalítica1

 

 

Cecil José Rezze

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da USP. São Paulo. cjrezze@uol.com.br

 

 

Feito o convite pela diretora do Instituto, não titubeei em aceitá-lo refletindo que, se tenho trabalhado com psicanálise por muitos anos, obviamente tenho uma atitude psicanalítica.

Tudo bem, vamos explicitá-la.

Aí um universo infinito se abre diante de meus olhos. Já temos dois significados ou qualidades de atitude: atitude precipitada na aceitação do convite e a revelação da extensão de minha ignorância em qualquer assunto em que tento me aprofundar.

Há muitos anos, eu era um observador de grupo de psicoterapia do professor Darcy de Mendonça Uchoa, analista didata da SBPSP, que, após a reunião do grupo, gentilmente conversava comigo a respeito do que houvera acontecido e das teorizações a respeito. Em certa oportunidade, expus algumas ideias, e ele me disse que eu era freudiano (ou tinha viés freudiano). Fiquei surpreso, porque eu pouco ou quase nada sabia de psicanálise. No entanto, eu fizera cinco anos de psicoterapia de grupo com a professora Noemi da Silveira Rudolfer, com os mesmos companheiros que eram, como eu, alunos da Faculdade de Medicina da USP . Não sou capaz de lembrar ou de avaliar quais os referenciais por ela utilizados; as teorias de Klein estavam sendo introduzidos nessa época na psicanálise brasileira, anos 1950; lembro-me vagamente da referência a dois seios, no entanto, o trato dado a nós era muito respeitoso e sensível, dando-nos a oportunidade de uma vivência rica e proveitosa.

Hoje, repensando essas ideias, com vistas a nosso encontro, pergunto se poderia considerar o que seria uma atitude freudiana, a que o professor se referiu? Ao considerar uma atitude em psicanálise, talvez se torne inevitável considerar atitudes como freudianas, kleinianas, bionianas, winnicottianas e outras, considerando a bagagem teórica fundamental de cada analista. Dizem que os analistas devem ter uma introjecão bem-sucedida de autores como Freud, Klein, Winnicott, Ferenczi e outros, ou das teorias deles.

E a atitude freudiana?

Seriam as minhas opiniões introjeções desse rico período com a professora Noemi? Ou seriam pensamentos de uma psicanálise selvagem coloridos, por mim, de umas tintas aqui e ali mais vistosas?

Seriam essas conjecturas pensamentos? Bion propõe que os pensamentos existam previamente ao pensar e que nós desenvolvemos o aparelho para pensá-los.

Aí volto à palavra atitude.

Talvez eu devesse começar pelo seu aspecto geral, e não particular, como o fiz.

Atitude existe em relação a algo ou alguma coisa: atitude ética, atitude médica, atitude corajosa, atitude respeitosa... Implica sempre a relação do sujeito com um objeto: a ética, a medicina, a coragem, o respeito...

E a atitude psicanalítica?

Diz respeito à relação do psicanalista com o cliente. No entanto, não é o analista nem o cliente, é algo entre eles: psicanálise.

Em sendo assim, sou levado a considerar que a atitude psicanalítica deve ser considerada tanto por parte do analista quanto do cliente. No entanto, para os fins de desenvolver algumas ideias, por enquanto, restringir-me-ei ao analista.

Vou prosseguir por aproximações.

Os pensamentos preexistem ao pensar. Onde eles habitam?

Onde habita a psicanálise?

Pensei em outros habitantes e seus locais de habitação, a música, por exemplo.

A resposta é mais simples. Ela habita o espaço, o ar, e é capturada pelas estações de rádio am, fm etc.

Mas como apreendê-la?

Uma nesga de vivência me vem à mente com a Nona Sinfonia de Beethoven e uma maravilhosa participação coral, que não existe em suas outras sinfonias. É uma poesia de Schiller, uma ode à vida, maravilhosamente cantada em alemão, o que me levou a procurar a tradução em inglês e francês, que estava na capa do lp.

Vi recentemente na televisão um programa sobre artistas da música brasileira e que focava a cantora Gal Costa, a qual eu acompanhara nos inícios de sua carreira, indo mesmo ao teatro para ver suas apresentações. Era uma pessoa jovem e bonita. No programa apareciam amigos e colegas, que participaram ativamente desses inícios, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé e outros que nem conheço. A atmosfera, desses tempos e também dos atuais, era de muita amizade e afeto entre eles na procura de um caminho para suas existências. Gal desde cedo acalentava o sonho de ser cantora e assim o perseguia na relação com os colegas próximos, os que ela admirava, ou mais distantes, como João Gilberto, um ídolo.

O que selecionei foi por uma vivência afetiva, ou seja, o aparecimento da cantora, acompanhada somente de um violão e cantando uma música da qual não me lembro o nome nem mesmo a melodia, mas que naquele instante soou-me algo que me conduziu a um sentimento de ouvir música, suportada, mas independente da figura da cantora, do canto, do violão, que parecia ser totalmente dispensável, dado o contato direto que senti com a música.

Posso falar de uma atitude musical? Da cantora? Da minha?

O mesmo pode ser dito quanto ao ter ouvido algo, no episódio que relatei da Nona Sinfonia, particularmente do coral?

O caminho que estou tomando se deve ao fato de que desejo falar-lhes: do prazer autêntico sem perder a profundidade, transitar pelo sentimento sem faltar a condição do pensamento, liberdade de imaginação sem perder os significados, ou perdê-los...

Ao seguir por essas veredas, veio-me à mente um trecho de uma supervisão de Bion (A 39), a propósito de um jogo de futebol do Brasil, ao qual o cliente não foi assistir, privilegiando seu horário de análise, daí decorrendo várias vicissitudes, mas cujo evolver permitiu o que se segue.

Não será prejudicial a ninguém se, como analistas, pensarmos que o jogo analítico pode ser sério e divertido. Portanto, se você está praticando a análise, há o fato real de ver os pacientes, e assim por diante... se você está tentando aprender sobre análise ou tentando se tornar mais sábio a respeito disso, não há nenhuma razão real para que isso não seja divertido.

Em outra oportunidade ele dirá: "Será que é permissível ter prazer em um encontro psicanalítico?" (Bion, 1992, p. 196).

Essa proposição de que o jogo psicanalítico possa ser sério e divertido não é comum no cenário da psicanálise, menos ainda o prazer; o divertido aproximo de meus estudos sobre o prazer autêntico que se complementa com o sério de Bion, mas sobretudo a seriedade de considerar a dor como o elemento prevalente em psicanálise.

Aqui estou entrando com elementos psicanalíticos, especialmente aqueles praticamente nãoconsiderados na psicanálise como o "divertimento" e o prazer autêntico (Rezze, 2012a, 2014). São elementos que dizem respeito a minhas reflexões sobre psicanálise. Embora eu tenha me dedicado, o quanto possível, às teorias de Freud, Klein, Bion e outros autores, estou ressaltando que o analista pode ter uma visão reflexiva e própria sobre o seu trabalho, por mais que mantenhamos o respeito e agradecimento aos que nos precederam.

Volto à atitude psicanalítica.

Ao pensar no termo atitude, ocorreu-me que durante uma sessão de análise (às vezes na apresentação de um trabalho) se sente ou se diz de uma atitude corajosa, de uma atitude medrosa, atitude enganosa, atitude evasiva, ati- tude intimidada, atitude prepotente, atitude de intimidade, atitude de compaixão...

Quanto à atitude psicanalítica, vamos considerá-la dependendo de todos esses fatores que estou levando em conta e ainda mais os estudos feitos pelo analista, sua prática, supervisões, análises, convivência societária, o que determinará a atitude psicanalítica de cada um.

Se considerarmos, no entanto, que a atitude se refere à relação do sujeito com um objeto, a atitude psicanalítica ocorre na relação que se forma entre o psicanalista e o analisando; o campo que se forma, então, entre eles é o objeto psicanálise

Dada a proposta - atitude psicanalítica -, haverá uma atitude tal, que será reconhecível como psicanalítica independentemente da pessoa considerada, das teorias, da situação geográfica e cultural, étnica, econômica, e assim por diante?

Daí as minhas andanças pela canção popular e a sinfonia. Podemos considerar que existe a música a qual pode ser reconhecida como tal, que não depende do canto, do instrumento, da partitura, das emoções, embora tudo isto possa ser necessário ou não.

A psicanálise surgirá, no entanto, na relação do analista e seu cliente, encontro este indispensável para que ela ocorra. Assim, muitos elementos e procedimentos aparecem, quando encetamos essa jornada com alguém.

Se considerar que me disponho a atender o cliente, suponho que disponho de uma atitude psicanalítica para oferecer-lhe. Esta variou através dos tempos.

Hoje verifico que alguns elementos são constantes e, às vezes, podem ser traduzidos em termos de ideias que possam ser acessíveis aos colegas quando quero fazer uma comunicação.

Por exemplo, trabalho tendo por base a experiência emocional, oriunda das proposições de Bion, mas que, naturalmente, ao ser por mim utilizada, vai ter as minhas feições, dado o hiato incomensurável que existe entre qualquer teoria e a realização que cada um de nós faz dela. Na tentativa de comunicar minha experiência, escrevi "Experiência emocional: um olhar diferente" (Rezze, 2012b). O que consegui foi uma expansão conceitual cada vez maior, proporcionando-me grande prazer e sofrimento, ao caminhar em áreas progressivamente mais desconhecidas para mim, necessitando um limite da curiosidade e indagação, pois a expansão tornava-se algo com possibilidades infinitas, e meus talentos e recursos são finitos. O fato de afirmar que me situo na experiência emocional para realizar meu trabalho pode dar a impressão de isso ser natural e próximo para mim. No correr de minha vida, particularmente a profissional, passar a uma atitude dessa natureza com o cliente, implicou uma verdadeira revolução mental, em que o mundo deixou de ser o mesmo, determinando uma visão nova, cheia de espanto, perplexidade, dúvida, expansão.

Como estamos em uma aula inaugural dos cursos, dirijo-me predominantemente aos membros filiados, com os quais estou tendo seminários no Instituto. Então, uma extensão dessas ideias se aplica a minha atividade como coordenador de cursos. Creio que vale a experiência dos seminários, tendo em vista um tema de estudo, uma linha de trabalho, mas parece-me essencial que cada participante possa ter um campo de expansão, encontrar-se com uma participação em que seja convidado ao risco, ou seja, a trazer de si uma contribuição do que pensa e sente, independentemente de um juízo crítico que possa obstar esse senso de colaboração.

Parece-me que estou em uma linha de abstração ou generalização e vou tentar a de particularização, muito embora eu tenha a experiência da dificuldade que surge quando tentamos ilustrar uma teoria ou aspecto geral com material clínico, por exemplo.

O episódio ocorreu em uma supervisão, e, naturalmente, o que apresento é uma transformação minha.

Cecil, veja: eu estou com transferência e depois apareceu a contratransferência - consciente, inconsciente -, a identificação projetiva, a experiência emocional e a reverie. Como fica a relação da transferência com a reverie e a experiência emocional? É difícil estabelecer a ligação. Além disto, quando a gente está com o analisando, ainda surge um monte de sentimentos. Como a gente faz com tudo isto?

Ao acompanhá-la percebo-a em uma atmosfera de dúvida, perplexidade, espanto, mas com curiosidade e esperança quando se lança nessas indagações, que lhe revelam um mundo novo e desconhecido.

O episódio revela não propriamente uma atitude psicanalítica, mas a semente dela, e oxalá esta se desenvolva.

Assim considerando, penso na atitude desse futuro analista, que, com a devida consideração pelo cliente, possa entrever-se em um mundo de afetos, para os quais tenha liberdade e intimidade.

Essas me parecem palavras-chave para uma atitude psicanalítica. A atmosfera psicanalítica será permeada por miríades de afetos que constituem a vida humana; amiúde destaca-se a dor, para a qual a psicanálise desenvolveu amplo repertório de acolhimento, cabendo a nossos talentos transformá-la em algo favorável à vida.

Depois de muitos anos de trabalho clínico e vivendo a minha existência, tenho tido a oportunidade de destacar que, além da linha mestra da dor, numa consideração hiperbólica (exagerada), podemos considerar como outra linha mestra a do prazer, o qual, no intuito de ter um instrumento mais adequado de investigação, chamei de autêntico: prazer autêntico (Rezze, 2012a; 2014).

Assim, nossa atividade no Instituto pode permear-se dessa atitude que, além da dor necessária ao perceber nossa ignorância e limitação, nos permita usufruir de transformar cada encontro em uma possibilidade de desfrutar de nossos talentos e ter satisfação e encantamento com a existência.

Voltando à proposta - atitude psicanalítica -, haverá uma atitude tal, que será reconhecível como psicanalítica independentemente da pessoa considerada, das teorias, da situação geográfica, cultural, étnica, econômica...?

Passemos a lidar com o que foi dito utilizando outro viés, com o objetivo de verificar se encontramos os mesmos elementos tratados anteriormente através de outras vozes.

Em trabalho anterior, "O dia a dia de um psicanalista. Teorias fracas. Teorias fortes" (2010), afirmo ter feito uma pesquisa psicanalítica. Mas em que campo? A psicanálise é uma ciência?

Esse é o cerne da questão.

O que é psicanálise?

Em Controvérsias psicanalíticas, Green (2005, p. 632) afirma: "Do meu ponto de vista, a psicanálise não é nem ciência e nem hermenêutica. É uma prática baseada em pensamento clínico e que leva a hipóteses teóricas". Para Wallerstein (2005), que defende a procura de uma base comum (common ground) no pluralismo contemporâneo da psicanálise atual, a opinião é diversa, considerando a psicanálise como disciplina independente "baseada na investigação dos processos mentais inconscientes, mas com interfaces ... variando desde a filosofia e a linguística em uma extremidade do espectro e a psicologia cognitivista e a moderna neurociência na outra extremidade" (Wallerstein, 2005, p. 635). Nesta sintética afirmação, palavras condensam situações de dimensões incomensuráveis como: que filosofia?, quais escolas linguísticas? E como utilizar o que se chama de neurociência, mas que tangencia a neuropsicologia, neurofisiologia, neuropsiquiatria, neurocirurgia, neurofarmacologia etc. Não bastasse isto, como relacionar com a pluralidade das teorias psicanalíticas, para as quais a procura de um suposto "common ground" é tão rebatida por Green?

A expressão "atitude psicanalítica" não é encontrada como verbete nos dicionários de psicanálise por mim consultados na Biblioteca da SBPSP, no entanto, aparece de variadas formas nos trabalhos psicanalíticos, e mais frequentemente nos que tratam da técnica psicanalítica.

Consideremos como o tema da atitude psicanalítica pôde ser acompanhado.

The Analytic Attitude é o título do livro (Schaefer, 1983) no qual o autor nos afirma, na Introdução, que "a atitude psicanalítica coloca-se como uma das maiores criações de Freud". Assinala que da consistência da atitude psicanalítica dependem os achados da psicanálise, como método de investigação e seus resultados, como método de tratamento, embora o termo não seja utilizado por Freud. A seguir pergunta: "Mas, o que é a atitude psicanalítica?"

Continua assinalando que o tema aparece com frequência nos tratados de técnica psicanalítica, mas que esta literatura apresenta dificuldades, pois os autores não dão ênfase aos mesmos pontos, o que de forma extremamente sucinta e atual descrevemos com as citações de Green e Wallerstein. Examina as diferenças e assinala a dificuldade de encontrar uma síntese geral sobre o tema.

Entende-se por atitude mental do analista sua disposição para trabalhar com o paciente, realizando da melhor forma possível a tarefa a que se comprometeu, e que consiste em explorar seus processos mentais inconscientes e torná-los compreensíveis.

Esta observação (Etchegoyen, 1987, p. 298) se insere no "enquadre psicanalítico", o qual norteia "Os fundamentos da técnica psicanalítica". Quanto ao tema - atitude mental psicanalítica -, este se complementa com a citação de Freud quanto à regra da abstinência e a reserva analítica: "O médico não deve ser transparente para o analisado, mas como a face de um espelho, mostrar só o que lhe é mostrado". Ela é fundamental para que se observem os fenômenos transferenciais. "A regra da abstinência se refere a que o médico não deve gratificar os desejos do paciente em geral e, sem dúvida, particularmente, seus desejos sexuais."Quanto aos autores citados, a atitude psicanalítica se liga a um paradigma que tem por base as ideias de Freud, embora este não tenha usado a expressão, sendo as observações dos autores, suas conclusões a respeito, feitas a partir dos trabalhos sobre técnica.

O campo da psicanálise vai se expandindo amplamente, e os trabalhos de Zimerman nos dão uma visão do alargamento do espectro. Assinala que a psicanálise contemporânea

considera o analista não mais do que uma pessoa, bastante bem treinada e preparada, que, junto com outra pessoa - o paciente -, constitui o campo analítico, isto é, uma mútua e permanente interação, na qual cada um influencia e é influenciado pelo outro. (2008, p. 24)

Neste viés considera a atitude de incerteza, a qual favorece o necessário estado mental interrogativo. O analista contemporâneo não se coloca como o centro do universo da vida do analisando, o que permite uma atitude de abertura para escutar as múltiplas dimensões que possui a narrativa do paciente. Nesses vieses a atitude psicanalítica interna do terapeuta permite respeitar o seu consenso racional, afetivo e intuitivo, diante de cada paciente em separado, na sua prática cotidiana. A partir desta formulação e considerando que a interpretação não é o único fator para a terapia psicanalítica, o autor propõe o recurso de um eixo de coordenada e abscissa (p. 46) no qual na vertical estão as interpretações e na horizontal a atitude psicanalítica interna. Esta permite algo além da interpretação, ou seja, uma percepção de que o paciente está sendo compreendido, acolhido, acompanhado e respeitado pelo seu terapeuta. Tal atitude, ou seja, o predomínio de eixo horizontal terá maior importância quanto maior for o estado regredido do paciente (borderline, estados psicóticos). Assim, levando em conta todos estes fatores, na relação com o paciente, este pode perceber a atitude de amor às verdades, à discriminação de fatos e sentimentos, o respeito e tolerância às diferenças, colocação de limites sem arrogância, concessão de liberdade sem licenciosidade e, sobretudo, que seu analista acredita nele.

Talvez possamos comentar que as atitudes propostas, em seu conjunto, correspondem à expressão de um ideal.

Fazendo contraponto, podemos considerar: atitude psicanalítica de amor e atitude psicanalítica de ódio.

"O trabalho analítico é amado e odiado. Ambas as atitudes merecem escrutínio", assim Nathan Kravis (2013) inicia o resumo de seu trabalho "O ódio do analista à análise", o que ele sugere ser um título provocativo, mas que lhe permite considerar que o ódio à psicanálise é uma experiência comum no trabalho clínico do analista. Considera seguro assinalar que todos os analistas têm a experiência de se arrastar em um dia de trabalho, sentir-se cansado, aborrecido, distraído, ansioso, ou deprimido acerca de problemas pessoais que não podem ser atribuídos a reações transferenciais quanto a este ou aquele paciente. Ele vai relacionar tais fatos não simplesmente a que o analista é humano, mas que está ligado a uma tensão entre as características do indivíduo e as exigências da cultura. Prossegue considerando como é árduo o trabalho do analista e como os resultados podem levá-lo a sentimentos de frustração, o que ele vai considerar com o subtítulo "Os esforços narcisistas frustrados do analista", de onde vão surgir os subprodutos de humilhação e o sentimento de fraude. Examina longamente a atitude de idealização, comparando-a à de São Francisco de Assis, que transformou a pobreza em sua "Lady Poverty", à qual passa a servir, o que aparece no afresco de Giotto na Basilíca de São Francisco de Assis. Tratando da falência do trabalho analítico quando o analista passa a servir à "Lady Psychoanalisis", tece extensas e oportunas considerações até mesmo no que tange à formação psicanalítica.

Esse autor faz um exame mais amplo sobre a psicanálise nos Estados Unidos e sobre como isto influi na formação. Foca no fato de que analistas que participam da formação procuram incentivar os "candidatos", porém, em uma atitude idealizada, e estes, muitas vezes, têm pouca experiência com pacientes em sua prática clínica, negando realidades que o autor procura deixar muito claras e que devem fazer parte intrínseca da formação analítica.

Com o sugestivo título "Estabelecendo a relação: a educação de um psicanalista", Stephen D. Purcell (2014) nos apresenta um conto em que relata a sua experiência aos 21 anos, quando, procurando um trabalho de verão, encontra-o em um vetusto hospital psiquiátrico, onde vai ser recebido por Sybil, enfermeira chefe, personagem principal dessa história, que, sob a aparência discreta e severa, torna-se afetiva e espontaneamente agente de atitudes de profunda intuição, acolhimento e receptividade. A trama principal se desenrola depois da internação de Tommy, rapaz de 16 anos, que já tivera internação anterior, com história de comportamento agressivo, delinquência, drogas, e que se relacionava de maneira que entre ele e o nosso personagem parecia haver uma parede de "Plexiglas". Após convivência, como acompanhante psiquiátrico, estabeleceu-se uma relação de sincera amizade entre os dois jovens, de maneira que tanto Sybil quanto o médico responsável por Tommy acordavam que tinha havido grande melhora dos jovens. Após dois meses, a mãe o visita e pontua a necessidade de ele deixar o hospital, pois ela não tinha recursos para mantê-lo ali. Nessa noite ouve-se um barulhão, todos acudindo assustados, e vendo Tommy tentar arrebentar uma porta, gritando que quer sair. Após um ferimento de Sybil, que tentava aplacar o rapaz, os funcionários se precipitam sobre Tommy procurando contê-lo. Neste instante, ele olha diretamente para Stefhen e repete por três vezes "eu te odeio". De uma vivência amorosa anterior bem-sucedida, Stefhen se perde, se desorienta, se desespera diante daquela súbita e inesperada mudança, em que o ódio grassa livre e violentamente. No auge dessa agonia, ouve um murmúrio suave em seu ouvido: "ele te ama". "Tudo mudou." As palavras de Sybil permitem-lhe uma imediata recuperação e o acompanharão como referência valiosa em todo o seu trabalho de desenvolvimento como psicanalista, em relação ao qual faz uma distinção clara entre o sensível e intuitivo trabalho no ambiente psiquiátrico e aquele da situação analítica. "Antes do comentário de Sybil, eu não sabia de forma consciente que alguém poderia fazer isso pelo outro, que a experiência emocional era tão potencialmente alterável."

Posso dizer que o trabalho desse autor denota de várias formas o que vem a ser uma atitude psicanalítica, embora ele não use o termo.

Mas a relação essencial da psicanálise não inclui um alívio catártico e nem uma discussão intelectual sobre psicodinâmica. Não é uma conversa sobre emoção, mas em vez disso uma conversa emocional. É uma forma fundamental de troca emocional, de comunicação e relacionamento - a qual cria en passant algo novo. (Purcell, 2014, p. 802)

Embora o trabalho de Nathan Kravis seja extremamente estimulante pela sua capacidade crítica e a abordagem de elementos que raramente são considerados, como o reconhecimento de que muitos sentimentos e estados de espírito durante a sessão não são atribuíveis à contratransferência e ao ódio à psicanálise, ainda assim fico mais próximo de Stephen Purcell. Como ele, também usei um relato pessoal para desenvolver minhas ideias e posteriormente caminhar para a abstração.

 

Conclusão

A expressão "atitude psicanalítica" permite adentrar a psicanálise através de múltiplas faces de forma rica e criativa, no entanto, por isso mesmo, não se consegue uma abstração que a signifique adequadamente, que a tome como um todo.

Creio que o acesso se dê por meio da formulação: há uma atitude que é reconhecível como psicanalítica independentemente da pessoa considerada, das teorias, da situação geográfica, cultural, étnica, econômica...

 

Referências

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1 Aula inaugural do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, em 5 de agosto de 2017.

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