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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017

 

TEMAS LIVRES

 

A escuta da escrita da escuta: emoções através do relato clínico

 

Listening to the writing of the listening: emotions through a clinical case report

 

La escucha de la escritura de la escucha: emociones a través del relato clínico

 

L'écoute de l'écriture de l'écoute: les émotions au moyen d'un récit clinique

 

 

Osvaldo Luís Barison

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São José do Rio Preto. osvaldobarison@gmail.com

 

 


RESUMO

Utilizando-se de conceitos provenientes da Teoria da Literatura, o autor discute a possibilidade de comunicação escrita do campo emocional em que acontece a experiência analítica. Destaca a recriação de afetos parecidos com os da sessão, através de uma nova experiência emocional feita pelo leitor. Procura-se identificar a materialidade da psicanálise como ciência ímpar, não a igualando a Literatura ou experiência mística. Discutem-se os conceitos de verdade histórica e o de verdade analítica.

Palavras-chave: psicanálise, teoria da literatura, recepção, verdade analítica, relato clínico


ABSTRACT

The author discusses, by using concepts from the Theory of Literature, the possibility of the written communication of the emotional field in which the analytic experience takes place. Affections that are similar to the ones in the session, the author emphasizes, may be recreated through the reader's (new) emotional experience. The purpose of this paper is to identify the materiality of Psychoanalysis as a unique science. The author does not equate Psychoanalysis with either Literature or mystical experience. The author also examines the concepts of both historical truth and analytic truth.

Keywords: psychoanalysis, theory of literature, reception, analytic truth, clinical case report


RESUMEN

Usando los conceptos de la Teoría de la Literatura, el autor discute la posibilidad de la comunicación escrita del campo emocional en el que ocurre la experiencia analítica. Destaca la recreación de afectos parecidos a los de la sesión analítica, a través de una nueva experiencia emocional vivida por el lector. Intenta identificar la importancia del psicoanálisis como una ciencia única, que no puede ser equiparada con la literatura ni con la experiencia mística. Discute los conceptos de verdad histórica y verdad analítica.

Palabras clave: psicoanálisis, teoría de la literatura, recepción, verdad analítica, relato clínico


RÉSUMÉ

En s'appuyant sur des concepts de la théorie de la littérature, l'auteur discute la possibilité de la communication écrite du champ émotionnel où a lieu l'expérience analytique. Il souligne la recréation des sentiments semblables à la séance, par une nouvelle expérience émotionnelle faite par le lecteur. On cherche à identifier la matérialité de la psychanalyse en tant qu'une science unique, non équivalente à la littérature ou à l'expérience mystique. On discute les concepts de vérité historique et de de vérité analytique.

Mots-clés: psychanalyse, théorie de la littérature, réception, vérité analytique, récit clinique


 

 

estamos na posição de pessoas como Galileu que teve de inventar e fazer um telescópio antes de poder ver alguma coisa. Temos de criar uma linguagem com a qual possamos fazer nosso trabalho, seja ele falar com um paciente, seja ele comunicar um com o outro. (Bion, s/d)

 

1. Uma questão em aberto

No trabalho de um psicanalista, existe uma necessidade que limita e desafia a própria psicanálise. Como trabalhamos na maior parte do tempo interagindo em um campo afetivo, geralmente com emoções fortes e primitivas, fica sempre a questão da comunicação do material clínico e da capacidade ou não de se fazer um relato o mais fiel possível, reproduzindo para os colegas e leitores algo muito parecido com os afetos que ocorreram na experiência.

Como é a partir da experiência clínica que extraímos o material para produzir nossa teoria e podermos publicar o que acontece dentro da sala de análise, tanto para os colegas, como para as demais ciências, nos vemos diante da difícil tarefa de comunicar o inefável da experiência emocional através das palavras impressas em papel. No entanto, fazemos, e, às vezes, dá certo. Tanto é que podemos conversar sobre nossas vivências analíticas e sermos entendidos. Mas isso é mistério que precisa ser entendido.

Uma grande dificuldade que afeta toda a psicanálise diz respeito a dupla natureza que ela tem enquanto ciência e ao mesmo tempo prática de intervenção. No ato analítico, ela é ciência indutiva, portanto opera mediante a intuição racional. Na situação de escrita e diálogo com os demais colegas, ela é demonstrativa, o que a afasta do tipo de experiência em que originou o material.

No entanto, como afirma Caper "a emoção, matéria prima da vida mental, é justamente aquilo que uma abordagem científica da mente não pode excluir" (1990, p. 236).

Apesar de advogar uma forma de comunicação escrita mais próxima do contexto analítico, portanto da experiência emocional, este texto insere-se no contexto da teoria da psicanálise e não da psicanálise, ela mesma. Faço esta diferenciação para ressaltar a particularidade do ato de analisar, momento em que, através da relação pessoal mediada pelo método analítico, se dá a conhecer os aspectos inconscientes que permeiam a relação.Acredito que devemos perceber a diferença entre os relatos clínicos, mais próximos da experiência de analisar e os textos voltados para as construções teóricas, o que é objeto deste estudo.

 

2. Verdades

Qualquer psicanalista, escritor ou leitor, sabe que um relato de sessão, ou clínico, é algo próximo ao ocorrido, tem ciente que é construção a posteriori, portanto sujeita às distorções da memória e do campo afetivo na hora da produção do escrito. É assunto pacífico que não se tem a pretensão de ser relato histórico e concreto dos fatos. Já se sabe da inadequação para o trabalho analítico de se fazer anotações durante a sessão, ou até mesmo gravar eletronicamente as fala. Sendo assim, temos que nos ater a um método de registro que não exclui a subjetividade do autor, pelo contrário, levamos em consideração, como mais um dos aspectos da escuta e do escrito.

Temos também que a noção de verdade histórica é um conceito que não se aplica ao material que um paciente traz para a análise. Sabemos desde o início da psicanálise que o importante é a forma de representar e de narrar a experiência que é comunicada pelo analisando na sessão de análise.

Independente da qualidade dos afetos ou dos atos presentes no campo analítico, eles só se tornam acessíveis à pesquisa mediante a narração que se faz deles. Tanto faz o analista só pensa-los, ou comunica-los ao analisando através de uma interpretação que chamamos de "clássica", ou que seja uma narração construída pela dupla, só teremos acesso ao que está ocorrendo através do revestimento de palavras que é dado ao afeto.

Ao narrar, quer para si, quer para o outro, quer com o outro, o analista está fazendo uma tessitura de um texto narrativo que envolve a própria subjetividade, portanto é criação transformadora, não mais registro histórico. Ao narrar para seus pares através de texto escrito, novamente está presente a transformação que a subjetividade engendra. Sendo assim, a noção de verdade histórica torna-se relativa e não cabe no trabalho de um psicanalista, e nem em seus escritos. Bion descreve isso: "Em metodologia psicanalítica, não há critério para se determinado uso é certo ou errado, significativo ou demonstrável, mas se promove ou não desenvolvimento."(Bion, 1962, p. 14).

 

3. Literatura e campo emocional1

Dentre os fenômenos que acompanham a produção artística, a potencialidade que uma obra tem de transmitir emoções‚ é uma das facetas mais impressionantes. Sabemos que a arte, e em especial a literatura, é um território complexo de muitas vertentes e possibilidades. Dentre as vertentes possíveis, discutirei a maneira pela qual a palavra escrita, signo concreto da literatura, é capaz de realizar a façanha de emocionar o leitor, muitas vezes situado há séculos de distância da produção do texto.

Para lançar luz sobre a capacidade de comunicar emoções, usarei alguns conceitos da teoria da literatura. Não pretendo fazer analogias tais quais as feitas por Fábio Herrmann (2002), colocando a psicanálise como uma forma de literatura ficcional, ou Antonino Ferro (2000), também fazendo com a psicanálise um paralelo com a literatura. Acredito que a psicanálise tem seu estatuto próprio e precisa se definir dentro de seu particular campo científico. Assim, busco entendimento e auxílio em outra teoria, no caso a da literatura, criando ferramentas na intenção de elucidar aspectos da teoria analítica. Não tenho a pretensão de resolver esta complexa questão, mas aproximar conceitos que podem gerar uma gestalt mais propícia para a qualidade e eficácia da comunicação. Busco pistas sobre o que pode ocorrer de efetiva comunicação nos "relatos clínico e de sessões", tão caros aos psicanalistas.

Mesmo sabendo de algumas vantagens que o místico e o artista têm em adentrar os fenômenos protomentais, penso que não é por ainda não termos um bom instrumento de comunicação que precisamos equacionar a psicanálise ao campo do artístico, ou do místico. Existem mistérios, mas são misteriosos porque a nossa capacidade racional ainda não os alcança.

 

4. Artifícios de comunicação e paralelos com o texto da clínica psicanalítica

A obra de arte traz em si duas características básicas na transmissão de afeto: o prazer estético e a emoção propriamente dita.

O prazer estético

A que se refere ao prazer estético é o reconhecimento da profundidade da construção do artista. Explode no interior do leitor a sensação de que o escrito é belo, bem produzido. O receptor constata, através do intelecto, que a obra é sincera, profunda e verossímil. Esta sensação é a mesma que o acompanha no contato com várias obras, em que se identifica a expressão da condição do ser humano. É um sentimento que varia de grau, de intensidade, mas sua qualidade é a mesma, ou seja, o contato com a semelhança, com o verdadeiro e com o belo: o prazer estético.

De forma análoga ao que acontece com a literatura como um todo, ao entrar em contato com um relato de sessão, ou um relato clínico, um leitor, psicanalista ou não, reconhece no texto uma aproximação com a verdade das experiências humanas. Mesmo que não tenha vivido nada parecido com aquilo, há uma concordância de que o relato diz respeito a algo que é possível para seres humanos. Mesmo não sendo construção com requintes literários, o primeiro passo para se criar empatia com o material impresso está na condição de se reconhecer o humano que o relato enseja. É a realização da verossimilhança em que o autor, mesmo não tendo como dar provas materiais do ocorrido no trabalho clínico, e nem mesmo tendo a necessidade de fazê-lo, coloca o leitor em concordância de que o relato é algo do universo do possível e factual. De alguma forma, isso guarda relação com o prazer estético, ou seja, o contato com a verossimilhança.

A emoção propriamente dita

O outro tipo de vivência emocional provocada pela obra diz respeito aos sentimentos que ela aciona. Estes sentimentos são de qualidades diferentes e de intensidade variada. Sente-se de maneira particular o amor, o ódio, a raiva, a ternura, o medo etc., porém com certa sintonia e consonância com o que o autor visa despertar em seu leitor.

O recurso que o artista tem para transmitir a emoção se dá pelo conteúdo e/ou pela forma. Entendo por conteúdo a fábula que permeia a trama, e a forma como sendo a maneira usada para contar a fábula, ou seja, a trama em si. Uma obra alcança seu grau de maior profundidade quando o autor consegue desenvolver bem estes dois instrumentos de comunicação. Existem artistas que privilegiam um aspecto ou outro, mas sua capacidade de comunicação se dá mediante seu poder de penetrar em seu receptor, encontrando uma atmosfera de empatia e cumplicidade.

A transposição da realidade tangível para a realidade poemática sofre a influência da atitude criadora, sendo sempre um procedimento artístico. O autor estiliza, recria, tem a sua própria visão da realidade, não sendo um espelho passivo que apenas a reflete. Portanto, a verdade expressa em um escrito literário não é a simples transposição do estado de realidade para o papel. O professor Antônio Cândido já alertara para esse fato escrevendo que:

A arte, e, portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação com a realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável em sua configuração, e implicando uma atitude de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de conceber e executar, quanto do receptor, no momento de sentir e apreciar. (Cândido, 1985)

Em um relato de sessão, ou clínico, não se espera que o escritor tenha habilidades literárias e ficcionais. Pelo contrário, o que se espera é ter material para estudar, refletir e produzir sobre o que deveras acontece no encontro analítico. Mas se a origem do material surgiu em um contato do tipo psicanalítico, supõe-se que está referindo-se a um campo emocional. Neste sentido, o objeto que se quer expressar mediante o escrito são as emoções vividas pela dupla e as transformações simbólicas e racionais que ocorreram na busca de se tornar as emoções passíveis de serem pensadas e publicadas.

É assim que um relato clínico deve expressar de forma discursiva o campo emocional da experiência, descrevendo a movimentação afetiva e como a dupla simbolizou os acontecimentos. Há uma história, uma fábula ocorrida que a trama da dissertação procura descrever.

O registro escrito pode ser entendido como recriação transformadora da mente do analista no ato da produção do texto. Sabe-se que o relato é o que o analista privilegiou e foi capaz de se lembrar, portanto sujeito a todos os tipos de defesas e distorções característicos do funcionamento mental do analista. Por mais que tenha trabalhado sua pessoa em análise, ele não está livre das distorções e recriações dentro dos limites da própria mente.

O leitor tem que ter em mente que se trata de um relato clínico e não de construção ficcional. No entanto, também sabe da precariedade do relato enquanto transposição dos fatos ocorridos para a materialidade do texto. A postura psíquica desejada ao leitor é o vértice científico e não o do entretenimento. É como se houvesse um contrato de aceitação do relato como uma materialidade a ser limitada em si. Não se deveria questionar se realmente foi da maneira relatada que os fatos se deram, e sim acreditar no texto e buscar entendê-lo por si.

Nas narrativas ficcionais há um jogo de cumplicidade, um acordo tácito entre o autor e o receptor. Um jogo de "faz-de-conta" assumido por ambos, no qual se aceitam para conviverem naquela "situação fictícia". A partir daí, a produção literária passa a ter uma conotação de fato, sendo que o escrito impregna e interage no sistema de percepção da vida. Mesmo tendo sido produzida no âmbito da faculdade imaginativa, confunde-se com a realidade e assume o status de coisa real.

Porém, cada escrito pressupõe não só o autor como também um lei- tor implícito a quem o escritor imagina que irá dialogar. Mais do que um leitor implícito, em verdade um escrito só se realiza quando encontra um leitor de carne e osso que flui em si a produção do autor.

Assim, quando o leitor se depara com palavras impressas de um texto, transforma o estímulo visual percebido pelo olho em estímulo auditivo, captado por um "ouvido interno". Conforme o leitor começa a se interessar pelo que lê, o que era uma comunicação fria, desafetada, passa a operar dentro da mente dele como uma corrente de ideias que já lhe pertence. Não é mais o autor que escreve, é o leitor que, ouvindo, fala a si mesmo, inclusive com a sua própria voz. O texto já lhe pertence e passa a entrar em seu ritmo associativo. Assim, o leitor transforma-se em co-autor. Algo também percebido por Ogden na abertura de seu livro Os sujeitos da psicanálise em que afirma:

O leitor deste livro precisa criar uma voz com a qual falar (pensar) as palavras (pensamentos) nele contidas. Ler não é uma simples questão de examinar, ponderar ou até pôr à prova as ideias e experiências apresentadas pelo escritor. Ler implica uma forma de encontro muito mais íntima. Você, o leitor, precisa permitir que eu o ocupe - seus pensamentos, sua mente, já que não tenho outra voz para falar a não ser a sua. (1996, p. 1)

Quando o leitor está atento à leitura, energiza esse nível de associação, ficando em primeiro plano. Porém, paralelo a essas associações (a fala interna feita a partir do escrito do autor), as associações vão se ligando a outras possibilidades pré-conscientes, despertando núcleos de ideias e afetos. Começa a se constituir outro nível associativo, inconsciente e com pouca energia. Como este segundo nível também se liga com às lembranças e fantasias, começa a despertar o afeto que estava associado a estas ideias. Chega um momento em que a energia deste "pensamento paralelo" fica tão forte que assume o primeiro plano, impondo-se à consciência, necessitando que se dirija a atenção para essa associação paralela, que, naquele momento, passa a ser a mais importante e catexada. É esperado que ao lermos uma obra ficcional iniciemos a associar com as nossas próprias experiências e com compreensões que temos do mundo, dialogando ativamente com o texto.

O nível associativo que até então era secundário, funciona na mesma frequência mental em que acontecem os sonhos e as fantasias mais primitivas. Nesse território a lógica não existe, a magia é possível, o universo é fantástico, lúdico, como o funcionamento mental de uma criança, porém verossímil como uma obra de arte.

O contato afetivo entre o leitor e a obra se dá neste território, onde a mente passa a operar na frequência lúdica e onírica do aparelho anímico. A obra impressa e a história de vida, resgatada dentro da mente do leitor, confundem-se e passam a ser uma única coisa. A obra passa a fazer parte daquilo que é o eu do leitor. Não é mais o eu de antes, é um eu mais a obra, ou o que dela penetrou na mente do receptor.

Na situação da prática psicanalítica ocorre um interjogo no qual tanto o paciente, quanto o analista, começam a funcionar um na mente do outro, criando uma alimentação constante de conteúdos. O que se espera de um relato clínico é que ele tenha a potencialidade de alimentar o leitor, despertando os núcleos míticos presentes em todos os humanos. É nesta frequência que o relato passa a fazer parte do fluxo associativo do leitor, pertencendo a quem lê como conteúdos de sua própria mente, inclusive com o som da própria voz.

Com a leitura dirigindo as associações, inicia-se um diálogo interno com os conteúdos particulares do leitor. Acionam-se assim as lembranças, outras leituras, coisas já pensadas ou vividas, experiências com os pacientes e da própria análise. É neste momento que o texto salta do papel e ganha vida por entre a vida do leitor. Dito de outra forma, o texto funciona tais quais os restos diurnos que dão elementos simbólicos para o ato de sonhar. O que ocorre é a comunhão dos núcleos míticos entre os escritos e o leitor, despertando uma frequência mental muito parecida entre si. É neste estado de mente que se dá o contato afetivo entre o escrito e o leitor.

O linguista R. Jakobson (s/d) formula que a natureza artística da linguagem está configurada no que chama de "função poética da linguagem". Baseado nessa formulação, afirmamos que é como se todos os sujeitos tivessem em seu ego uma "instância poética" capaz de captar a "função poética da linguagem". Ou seja, entre as funções da mente existe uma que se responsabiliza por significar os objetos estéticos. No entanto, ocorre um par complementar entre os dois polos da comunicação. Em um dos polos, está o sujeito que se relaciona com sua "instância poética" de uma maneira ativa, produzindo arte: este é o artista, o produtor. Mas também há um outro lado da cadeia em que, em termos de produção, se colocam os sujeitos passivos: estes são os receptores que acolhem a produção artística de um outro, usufruindo-a em suas vidas.

Tal qual a formulação da "função poética da linguagem", sabemos também da existência de uma "função analítica da personalidade". Esta ideia explicita a condição que todo humano tem em ser capaz de subdividir uma questão ampla em partes mais fáceis de serem entendidas. Desta forma, torna-se possível a junção dos pequenos entendimentos na construção do todo que abrange o problema inicial. É também mediante a função analítica da personalidade que se experimenta a percepção do método analítico. Ou seja, mediante a leitura do relato clínico, observa-se a manifestação do inconsciente que até então estava latente para os dois participantes da cena inicial que o relato tenta descrever e os recursos simbólicos que a dupla utilizou para torná-los pensáveis.

Devemos conceber ainda, que as obras literárias apresentam dois níveis de discurso. Existe um nível explícito, presente concretamente no enunciado. É o nível das aparências, do sensível, do empírico. Este é tangível, facilmente assimilável pelo leitor, propiciando o prazer estético. Mas ocorre um outro nível que funciona por entre uma frequência mais radical da comunicação. É o nível das representações primeiras, da constituição dos elementos que modelam a enunciação e expressam uma dada visão de mundo. Este nível não aparece de forma explícita. Está, por assim dizer, latente. Está situado nas entrelinhas, nos vazios, pausas, silêncios, no ritmo e na musicalidade; nas posições de focalização, nos procedimentos para se construir e comunicar a mensagem. A junção entre o conteúdo explícito, e a mensagem implícita, cria uma espécie de comunhão entre emissor e receptor, fisgando o leitor em um nível não consciente, criando uma relação de cumplicidade, proporcionando a experiência emocional. A obra impressa funcionando na mente do leitor faz com que ele tenha que se haver com as suas próprias emoções, despertadas pelas associações.

Para um leitor experimentado, ao ler um relato clínico, é possível ver de forma subliminar aos acontecimentos da sessão o conjunto teórico que embasa o analista. Assim, as posições de focalização dos conteúdos, o ritmo de participação e interpretação, as pausas, silêncios, as maneiras de se construir as falas, revelam não só os autores e escolas privilegiadas pelo analista, como também a própria visão de mundo que o analista tem.

Penso ser na condição de atividade do leitor que reside o diferencial de diversos relatos de experiências, ou obras ficcionais, e o relato clínico desenvolvido por um psicanalista. A leitura de um relato clínico necessita do leitor uma postura ativa, de participação intelectual e afetiva. Assim como só podemos nos reconhecer através do outro, o estudo da psicanálise necessita a inclusão do leitor como um dos polos da experiência, pois a base de todo universo psicanalítico é sempre relacional. Em sendo assim, o que se advoga é que a divulgação científica da psicanálise vise a reproduzir em seus receptores algo de similar com o campo afetivo em que ela é experimentada. Deve ser relato que se insira no campo das possibilidades em ampliar a capacidade sonhante do leitor. Assim estaremos mais próximos das realizações inconscientes e, portanto, mais próximo do método analítico.

 

5. Adendo: em linguagem bioniana

Analisando↔analista = O →Tα →Tβ ↔ Aα → Tβ ≡ O

Legenda:

Analisando↔analista = O →Tα →Tβ ↔ Aα → Tβ ≡ O

↔ = relacionamento analítico

O = experiência emocional

→Tα = transformações na mente do analista

→Tβ = transformações em escrito

↔ Aα = interação do leitor com o escrito

Tβ = transformações na mente do leitor

≡ = algo muito parecido

O = experiência emocional

 

Referências

Barison, O. L. (1995). Vertentes (Psicanálise e literatura). Psicanálise Escrita, 1(1),21-24. São José do Rio Preto.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência (P. D. Corrêa, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (1978). Supervisão D 11. Transcrição de gravação de supervisão realizada em São Paulo na SBPSP, acervo de José Américo Junqueira de Mattos.         [ Links ]

Cândido, A. (1985). Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária (7a. ed.). São Paulo: Nacional.         [ Links ]

Caper, R. (1990). Fatos imateriais: a descoberta de Freud da realidade psíquica e o desenvolvimento kleiniano do trabalho de Freud (M. F. C. Marques, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Ferro, A. (2000). A psicanálise como literatura e terapia (M. Petricciani, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Jakobson, R. (s/d). Linguística e poética. In R. Jakobson, Linguística e Comunicação (I. Blikstein e J. P. Paes, Trads.). São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Ogden, T. H. (1996). Os sujeitos da psicanálise. (Claudia Berliner, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/5/2017
Aceito em: 29/7/2017

 

 

1 Algumas das ideias e construções que se seguem foram publicadas por mim em 1995.

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