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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017

 

TEMAS LIVRES

 

Comentário do trabalho: "a propósito da mudança catastrófica de Bion e do conflito estético de Meltzer", de Marisa Pelella Mélega

 

 

Darcy Antonio Portolese

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. portoles@terra.com.br

 

 

Inicialmente quero agradecer a Marisa por este convite, que me foi muito estimulante no sentido de me dar oportunidade de refletir sobre um tema que diz respeito a dois conceitos tão importantes em psicanálise, criando ferramentas desenvolvidas por estes dois psicanalistas que nos ajudam no sentido de estabelecer um contato mais íntimo com a mente primitiva, e permitindo maior ampliação da lente psicanalítica. Desde Aprendendo com a experiência, Bion explicita a limitação da consciência como o órgão para apreensão das qualidades psíquicas, sendo necessária a criação de instrumentos mais sofisticados para a captação dos fenômenos psíquicos em camadas mais profundas da mente. Podemos situar esses conceitos de claustrum e mudança catastrófica nessa categoria do desenvolvimento científico e técnico.

Primeiramente gostaria de assinalar o grau de parentesco entre os dois conceitos, pois têm uma maternidade comum no conceito kleiniano de identificação projetiva. Creio que Marisa ao longo de sua experiência clínica escolheu esse tema porque ambos os conceitos emergiram do contato, elaboração e construção de um alfabeto emocional, ampliando e expandindo as possibilidades de desenvolvimento emocional.

O sentimento de catástrofe que tem sua origem nos primórdios da vida psíquica e o movimento de fragmentar e reunir objetos formarão a base conceitual, respectivamente, da posição esquizoparanoide e da depressiva (PS↔PD), o que para Bion representa o eixo de uma teoria da mente. Antes que se estabeleça a função continente-contido (♂♀), é necessário que se encontre a função continente (♀), e o seu descobrimento depende do funcionamento da relação entre PS↔PD. Segundo Michel Eigen, se a emergência da função continente (♀) depende da relação PS↔PD, estas por sua vez dependem de atos mentais ainda mais precoces. Bion refere que o desenvolvimento mais precoce dos pensamentos dependia da produção de "signos", precursores dos símbolos. Isto quer dizer que o indivíduo teve de reunir elementos para formar signos antes que pudesse pensar. A linguagem mais elementar é uma modalidade de linguagem "sígnico-emocional". Os estados emocionais a que faz referência são catastróficos.

Michel Eigen descreve uma citação de Bion:

Bion denominou elementos β aos elementos ou matérias-primas da vida psíquica. Descreve o ponto de partida como "um estado misto em que o paciente se vê perseguido por sentimentos de depressão e se deprime por sentimentos de perseguição. Resulta impossível distinguir estes sentimentos dos sentimentos corporais, e do que mais tarde, à luz da capacidade de discriminar, pode-se descrever como objetos em si. Em suma, os elementos β são objetos compostos de objetos em si, de sentimentos de perseguição e de depressão, de culpa e, portanto, aspectos da personalidade vinculados por uma sensação de catástrofe". (Eigen, 1985, p. 269)

Há uma passagem nesse trabalho de Eigen que ajuda a pensar alguns elementos da experiência de Marisa com essa paciente que me parece ir além do alcance conceitual, e nos remete a pensar sobre o alcance da relação analítica como transcendência ao conhecido. Bion se propõe a encontrar o vínculo que une a catástrofe à fé. A biografia do vínculo narra a história do nosso surgimento ou, também, da nossa queda. A fé é um componente essencial que nos permite adentrar no terreno desconhecido, e penso que poderemos pensar algo neste sentido na experiência clínica que Marisa nos proporcionou.

Em relação ao conflito estético de Meltzer, este é fundado nos rumos que pode tomar a identificação projetiva. Tomando como referência a descrição de Marisa: "A experiência complexa da beleza do mundo, junto ao desejo de conhecê-la, põe em movimento a atividade de formação simbólica, uma função do 'nível estético' da mente". Existe um caminho para a realização estética "fundada na reciprocidade entre a mente-bebê e seus objetos internos, com base na efetiva resposta do bebê à mãe-enquanto-mundo". A urgência em conhecer e a possibilidade de pôr em movimento a formação simbólica vão depender da estabilidade da posição depressiva com capacidade de suportar a inveja e a destrutividade.

Marisa estabelece um elo entre conflito estético e mudança com emoções contrárias de amor e ódio, que devem ser superadas a fim de conquistar o caminho para o conhecimento, através da elaboração da experiência emocional e de simbolizá-la, o que representa as bases para desenvolver os pensamentos. A descrição que achei interessante é que o companheiro metafísico do conflito estético é o claustrum. Neste, a identificação projetiva sofre uma mudança de rumo e é chamada de "identificação projetiva intrusiva", que é o caminho para a entrada no claustrum, no objeto interno.

No capítulo "A vida no Claustrum", Meltzer (1992/1993) descreve rumos distintos para a identificação projetiva: Um aponta para a identificação projetiva ligada ao instinto epistemofílico e o outro rumo define-se quando a "sede de conhecimento" está dominada por motivações ligadas à inveja e ao ciúme, e então o paciente se impacienta em aprender com a experiência ou com exemplos e demonstrações. Busca a satisfação imediata da onisciência e consegue isto mediante a intromissão no aparelho sensorial e no equipamento mental do seu objeto interno.

Através do contato a analista se dá conta de que a paciente não percebe a fonte nutriente e a transforma num objeto, uma entidade médica, impedindo o contato emocional. Esta qualidade de vínculo se aproxima de um modus operandi da mente de natureza parasitária e alucinatória. A aproximação com o objeto-analista ou seio nutriente é vivenciada como persecutória e intrusiva. Estes fenômenos foram descritos por Meltzer, e comunicados em sua supervisão como um processo de identificação projetiva intrusiva, característica da configuração emocional, que denomina claustrum. É interessante observar que Marisa chama a atenção para o fato de que essa relação se torna uma análise quando é possível encontrar a criança perdida no paciente, e isto vai permitir uma relação de intimidade.

Nesse sentido é importante observar que a oscilação PS↔PD, base de formação e surgimento da função continente (♀)/contido (♂), depende do reconhecimento do continente (♀) para que haja evolução na construção da função ♂♀. É mencionado no trabalho que a beleza cotidiana da vida do bebê, segundo Meltzer, vai sendo conseguida ao buscarem-se conhecimento e compreensão. Esta necessidade só será suprida se houver a possibilidade da percepção do objeto. Esta capacidade vai sendo construída à medida que a relação ou vínculo passe do plano parasitário à qualidade simbiótica em que os dois constituintes do par possam alimentar-se mutuamente. Este sistema alucinatório vai sendo desconstruído, por exemplo, quando a relação humana do par é transformada em relação médico-paciente, o que equivale a transformar o leite amoroso num comprimido ou pílula.

A analista refere-se ao pedido da sessão extra por parte de Marie por esta estar em pânico, com medo de morrer, e tendo vomitado. Na sessão seguinte ataca a analista porque esta não lhe havia dado o número do seu telefone. Podemos inferir que essas experiências emocionais revelam a percepção da pessoa do analista e a dependência que está se desenvolvendo, assim como um vínculo emocional pessoal e não medicamentoso, o que me parece significar a transformação do mundo das coisas para a construção de uma intimidade humana. Penso que a aridez de uma mente desértica, em que se produzem e habitam o pânico, o vazio e a depressão, vai sendo alimentada pelo desenvolvimento do vínculo emocional.

Na última sessão descrita, a paciente dá um pulo "para não tocar a linha que une os dois pavimentos". Fala do enorme medo que sente e não sabe por quê. Chora dizendo que não sabe se tem medo de morrer ou de viver. Esta indagação ou percepção dá indícios de que sentimentos contraditórios emergem no pensamento de Marie no sentido da possibilidade de integrar os dois pavimentos. Bion (1965/1984), no capítulo 6 de Transformações, explicita: "O Narcisismo insatisfeito impede que o amor se estenda aos objetos". E o significado disso me parece ser o de especificar o alimento emocional e o seu meio de veiculação através do vínculo, que está em reconstrução nessa análise.

No conjunto do trabalho e ao refletir sobre o claustrum, ocorreu-me uma analogia com o "Mito da caverna" de Platão. Dentro da Caverna escura habitava uma tribo, e nela um habitante com capacidade para pensar. Ao ver as silhuetas das pessoas refletidas nas paredes da Caverna, ele pensava que, se havia silhuetas refletidas, deveria provir luz de algum lugar. Ele passa a procurar essa fonte e, depois de longa caminhada, sai da Caverna. Esta analogia me parece representar o trabalho que Marisa desenvolve com Marie, que vai se movimentando, de um espaço mental material e concreto, para um mundo dotado de vida emocional e de sentido.

 

Referências

Barros, I. G. Claustrum e transtornos autísticos. Comunicação pessoal.         [ Links ]

Bion, W. R. (1966). Cap. XXVII. Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Bion, W. R. (1984). Transformações: mudança do aprendizado ao crescimento (Cap. VI, pp. 92-113). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965.         [ Links ]

Eigen, M. (1985). En torno al punto de partida de Bion. De la catástrofe a la fe. Libro Anual de Psicoanálisis, I,263-274.         [ Links ]

Prada e Silva, M. (2006). Contribuição clínica à questão da fé. Trabalho apresentado na SBPSP.         [ Links ]

Sapienza, A. (2006). Psicanálise e estética: ressignificação de conflitos psicóticos e reciprocidade criativa. Ide, 42,23-28.         [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1974). Fear of breakdown. Int. Rev. Psycho-Anal., 1,103.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/8/2017
Aceito em: 7/9/2017

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