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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dez. 2017

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Mal-estar em Veneza

 

Malaise in Venice

 

Malestar en Venecia

 

Malaise à Venise

 

 

José Luiz Cordeiro Dias Tavares

Psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos, CEP, São Paulo, SP. Médico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, pós-doutorado na Universidade de Londres, UK. Formação em História da Filosofia, Faculdade do Mosteiro de São Bento, São Paulo, SP. jltavares2016@gmail.com

 

 


RESUMO

Este ensaio propõe um olhar sobre A morte em Veneza, de Thomas Mann, no que se refere ao instigante diálogo que provoca com textos de Freud e Platão. Em um percurso pulsional, o poeta-protagonista do romance parte em busca de seu desejo, que lhe soava inquietante, estranho e sem relação com seu modus operandi habitual. As cenas adquirem relevo trágico em um ambiente veneziano assolado pela cólera, aludindo ao caos pulsional do poeta. A impossibilidade de alcançar a felicidade amorosa provoca-lhe um sofrimento ampliado ao denunciar sua incompletude também sob o olhar platônico do amor abençoado por Eros. Em seu caminho, o poeta revela seus conflitos entre a sexualidade e o Eu, o que, como propôs Freud, constitui a raiz das psiconeuroses. Sua trajetória confirma a lição freudiana de considerar que, embora a satisfação irrestrita de todas as necessidades possa ser a maneira mais tentadora de conduzir a vida, tal processo requer que o gozo se situe à frente da cautela, trazendo o castigo pela ousadia de se tentar saborear os prazeres irrestritos das pulsões.

Palavras-chave: pulsão, sexualidade, desejo, conflito, psiconeurose


ABSTRACT

This paper proposes an examination of Thomas Mann's Death in Venice, especially of the part which brings an opportunity of a thought-provocative dialogue with Freud's and Plato's writings. In an instinctual path, the protagonist-poet departs in search of his desire, which seemed to him unsettling, strange, and unrelated to his usual modus operandi. A tragic emphasis to the scenes is given by a Venetian environment, ravaged by cholera, and which may be related to the poet's instinctual chaos. The impossibility of achieving happiness in love causes him suffering which is amplified when it exposes his incompleteness from the Platonic perspective of love - a love that Eros blessed. In his journey, the poet reveals his conflicts between sexuality and Self, which, as Freud proposed, lies at the root of psychoneuroses. His course confirms the Freudian idea that, although the unrestricted satisfaction of all needs may be the most tempting way to lead one's life, this process requires joy to be put ahead of caution. It results in punishment for daring try to savor the pleasures of instinct.

Keywords: instinct, sexuality, desire, conflict, psychoneurosis


RESUMEN

Este ensayo propone una visión de la obra Muerte en Venecia, de Thomas Mann, considerando el estimulante diálogo que provoca con textos de Freud y Platón. En un trayecto pulsional, el poeta-protagonista de la novela parte en busca de su deseo que considera inquietante, extraño y sin relación con su modus operandi habitual. Las escenas adquieren un relieve trágico en un ambiente veneciano asolado por el cólera, que representa el caos pulsional del poeta. La imposibilidad de alcanzar la felicidad amorosa le provoca un sufrimiento ampliado, denunciando su incompletud, también bajo la visión platónica del amor bendecido por Eros. En su camino, el poeta nos revela sus conflictos entre la sexualidad y el Yo, tales conflictos, según Freud, constituyen la raíz de las psiconeurosis. Su trayectoria confirma la lección freudiana que considera que aunque la satisfacción irrestricta de todas las necesidades puede ser la manera más tentadora de conducir la vida, requiere que el gozo se coloque adelante de la cautela, trayendo consigo el castigo por la osadía de intentar saborear los placeres irrestrictos de las pulsiones.

Palabras clave: pulsión, sexualidad, deseo, conflicto, psiconeurosis


RÉSUMÉ

Cet article propose un regard sur l'ouvrage Mort à Venise de Thomas Mann, en ce qui concerne le dialogue excitant qu'il provoque avec les textes de Freud et de Platon. Dans un parcours pulsionnel, le poète-protagoniste du roman part à la recherche de la réalisation de son désir, même si celui-ci lui semblait inquiétant, étrange et sans rapport évident avec son modus operandi habituel. Les scènes deviennent encore plus tragiques dans une Venice ravagée par une épidémie de choléra qui évoque le au chaos pulsionnel vécu par le poète. L'impossibilité d'atteindre le bonheur amoureux amplifie sa souffrance en dénonçant son incomplétude; en prenant en compte encore le regard de Platon à propos de l'amour béni par Eros. Dans son parcours, le poète nous révèle les conflits entre la sexualité et le soi, ce qui, selon Freud, est à l'origine des psychonévroses. Sa trajectoire confirme la leçon freudienne que considère que, même si la satisfaction sans restriction de tous les besoins puisse être la façon la plus tentatrice de mener la vie, une telle expérience requiert tout de même que la jouissance se place avant la prudence, en apportant le châtiment du fait de l'audace essayer de goûter sans restriction les plaisirs des pulsions.

Mots-clés: pulsion, sexualité, désire, conflit, psychonévrose


 

 

A pulsão jamais atua como uma força momentânea de impacto, mas, sempre, como uma força constante. Como ela não ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma fuga é eficaz contra ela.

(Freud, 1915) A satisfação irrestrita de todas as necessidades se apresenta como a maneira mais tentadora de conduzir a vida, mas significa pôr o gozo à frente da cautela, trazendo logo seu próprio castigo. (Freud, 1930)

 

Um caminho sem volta

Gustav Aschenbach é um poeta que, em um momento de crise causada pela estafa, resolve deixar sua residência em Munique em busca de recuperação. Em Veneza, hospeda-se no Hotel des Bains, situado no Lido, onde encontra Tadzio, jovem polonês de perfeita beleza cuja presença vai provocar no poeta vários tipos de afeto, levando a um desfecho talvez não imaginado por ele no início de sua jornada. Este é o núcleo mínimo do romance A morte em Veneza, escrito por Thomas Mann e publicado pela primeira vez em 1912. A expansão desse eixo central com os questionamentos vividos por Aschenbach vai encontrar eco em questões apresentadas por Freud em seus textos "As pulsões e seus destinos", "O mal-estar na civilização", "O inquietante" e "Além do princípio do prazer", publicados entre 1915 e 1930 e que servirão como referência para um olhar particular sobre esse romance de Thomas Mann. Curiosamente, essas publicações foram lançadas na mesma época em pontos da Europa distintos, porém, próximos não apenas pela geografia mas também, muito provavelmente, por compartilharem certa similaridade em alguns traços culturais e dilemas sociais próprios do início do século passado.

 

Perfil e crise

Sabemos que os ambientes familiar, social e cultural, com suas respectivas referências para identificações e constituições subjetivas são determinantes na organização humana, muito mais ampla e complexa do que a constituição individual de ordem puramente biológica. Os trechos abaixo extraídos do romance de Thomas Mann claramente descrevem o perfil de Aschenbach e traduzem a reverência prestada por ele ao seu núcleo familiar de origem, da forma pela qual era estruturado, com os valores lá praticados e plenamente incorporados pelo protagonista dessa história:

filho de alto funcionário da justiça ... seus antepassados eram oficiais, juízes ... sua natureza era orientada para a fama ... graças à determinação, maduro e hábil ... ainda ginasial já tinha um nome ... aprendeu a administrar sua fama ... seu talento conquistava a crença do grande público e o interesse dos mais exigentes ... desde moço obrigado à realização ... nunca conhecera a ociosidade, nunca a despreocupada negligência da juventude ... sua palavra favorita era perseverança ... necessitava de disciplina, e, por sorte, esta era sua herança por parte de pai ... começava cedo o seu dia ... água fria sobre o peito e as costas ... o matrimônio que contraíra ainda jovem com uma moça de família erudita foi desfeito pela morte, depois de um curto espaço de felicidade ... ficou-lhe uma filha ... um filho, nunca possuíra. (Mann, 1971, pp. 95-102)

Observo nesse trecho a ênfase dada a atributos como disciplina, determinação e perseverança, entre outros componentes que, ainda que pudessem trazer algum grau de sacrifício pessoal, eram, talvez por isto mesmo, exaltados como elementos que valorizavam as realizações profissionais e o consequente reconhecimento público de seu trabalho. Desta forma, a presença da ociosidade e de eventuais negligências, que são tão características da juventude, como detalhado pelo autor do romance, eram intoleráveis para Aschenbach, que estava acostumado a exigências que considerava como necessárias para atingir o sucesso e a fama. Sua identificação com esse modo de funcionamento de seu núcleo familiar de origem certamente o levou a reproduzi-lo em sua própria vida, incluindo o casamento e a família que ele mesmo constituiu. Com o decorrer do tempo, porém, Aschenbach começa a sentir, em seu "monástico silêncio de existência exterior, um cansaço e uma curiosidade dos nervos que uma vida cheia de dissolutas paixões e prazeres quase não consegue produzir" (Mann, 1971, pp. 102-103). Essas observações levam-no a partir em busca de algo desconhecido, que ele descreve como estranho a si mesmo e aparentemente sem relação com seu próprio percurso até aquele momento. Após tentar alguns destinos, ele finalmente se dirige a Veneza e, de lá, segue para o Lido, onde se hospeda no Hotel des Bains.

Com a introdução do conceito de inconsciente, Freud anunciou que o homem não é senhor de si mesmo, pois é refém de uma bússola absolutamente singular, imantada pelas próprias pulsões, das quais o aparato consciente de sua psique não tem conhecimento e tampouco controle. Quando Thomas Mann se refere à busca empreendida por Aschenbach, ele remete o leitor à imagem de um movimento pulsional, verdadeiramente imperioso para o protagonista do romance, que passa a ser guiado por seu próprio inconsciente, onde residiam as pulsões que denunciavam seu estado de insatisfação, cansaço e curiosidade, e que viriam a movê-lo em direção a algo desconhecido e estranho em relação ao seu modus operandi habitual até aquele momento.

Em "O mal-estar na civilização", Freud (1930/2016) reflete sobre a conduta dos homens acerca da finalidade e intenção da vida, sobre o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar, e ele mesmo responde dizendo que a busca é orientada para se obter a felicidade e, mais especificamente, a permanência deste estado. E segue dizendo que esta busca tem dupla possibilidade de atingimento: a ausência de dor e desprazer ou, então, a vivência de fortes prazeres, e esta última modalidade é a que caracteriza o sentido estrito da palavra "felicidade". Ressalta ele, porém, que essa verdadeira felicidade só é possível como um fenômeno episódico, já que é decorrente da súbita satisfação de determinadas necessidades que, até então, estavam represadas.

Entre os métodos para evitar a dor e o desprazer, Freud se refere aos deslocamentos da libido. Trata-se aqui de "deslocar as metas pulsionais de tal forma que elas não possam ser atingidas pela frustração oriunda do mundo externo" (Freud, 1930/2016, p. 35). Nesse processo, considera-se que a sublimação das pulsões é de grande valor e utilidade, principalmente quando se consegue aumentar o ganho de prazer de modo suficiente, tendo como base as fontes de trabalho de natureza psíquica e intelectual. Como exemplos de sublimação, Freud (1930/2016) cita a alegria do artista em seu processo criativo, à medida que dá vida às suas fantasias, da mesma forma que observa a alegria do pesquisador quando investe seu conhecimento e criatividade para buscar a solução de problemas. E ele segue comentando que nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão fortemente à realidade como a ênfase no trabalho e que este recurso, no mínimo, a insere de modo seguro numa porção da realidade, na assim chamada comunidade humana. Conclui, então, que essa técnica possibilita deslocar para o trabalho - e para os relacionamentos humanos a ele ligados - uma forte medida de componentes libidinais narcísicos, agressivos e eróticos, emprestando-lhe um valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a afirmação e justificativa da existência na sociedade (Freud, 1930/2016).

Ao voltarmos ao trecho inicial do livro de Thomas Mann, objeto de interesse deste texto, deparamos com várias características do comportamento de Aschenbach que apontam para uma conduta fortemente calcada na sublimação como forma de evitar o desprazer na busca da felicidade. O valor atribuído pelo protagonista ao trabalho, à necessidade de ser reconhecido e alcançar a fama revela o esqueleto que desde sempre sustentou Aschenbach, até o momento que ele começou a identificar certo cansaço e curiosidade que o levaram a partir em busca de algo até então desconhecido. Este momento de sua trajetória indica a necessidade que Aschenbach sente de deixar seu local de costume, não apenas o local geográfico de sua residência, mas também, e talvez principalmente, deixar o local habitualmente ocupado por um papel social com o qual até então se identificava e se apresentava publicamente. Nesse momento revela-se sua impossibilidade de seguir a vida de forma rígida, perseverante e disciplinada como fazia havia tantos anos. Manifesta-se então uma verdadeira pressão que o faz inclinar-se para um objeto ainda a ser encontrado, com o intuito de alcançar como meta deste movimento a satisfação de suas pulsões, de acordo com o que nos diz Freud acerca das vicissitudes das pulsões (1915/2014c).

 

Um estranho estrangeiro

Vale aqui destacar o impacto da palavra "estranho", supondo que, assim traduzida no texto em português, represente fielmente o que estivesse instigando a alma de Thomas Mann quando a ela recorreu nesse romance. Poderíamos especular que o termo aqui utilizado pelo autor refere-se ao estranho que é estrangeiro, no sentido do que está além do limite da consciência e muito além do que é habitualmente autorizado pelo passaporte construído e empregado nas viagens da vida cotidiana e, portanto, algo talvez irresistível e sedutor a ser experimentado exatamente pela variedade de possibilidades que um cenário até então estrangeiro poderia vir a oferecer. O protagonista do romance em questão mostra-se cansado, com uma curiosidade que o inquieta, o desacomoda e ao mesmo tempo o deixa angustiado, fazendo-o sair em busca de algo que nem ele mesmo sabia do que se tratava, mas que, de alguma forma, pudesse renovar e reinventar seu existir.

No texto "O inquietante", cujo titulo original é "Das Unheimliche", Freud (1917/2014) comenta que o inquietante é algo que se relaciona ao que desperta angústia e horror, mas que o termo nem sempre é usado de modo bem determinado, de tal forma que geralmente equivale ao que é angustiante. Ele então questiona se haveria algo de inquietante a distinguir no interior do que é angustiante e propõe dois caminhos: explorar o significado linguístico evolutivo da palavra unheimlich ou, então, reunir tudo aquilo que, nas pessoas e coisas, nas impressões dos sentidos, ou nas vivências e situações, desperta o sentido do inquietante. Freud conclui que tanto um caminho como o outro levam ao mesmo resultado, indicando que o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que há muito é conhecido, ao que é bastante familiar e, então, questiona como pode ser isto possível, ou seja, em que condições o familiar pode ser inquietante.

Ao final do texto, após longa revisão linguística e extensos comentários ilustrativos com base em trechos literários de diferentes autores, Freud sugere que pode ser correto supor que o incômodo que desperta o angustiado receio, expresso na palavra unheimlich, seja o que há de doméstico, íntimo ou familiar, expresso na palavra heimlich, que experimentou alguma repressão e dela retornou. Com seu habitual olhar crítico em relação às suas próprias proposições, porém, Freud observa que nem tudo o que lembra impulsos reprimidos ou modos de pensar pertencentes à pré-história individual e dos povos é inquietante, ou seja, deve haver algo relacionado ao conteúdo dos fatos para que o sentimento inquietante surja. Trata-se, diz ele, de algo em particular que remete à repressão de um conteúdo e o retorno do que foi reprimido, por exemplo, algo que pode remontar à vida psíquica infantil. E acrescenta que, quanto à literatura, no mundo das fábulas sabemos de antemão que o conteúdo apresentado não está sujeito à prova da realidade, ou seja, neste tipo de escrita, não é inquietante muita coisa que assim seria se ocorresse na vida real. Continua ele, a situação, porém, é outra quando o escritor transita no terreno da realidade comum, de tal forma que o que produz efeitos inquietantes na vida também os produz na obra literária, e nós, leitores, reagimos ao texto como reagiríamos a nossas próprias vivências. É sob este viés que o romance em questão prepara a armadilha para os que se se lançam às suas páginas e, eventualmente, podem sentir-se verdadeiramente capturados pelos afetos ali expressos na linguagem. Ao avançarmos no texto, reagirmos às inquietudes de Aschenbach como se, em determinados momentos da narrativa, suas questões tangenciassem algo que, de alguma forma, também é nosso, estranhamente e inquietantemente nosso.

 

Algumas fotografias antigas

Em seu romance A morte em Veneza, Thomas Mann consegue magistralmente antecipar duas questões fundamentais do pensamento freudiano ao apresentar o momento em que Aschenbach identifica em si mesmo a insatisfação e a curiosidade que o levam a partir em busca do que lhe é estranho e aparentemente sem relação com sua forma habitual de interação com o mundo, como ele próprio descreve. Ou seja, esse momento crítico na trajetória pessoal do protagonista remete tanto ao conceito de pulsão como uma força constante e inexpugnável pelas ações de fuga, como também às questões relacionadas ao âmbito do inquietante, como já mencionado.

Ao comentar sobre o ambiente familiar de Aschenbach, Thomas Mann dá grande ênfase à influência da figura paterna e dos respectivos antepassados em sua vida, descritos como "homens de vida enérgica, decorosa e parca" (Mann, 1971, p. 96), entre outros atributos da mesma natureza, como espiritualidade profunda e o dom da oratória. Quanto à figura materna, o autor comenta que "um sangue mais sensual juntara-se à família na geração anterior pela mãe do poeta, filha de um maestro da Boêmia, da qual descendiam os sinais de raça estranha no seu aspecto" (Mann, 1971, p. 96) e que o casamento de seus pais representou a união da "consciência oficiosa e sóbria com impulsos acentuados e ardentes" (Mann, 1971, p. 96), gerando este artista particular.

O autor do romance não fornece maiores detalhes acerca de fatos pertencentes à vida infantil do poeta. Mas as características atribuídas por Thomas Mann aos pais de Aschenbach são como fotografias, bastante expressivas, que nos levam a ousar especular sobre que tipo de alianças, acordos, pactos e tramas inconscientes poderia ter-se instalado naquele núcleo familiar no qual o sangue sensual materno é infundido diretamente na veia do rigor enérgico constitucional de seu pai. Trata-se então de imagens que, assim registradas, fixadas como em uma emulsão fotográfica, podem ter suscitado determinados afetos precoces no poeta, levando-o a reprimir determinados conteúdos de tal forma, que, ao retornarem na vida adulta, poderiam ter-lhe produzido sensações inquietantes nesse momento de crise.

Ao tecer a trama desse romance, o autor deixa claro para os leitores que, nesse instante crucial de sua vida, Aschenbach deparou agudamente com um certo desencontro de si mesmo, o que ameaçava tornar sua subjetividade opaca e seu porvir esmaecido, caso nenhuma ação fosse tomada. O poeta parte então em busca de algo que diz de seu próprio desejo, ainda que aparentemente estranho a ele próprio. Impunha-se a ele não mais silenciar e sair em busca de um novo devir em um percurso que iria registrar-se de modo surpreendente na cartografia de seu existir. A partir daquele momento, o que por muito tempo esteve secreto e oculto de si mesmo começa a vir à tona, numa trajetória aparentemente geográfica, mas que provavelmente estaria mais a falar de uma peregrinação em busca de seu próprio desejo.

 

Pulsões, papéis e prisões

Retornando ao trecho de "O mal-estar na civilização" que se refere às técnicas para evitar o desprazer, verificamos o destaque conferido à orientação da vida que tem o amor em uma posição central e no qual a satisfação a ser alcançada localiza-se "em processos psíquicos internos, valendo-se aí do mencionado caráter deslocável da libido, mas não se afasta do mundo exterior, agarra-se aos seus objetos e obtém felicidade de uma relação afetiva para com eles" (Freud, 1930/2016, p. 38), trazendo, como expectativa, a possibilidade de amar e ser amado. Freud ressalta ainda que essa técnica não se dá por satisfeita pelo simples evitar do desprazer, mas que ignora isto e apega-se ao esforço original, apaixonado, por uma realização positiva da felicidade (1930/2016). E, como exemplo das formas de manifestação amorosa, ele nos diz que o amor sexual proporciona "a mais forte experiência de uma sensação avassaladora de prazer, dando assim o modelo para nossa busca da felicidade" (Freud 1930/2016, p. 39). Este tema é amplamente explorado por Thomas Mann ao narrar a experiência de Aschenbach em Veneza, como veremos.

A descrição que Thomas Mann faz do momento em que Aschenbach vê Tadzio pela primeira vez revela o impacto causado nele, que julgou estar diante de uma representação humana que confirmava a existência divina, como citado abaixo:

era um grupo de adolescentes sob a tutela de uma governanta ... três mocinhas de quinze a dezessete anos ... e um rapaz de cabelos longos de talvez catorze anos ... notou que o menino era perfeitamente belo ... a expressão de seriedade divina, lembrava esculturas gregas ... da mais pura perfeição de forma ... julgou nunca ter encontrado na natureza ou no mundo artístico uma obra tão bem-sucedida. (Mann, 1971, p. 115)

O texto segue comentando o momento em que a mãe de Tadzio entrou no salão do hotel. Diz o autor que se tratava de uma senhora alta, ricamente adornada de pérolas e que tanto Tadzio como seus irmãos foram ter com ela e curvaram-se para beijar-lhe a mão, enquanto ela dirigia algumas palavras em francês à governanta. Esse é um dos momentos fundamentais no romance, ao indicar de que forma os papéis e as relações interpessoais começam ali a se estabelecer.

Thomas Mann nos revela que quando a mãe saiu do salão as crianças a seguiram. Inicialmente saíram as meninas, por ordem de idade, depois a governanta e por último o rapaz, e, "por um motivo qualquer, este se virou antes de passar pelo limiar e, como ninguém mais permanecesse na sala, seus estranhos olhos cinza-alvorada encontraram os de Aschenbach" (Mann, 1971, p. 117). Tadzio tinha, portanto, olhos estranhos, tão estranhos e estrangeiros a Aschenbach quanto estrangeiras eram as emoções que ali começavam a surgir no poeta.

É curioso observar que no núcleo familiar de Tadzio a figura paterna era um elemento ausente. Nunca saberemos se tal omissão foi ou não intencional por parte do autor. O fato é que isso apontava para uma lacuna na representação tradicionalmente vista nas estruturas familiares daquele ambiente social, deixando aberto um convite para que personagens daquela trama eventualmente viessem a ocupar tal posição e completar uma cena familiar consoante com os registros da época. Naquela terra, porém, exatamente por ser estrangeira, em sentido amplo, havia a possibilidade de que novos papéis, novas cenas, novas vocações e novos vínculos, distantes do vocabulário social habitual, pudessem ganhar espaço, ainda que gerando conflitos e inquietudes em seus personagens.

Poderíamos então refletir sobre as diversas possibilidades que a vida apresenta aos homens e como, de certa forma, somos tentados a sucumbir aos papéis que nossos desejos nos impõem, pois, como já enunciado por Freud (1915/2014c), as pulsões devem de alguma forma se expressar, uma vez que nenhuma fuga é eficaz contra elas. Como comentamos, no início do romance, o autor nos diz que Aschenbach teve uma filha, não um filho. Não há, nesse romance, qualquer referência que nos faça supor algum interesse de Aschenbach em assumir um papel paterno naquela estrutura, ainda que, em tese, tal movimento fosse possível. Pelo contrário, Aschenbach rende-se ao próprio desejo, que, de modo irrecusável, convocava-o para seguir em uma outra direção, mesmo se em um momento inicial talvez tudo aquilo pudesse lhe soar estranho e sem relação de afinidade com seu universo habitual. Em uma terra sedutoramente estrangeira, sua pulsão é soberana, e, como um perfeito súdito, Aschenbach a ela se entrega de maneira absolutamente cega. A partir desse ponto, o romance evolui de tal forma, que o progressivo encantamento de Aschenbach por Tadzio vai-se estabelecendo de modo inexorável. Não se trata aqui de uma escolha pessoal do poeta, mas sim do sucumbir indefeso ao desejo, dirigido ao objeto externo que "lembrava esculturas gregas dos mais nobres tempos e da mais pura perfeição de forma e de tão rara atração pessoal, que o observador julgou nunca ter encontrado na natureza ou no mundo artístico uma obra tão bem-sucedida" (Mann, 1971, p. 115).

São inúmeras as referências do autor à natureza dos sentimentos desenvolvidos por Aschenbach em relação a Tadzio, em grande parte decorrentes da sedução estética provocada por ele no poeta, como, por exemplo, a "a beleza verdadeiramente divina desta criatura humana ... belo como um deus ... inspirava ideias mitológicas ... o delicado desenho das costelas, a simetria do peito ... perfeito corpo rijo e juvenil" (Mann, 1971, pp. 119-124, 136). E, desta forma, Aschenbach vai progredindo em seu encantamento por Tadzio, até que em determinado momento se atinge o ápice no qual, "inclinado para trás, de braços pendentes, dominado e sentindo-se percorrido por arrepios, murmurou a eterna fórmula do anseio - aqui impossível, absurdo, abjeto, ridículo e no entanto sagrado, digno mesmo: Eu te amo!" (Mann, 1971, p. 145). Como já comentado por Freud, o sentimento amoroso que traz a expectativa de amar e ser amado (1930/2016) é claramente expresso nas palavras acima, ditas pelo poeta num jorro de desejo. O encontro de Aschenbach com Tadzio provoca o confronto do poeta com determinados aspectos de sua própria sexualidade, que, de certa forma, poderia parecer dissonante ou estranha e sem relação com os valores de disciplina, perseverança e determinação vividos até o momento em que decidiu iniciar essa jornada. Sem, entretanto, conseguir fugir de seu desejo, Aschenbach não consegue calar sua pulsão, que transborda para muito além dos limites e regras que ele a si mesmo impôs durante tanto tempo de sua existência.

É interessante observar que Thomas Mann personifica, nesse romance, a figura de um poeta para quem a rima é um elemento fundamental de seu ofício. Ao falar sobre a pulsão, ocorre-me a palavra "prisão", no sentido das pulsões que são aprisionadas ao longo do caminhar humano e que buscam romper as interdições que a cultura e a sociedade impõem para serem expressas, não importando de que maneira. Mas a expectativa de realização do verdadeiro encontro amoroso não se concretiza na trajetória do poeta. Em alguns momentos do romance, Aschenbach expressa claramente seu sofrimento sobre a insatisfeita necessidade de interação com Tadzio, como, por exemplo, no trecho que se segue:

Nada é mais estranho, mais melindroso que a relação de pessoas que só se conhecem de vista, que diariamente se encontram, se observam; são obrigadas a manter a aparência de indiferente estranheza, sem cumprimento, sem palavra, pela ética ou capricho pessoal. Entre eles há inquietação e curiosidade, a histeria de uma insatisfeita e artificialmente oprimida necessidade de conhecimento e intercâmbio e principalmente também uma espécie de respeitoso interesse. (Mann, 1971, pp. 119-124, 136)

A insatisfação de Aschenbach por não concretizar sua equação amorosa poderia ser decorrente do conflito entre seu próprio desejo dirigido a Tadzio e as interdições culturais e sociais da época em que vivem os personagens desse romance. Outro elemento, porém, não menos importante nesse desconforto do protagonista talvez se refira à diferença de idade entre ele e Tadzio e o que isto provocava no poeta quando o autor nos diz que Aschenbach "... Depois do meio-dia deixou a praia, voltou para o hotel e subiu para seu quarto. Lá ficou muito tempo perante o espelho e observou seu cabelo grisalho, seu rosto cansado e marcado" (Mann, 1971, p. 125), algo verdadeiramente aterrorizador para quem tinha na beleza estética um ideal erótico de satisfação. Vale observar que, quando discorre sobre as fontes do sofrimento humano em "O mal-estar na civilização", Freud (1930/2016) comenta que a ameaça trazida pelo sofrimento pode surgir do próprio corpo, que, fadado ao declínio, não pode dispensar a dor nem o medo como sinais de advertência, algo que pode aqui ter sido experimentado por Aschenbach ao se olhar no espelho.

 

O desejo abençoado que não foi realizado

Em vários momentos nos quais Aschenbach divaga sobre seus sentimentos em relação a Tadzio encontramos referências a Eros e às formas de representação do sentimento amoroso na cultura e mitologia gregas de outrora, como, por exemplo, "nunca soube que Eros estava assim na palavra, nas horas perigosas e deliciosas durante as quais, na presença de seu ídolo, a música de sua voz nos ouvidos formava sua pequena dissertação de acordo com a beleza de Tadzio" (Mann, 1971, p. 139). No clássico O banquete, lemos sobre um encontro no qual diversos oradores discursam com o intuito de louvar a Eros, e ali, em suas palavras, o amor entre iguais é enaltecido. Dentre os vários oradores destaco Aristófanes, que em seu pronunciamento refere-se aos homens adultos, que "... tornam-se amantes de rapazes e não revelam qualquer interesse em casamento e geração de filhos, salvo quando determinado pelos costumes locais ... um homem deste tipo nasceu para ser amante de rapazes ou o companheiro voluntário de um homem" (Platão, 2012, p. 55) e que, "quando um deles acontece de encontrar sua própria metade, os dois parceiros são maravilhosamente tocados pela amizade, a intimidade e o amor sexual, sendo dificilmente convencidos a se separarem, mesmo que seja por um momento" (Platão, 2012, pp. 55-56).

Portanto, além de não conseguir concretizar seu próprio desejo, se acrescenta aqui a impossibilidade que tem Aschenbach de alcançar o amor abençoado pelo deus Eros como preconizado pelos sábios gregos e reconhecido pelo próprio poeta em vários trechos da narrativa. Desta forma, o sofrimento de Aschenbach ganha ainda maior dimensão ao sair dos limites do seu particular para expandir-se em um ideal maior, porque divino, também não alcançado, o que certamente amplia muito o abismo entre Aschenbach, ele mesmo, e o mundo ao seu redor.

 

A cólera, o desfecho e o infinito

Assim como as pulsões do homem buscam deixar seu estado de aprisionamento para de alguma forma serem expressas, a partir de determinado momento a epidemia de cólera que progressivamente se alastrava por Veneza também não pode mais ser ocultada, em uma analogia à exaustão das interdições sociais que definem e limitam o existir humano. A cidade, desestruturada em sua ordem, aponta para a desordem da vida quando as interdições não mais resistem e o viver se torna então insubmisso a princípios como disciplina, determinação e perseverança, tão estruturais na constituição original de Aschenbach, como já mencionado. Nesse momento, o risco que a vida corre de não mais se sustentar da forma em que era estruturada passa a ser absolutamente secundário para o protagonista do romance.

Ansioso com os rumores que ouvia acerca do que ocorria na cidade, Aschenbach decide ir até a Praça de São Marcos. Ao tentar investigar a gravidade da epidemia, ouve de um comerciante local que, "... dentro de poucas horas, o doente com cólera seca e sufoca do sangue resistente, sob câimbras e lamentos roucos" (Mann, 1971, p. 160). Neste comentário ocultava-se uma mensagem que, de certa forma, vaticinava o desfecho da própria jornada de Aschenbach. De volta ao hotel, ele sonha. As imagens oníricas produzidas pelo poeta traduzem, em muito, as questões relacionadas às suas pulsões, como citado a seguir:

romperam de fora para dentro sua resistência ... derrubando-a violentamente ... deixando sua existência ... deixando a cultura de sua vida devastada, exterminada ... precipitavam-se homens, animais, um enxame, um bando furioso e inundaram a colina de corpos, chamas, tumulto e dança vertiginosa ... grande era sua repugnância, seu medo, honesto seu desejo de salvaguardar seu eu até o fim contra o estranho, o inimigo do sereno e digno espírito ... mas com eles, entre eles, estava agora o sonhador, submisso ao deus estranho ... e sua alma experimentou a luxúria e a loucura da decadência. (Mann, 1971, pp. 162-164)

Aschenbach acordou desse sonho "enervado, perturbado e enfraquecido, à mercê do demônio" (Mann, 1971, p. 164). Alguns dias depois, lutando contra "certas vertigens que eram acompanhadas de um medo repentino e forte, uma sensação de irremediável inutilidade, que não podia analisar se era relativa ao mundo exterior ou à sua própria existência" (Mann, 1971, p. 170), Aschenbach dirige-se à praia e encontra Tadzio. O poeta senta em uma espreguiçadeira e o observa mais uma vez. Tadzio caminha em direção ao mar, entra na parte rasa, ali fica durante um período e, num certo momento, "... como sob uma lembrança, um impulso, virou o tronco, uma das mãos nos quadris ... olhou para a praia. O observador ali estava sentado, como em outra oportunidade estivera, como quando pela primeira vez este olhar cinza-alvorada correspondera encontrando o seu" (Mann, 1971, p. 172).

Nas páginas finais do romance, Thomas Mann nos descortina o cenário como se segue:

Sua cabeça, encostada no espaldar da cadeira, seguira vagarosamente os movimentos daquele que andava lá fora; agora ergueu-se como que de encontro ao olhar e caiu sobre o peito ... seu rosto apresentava a indolente, afetuosa e meditativa expressão do sono profundo ... Minutos passaram ... Levaram-no para seu quarto. E, ainda no mesmo dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notícia de sua morte. (Mann, 1971, p. 172)

Em seu texto sobre as pulsões, Freud (1915/2014c) discorre sobre seus componentes: a pressão de uma pulsão, que seria a força ou a medida da exigência de trabalho que ela representa, a meta da pulsão que é sempre a satisfação, e que só pode ser alcançada pela suspensão do estado de estimulação à fonte pulsional e, ainda, o objeto da pulsão através do qual ela pode alcançar sua meta. Com base nesse olhar, ele sugere a existência de dois grupos de pulsões primordiais: as pulsões do Eu, ou de autopreservação, e as pulsões sexuais. Embora esta proposição venha a ser revista mais tarde, quando Freud introduz o dualismo entre pulsão de vida e pulsão de morte (1920/2014a), nesse momento inicial da teoria pulsional Freud propõe que um conflito entre as exigências da sexualidade e as do Eu estaria na raiz das psiconeuroses (1915/2014c). A jornada pulsional de Aschenbach força-o a deixar Munique. Esse movimento acaba por levá-lo a Veneza, onde encontra Tadzio, objeto de uma beleza divina, como descreve o autor do romance, um objeto perfeito para que as pulsões de Aschenbach alcançassem sua meta. Ainda no mesmo texto sobre as pulsões, Freud (1915/2014c) comenta que o amor deve admitir três oposições. Como comentado, além das oposições amor-ódio e amar-ser amado, há, também, a questão do amor e o ódio que, tomados conjuntamente, se contrapõem ao estado de indiferença ou insensibilidade. E segue dizendo que entre estas três oposições, a caracterizada pelo amar-ser amado corresponde à conversão da atividade em passividade, o que pode remontar a uma situação fundamental como a pulsão do olhar, e conclui, então, que esta seria a condição do amar a si mesmo, expressando-se, desta forma, a condição do narcisismo. Em momentos-chave do romance de Thomas Mann manifesta-se não apenas a atração de Aschenbach por Tadzio, mas, principalmente, o que este afeto representa no imaginário do poeta, destacando-se aqui a juventude e a beleza estética, elementos certamente impactantes para alguém que dedica seu olhar diário à poesia. Vale considerar então que, naquele momento singular da trajetória de Aschenbach, o surgimento de Tadzio talvez pudesse também aludir a uma imagem idealizada dele mesmo, como um amor de Narciso, clássico e perene como os mitos costumam ser.

O romance evolui sem que a aspiração do poeta se concretize e, portanto, permaneça aprisionada nas mais íntimas páginas de afeto de Aschenbach. Ao não conseguir satisfazer suas pulsões de modo pleno, Thomas Mann nos mostra seu protagonista enervado, perturbado e enfraquecido, à mercê do demônio. Aschenbach acaba então por realizar a profecia de seu sonho e se retira da vida.

Na cena final da praia, após a morte de Aschenbach, Tadzio aponta para longe, com sua mão "flutuando para a imensidão" (Mann, 1971, p. 172). Com este gesto, ao apontar para o alto e o infinito, Tadzio denuncia que o sofrimento de Aschenbach não se limita a esse episódio singular, mas sim se expande para a frustração maior de também não ter sido alcançado o estado de plenitude amorosa abençoado pelos deuses, como referiam os sábios gregos em O banquete (Platão, 2012), confirmando que o princípio do prazer que estabelece a finalidade da vida "está em desacordo com o mundo inteiro, é inexequível e todo o arranjo do Universo o contraria" (Freud, 1930/2016, p. 30), pois "aquilo a que chamamos felicidade, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas e, por sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico" (Freud, 1930/2016, pp. 30-31).

Nesse romance, o desfecho é a extinção da própria vida e o esgotamento de suas possibilidades de alcançar o prazer. A jornada de Aschenbach, no que tange a suas pulsões tão particulares, de certa maneira confirma o destino inexorável ao qual o homem universal está submetido, pois, como já destacado neste texto, Freud nos alerta para o fato de que a pulsão não ataca de fora, e que, por surgir do interior do corpo, nenhuma fuga é eficaz contra ela. Resta ao homem, então, sofrer e iludir-se achando ser possível buscar a inalcançável solução definitiva de felicidade para seus dramas pessoais com os recursos que a vida lhe permitir desenvolver.

 

Referências

Freud, S. (2014a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 161-239). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (2014b). O inquietante. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 328-376). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Freud, S. (2014c). As pulsões e seus destinos. In S. Freud, Obras incompletas de Sigmund Freud (P. Heliodoro, Trad., Vol. 2). Belo Horizonte: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (2016). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 13-122). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Mann, T. (1971). A morte em Veneza (1a ed.). São Paulo: Abril Cultural.         [ Links ]

Platão (2012). O banquete (1a ed.). São Paulo: Edipro.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/7/2017
Aceito em: 4/9/2017

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