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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dic. 2017

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

A vertigem na continuidade da escrita psicanalítica: experiência de um grupo de estudos

 

The vertigo in the continuity of psychoanalytic writing: a study group's experience

 

El vértigo en la continuidad de la escritura psicoanalítica: experiencia de un grupo de estudios

 

Le vertige dans la continuité de l'écriture psychanalytique: l'expérience d'un groupe d'études

 

 

Ana Rita TaschettoI; Ângela Eliza Bolognesi BarbosaII; Antonieta Justina Chies MantovaniIII; Elena Beatriz TomaselIV; Juarez Guedes CruzV; Leonita Beatriz Tramontina SerenaVI

Iartaschetto@terra.com.br
IIangelabolognesi@hotmail.com
IIIantonietajcm@gmail.com
IVelenatomasel@gmail.com
Vjgcruz@pro.via-rs
VIDa Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, SPPA. Porto Alegre. ibtserena@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Os autores deste ensaio - componentes de um grupo de estudos a respeito da escrita em psicanálise - expõem comentários sobre o conto "Continuidade dos parques", de Julio Cortázar. Não se propõem a um exercício de psicanálise aplicada. Em vez disso, partindo do conceito de "psicanálise implicada", de Alain Grosrichard (1990), desenvolvido por João Frayze-Pereira (2005), pretendem investigar o quanto podemos, seguindo o exemplo de Sigmund Freud e sua valorização dos insights intuitivos dos artistas, aprender a respeito da vida mental com base no mestre argentino.

Palavras-chave: escrita psicanalítica, literatura, psicanálise implicada


ABSTRACT

In this paper, the authors, who are members of a study group on psychoanalytic writing, present their considerations on "Continuity of parks", a short story written by Julio Cortázar. The authors' purpose is not an exercise of applied psychoanalysis. On the contrary, they attempt to investigate, by following the example of Sigmund Freud in valuing the intuitive insights of artists, how much we may learn about mental life from the Argentinean master's narrative. To this end, the authors start from the concept of "implied psychoanalysis", which was created by Alain Grosrichard (1990) and developed by João Frayze-Pereira (2006).

Keywords: psychoanalytic writing, literature, implied psychoanalysis


RESUMEN

Los autores de este ensayo - integrantes de un grupo de estudios sobre la escritura en psicoanálisis - exponen comentarios sobre el cuento "Continuidad de los parques" de Julio Cortázar. No se proponen hacer un ejercicio de psicoanálisis aplicado, sino que, partiendo del concepto de "psicoanálisis implicado" de Alain Grosrichard (1990), desarrollado por João Frayze-Pereira (2006) y siguiendo el ejemplo de Sigmund Freud al compartir su valorización de los insights intuitivos de los artistas, procuran investigar en qué medida se puede aprender sobre la vida mental a partir de la obra del maestro argentino.

Palabras clave: escritura psicoanalítica, literatura y psicoanálisis implicada


RÉSUMÉ

Les auteurs de cet essai - participants d'un groupe d'études consacré à l'écriture en psychanalyse - tissent des commentaires sur le conte "Continuité des parcs", de Julio Cortázar. Ils ne se proposent pas de faire un exercice de psychanalyse appliquée. En revanche, partant du concept de "psychanalyse impliquée", proposé par Alain Grosrichard (1900) et développé par João Frayze--Pereira (2006), ils envisagent d'examiner combien est-il possible - suivant l'exemple de Sigmund Freud et sa mise en valeur des insights intuitifs des artistes - d'apprendre sur la vie mentale à partir du texte de ce grand écrivain argentin.

Mots-clés: écriture psychanalytique, littérature, psychanalyse impliqués


 

 

Introdução

Impactados pela leitura de "Continuidade dos parques", de Julio Cortázar, propusemo-nos um exercício que se construiu da seguinte maneira: depois de uma leitura em conjunto e não comentada do referido conto, cada um de nós, escreveu sobre este, de modo independente, um ensaio psicanalítico. Limitamos uma extensão de no máximo duas páginas e não nos preocupamos com eventuais superposições, repetições ou paradoxos. Cada um sentiu-se livre para escrever o que bem lhe aprouvesse dentro do espírito criativo que rege nosso grupo de escrita em psicanálise. Podíamos pesquisar o que quiséssemos a respeito do autor, sua obra e sua vida. O exercício nos pareceu tão proveitoso, que resolvemos transformá-lo em um texto elaborado a várias mãos. O resultado está exposto nas páginas que seguem.

 

Assassinato do tempo

A sensação que me despertou o texto de Julio Cortázar foi de confusão, angústia e perturbação. Li, reli... várias vezes. Fiquei mais tranquila ao saber o que Cortázar escreveu sobre a experiência de fazer esse conto: "... eu, que não escrevo nunca duas vezes um conto, escrevi quinze vezes este e ainda não estou satisfeito. Creio que faltam ainda elementos de ritmo e tensão para que possa chegar a ser diminutamente perfeito" (Cortázar, citado por Bermejo, 2002, p. 88).

O conto provoca no leitor uma desacomodação. De certa forma, critica sua passividade e procura "acordá-lo" para questionamentos: de leitor passivo, torna-se ativo na trama. Cortázar nos mostra duas histórias paralelas, que se fundem e entrelaçam dentro de um único lugar, o livro.

O título é um enigma e passa a ideia de movimento. O personagem é, também, um leitor, e o conto vai, aos poucos, nos "puxando para dentro" da história, da mente dos personagens e dos lugares onde vivem. Penso que esse é o fascínio que o conto provoca: o "enredado" dentro/fora, misturando realidade/ficção, atravessa fronteiras.

Cortázar proporciona outros caminhos: o leitor também pode ser a mulher, o amante ou um novo personagem que está "à espreita" observando o desenrolar da trama. Apresenta uma obra aberta para continuidade, com referência ao que pode ser vivido, sentido e significado no caminhar do tempo.

Ocorreu-me uma analogia com uma sessão analítica: analista e paciente formam uma dupla única, envolvidos em um cenário de realidade/ficção, um não existindo sem o outro, descortinando novos lugares, personagens, emoções, encontros e desencontros. Tudo sendo encenado no livro-setting analítico. O personagem do conto se encontra em um espaço fechado, porém, com várias aberturas que promovem um diálogo entre exterior e interior. Como no quadro As meninas, de Velásquez, estão a Infanta Margarida, suas damas de honra, os pais refletidos no espelho e o próprio pintor. Analista e paciente se encontram ligados por seus mundos internos, construindo uma nova história ou uma nova versão para a mesma história.

Nesse contexto, ao se deixar levar para o interior do livro, no mundo interno também ocorre um fim, simbolicamente o assassinato de um jeito de ser, de um sofrimento. Suscita o desejo de avisar o personagem e, ao mesmo tempo, permanecer do lado de trás da poltrona/divã - que evoca o analista no divã com seu analista, que evoca... Testemunha ocular do que acontece no livro-vida e testemunha sentimental do que acontece no seu próprio interior. Em um diálogo contínuo vão se desenhando vários personagens, um observando e abarcando o outro.

Enfim, o conto fala desse caminho de vida e de lugares continentes, trem, escritório, espaços sem intromissões, onde é possível mergulhar em questões íntimas e profundas.

O conto nos convida a espiar, observar, pensar e reflete a continuidade dos espaços, mesmo quando o personagem principal/leitor chega à dobra do horizonte, onde nos damos conta do quanto, lendo a história, tínhamos perdido o fio da meada. As pistas estavam contidas nas entrelinhas, e o conto já compunha, sem convite, a nossa paisagem.

Ao final, com gosto de um silêncio desacomodado e num esforço de desembrulhar lembranças, Cortázar instiga o leitor a se questionar, perceber novas realidades e novas possibilidades. Leva-nos à reflexão: seremos, um dia, também assassinados pelo tempo; mas sempre permanecerá a continuidade dos parques.

 

Caminhos entre o mundo interior e exterior

"Continuidade dos parques", de Julio Cortázar, nos leva, palavra a palavra, a um estado de sonho. O relato começa descrevendo um fazendeiro que se remete à leitura de um romance. A escrita é feita de maneira tão habilidosa, que vivenciamos a passagem do leitor para a realidade da trama de dois amantes que se encontram às escondidas. Conseguimos submergir no mundo fantasiado desse conto recheado de elementos sensoriais.

Com um olhar analítico sobre a trama, ocorreu-me que o fazendeiro, quando "passa a mão no veludo verde da poltrona", dá as costas à realidade e conecta-se com seu mundo interior através da leitura. Realidade e fantasia misturam-se, criando um espaço transicional, como definiu Winnicott (1951/1988). O veludo verde lembra a função do objeto transicional como veículo de passagem entre o mundo interior e o exterior. Esse objeto macio, fruto da boa relação com a mãe, cria na criança a "capacidade de estar só" (Winnicott, 1960/2007), que segue na vida adulta como uma necessidade de sonhar. De sobrevivência à realidade. Ao mesmo tempo em que o bebê toca o "veludo" para se defender da realidade, fantasiando a relação com a mãe, entra em contato com esta. Também tocamos nossa alma com leituras, filmes e músicas, defendendo-nos da realidade, para reencontrarmos um acalento macio para a nossa existência.

O texto mostra essa passagem entre os dois parques, realidade e fantasia, interior e exterior, lembrando o trabalho analítico. Ora estamos num parque, ora noutro, num espaço transicional entre esses dois mundos. Sonhamos o material do paciente, depois voltamos para realidade em busca de compreensão, muitas vezes tomamos a fantasia como realidade, sentimos seus cheiros, cores, sensações, deixando-nos cair em um estado de devaneio, tal como o texto de Cortázar. Seria o fazendeiro o assassino, ou aquele que escreve o texto é quem matou? Será que alguém, de fato, morreu? Não teria sido o capataz? Ficamos em suspense na busca de compreensão.

O que seria da vida sem o sonho, o que seria da análise sem a história, o que seríamos nós, analistas, além de leitores e sonhadores? O sonhar é uma atividade que ocorre todo o tempo, mesmo em estado de vigília (Ogden, 2005/2010). É um ato de sobrevivência, um parque tão real quanto a realidade externa. Neste conteúdo vivo de elementos internos e externos, entrelaçados como num "rio de serpentes", sempre em movimento, é que tramas que vivem por si, se arranjam em imagens, sensações, tornam-se verdadeiras histórias em busca de um significado. Histórias em busca de um leitor.

 

O incômodo da cumplicidade

"Continuidade dos parques", de Julio Cortázar, foi escrito de uma forma que nos invade. Leva a refletir: é realidade ou ficção? Impõe ao leitor uma participação ativa.

Inicia com a frase: "Começara a ler o romance dias antes...". Por esta passagem, nos damos conta de que o protagonista é um leitor. Ele estava em meio à leitura de um romance. Assim, estamos lendo o que o leitor está lendo. Ao nos encontrarmos lendo uma pessoa que lê, estamos naquela situação de quando sonhamos que estamos sonhando: um sonho, dentro de outro sonho. O que é do sonho e o que é do sonho que sonhamos?

O personagem/leitor está em uma casa cercada por um parque de carvalhos. Ocorrem-me, os carvalhos, como defesas e obstáculos, como se o personagem estivesse protegido ou inacessível. À medida que se envolve na leitura, vai construindo cenas/imagens a testemunhar o encontro amoroso e erótico na cabana. Novamente, os obstáculos. Nesse encontro, a presença de um punhal.

O diálogo entre os amantes, envolvidos e decididos em seu plano, escorre pelas páginas feito um riacho de serpentes.Enquanto os acompanha, o narrador nos faz ver que tudo estava decidido, a história já estava escrita. Para viverem tal amor, o marido/rival teria que sair de cena. Tudo transcorre conforme o previsto: os cães não latem, o capataz não está. As palavras da amada ecoam em seus ouvidos: primeiro a sala azul, depois a varanda, então a escadaria atapetada. No alto, duas portas: ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. O desfecho: a porta, o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo o romance.

Nesse conto dentro de um conto, cria-se um jogo de olhares em que o prazer de ver sem ser visto intensifica o sabor do proibido - tema presente na paixão dos amantes. Ao lermos um conto no qual o personagem é também leitor, estamos olhando com o olhar do outro e identificados com o leitor da trama, implicados e envolvidos. Esse conto me instigou a pensar nas diferentes formas de escrita e a tentar entender o que Cortázar pretendia dos leitores. Susan Blum (2016), explica que na busca de um leitor cúmplice e partícipe, Cortázar nos insere em um jogo de palavras. Estimulando leitor a se questionar, a perceber novas realidades e novas possibilidades, saindo da leitura linear e explicativa para se aprofundar em outras realidades próximas a ele, não apenas do mundo circundante, mas de outros espaços, como o das relações e do pessoal e íntimo.

 

Um punhal, o corte e uma morte

Em "Continuidade dos parques", Cortázar apresenta, de modo singular, a contínua unidade entre leitor e história lida. Inicia o texto com um único personagem que se encaminha para o gozo perverso do afastamento, linha a linha, da realidade, para mergulhar no trágico encontro dos heróis desunidos. O impacto inicial com a leitura é de um suspense confusional: uma morte acontecerá, quem é o assassino? O personagem da poltrona? O da cabana? E se os dois são apenas um? Quem é quem? Necessita-se uma segunda leitura, e... o inexplicável se mantém. É esse o enigma que surpreende nessa leitura.

Em apenas dois parágrafos o autor nos põe frente a frente com a dúvida sobre o que é e onde está a realidade, e o quanto ela se diferencia da ficção. Sonho e vigília fusionados desnorteiam o leitor: não se sabe onde um começa e outro termina.

Como babuskas que contêm em seus interiores de seis a sete iguais e repetidamente emergem umas de outras, no texto de Cortázar vemos uma história brotar da anterior. No conto, os personagens confundem-se dificultando sua diferenciação. Um movimento de identificação primária, no qual ainda estão simbioticamente indiferenciados self e objeto.

Winnicott descreveu a relação mãe-bebê como unidade indiferenciada, afirmando que não existe bebê sem mãe, e vice-versa. Ao nascer um bebê, nasce uma mãe. Cortázar oferece uma metáfora sobre relações semelhantes àquelas descritas por Winnicott. Esse conto nos alerta para o fato de que não existe aquele que lê separado daquilo que lê. No ato da leitura cria-se um espaço com potência para a transição, como se fosse um terceiro elemento, de ligação entre os dois. É a partir da criação desse espaço que o conto entra no leitor e o possui, ao mesmo tempo em que se deixa penetrar pelo texto e é possuído por ele. Assim, a história permanece dentro do leitor que invade o texto, reconhecendo-se neste. É com esse enigma que "Continuidade dos parques" assombra, revelando, de modo poético e inesquecível, uma relação fusional, uma simbiose indiferenciada. O conto revela carícias entre a mão e o veludo, os lábios e o rosto, a mão e a face. Carícias que prenunciam despedidas. Para desfazê-las surge o punhal que lateja escondido no peito daquele que executará o ato. Uma morte, no sentido de separação, acontecerá, e mais tarde, tantas outras...

 

Para ser lido em uma poltrona de veludo verde

Poucos textos psicanalíticos seriam tão eficientes quanto esse de Cortázar para nos inserir na quase vertigem da continuidade entre os mundos externo e interno em nossas mentes. Relendo o conto do argentino, ficamos obcecados pela busca do trecho em que acontece a passagem do personagem/leitor de um romance sobre traição para o personagem/marido, traído e assassinado. É uma transição tão hábil e eficiente, escrita com tal maestria narrativa, que ficamos sem saber se é sonho do personagem lendo um romance, ou vigília do leitor/personagem lendo um romance sobre algo que está acontecendo em sua vida. Realidade/ficção, sonho/vigília, interno/externo. Esses pares de opostos perdem seus limites e nos transportam ao "vórtice mágico" de Cyro Martins (1980/2000). Isso lembra Meltzer a respeito da continuidade, sem cesuras, entre realidade interna e realidade externa: "... não vivemos em um mundo, mas em dois; ... também vivemos num mundo interno que é uma esfera vital tão real quanto o mundo exterior" (Meltzer, 1984/1987, p. 41).

Na construção do conto, o estado onírico do personagem que lê o romance evidencia-se pelo uso, em três oportunidades, do verbo "deixar": "... deixava-se interessar lentamente pela trama / deixou que sua mão esquerda acariciasse, de quando em quando, o veludo verde / deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e movimento".

Desde o início do conto, Cortázar constrói pistas a respeito do que está acontecendo: o personagem/leitor do romance retoma a leitura logo depois de "discutir com o capataz uma questão de parceria". De que parceria está falando? Dos campos que cercam a fazenda ou da mulher? Logo a seguir, o personagem/leitor retoma o livro "de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de intromissões". Mal sabe ele que essa intromissão ocorrerá pouco tempo depois, quando o amante/assassino o surpreender durante a leitura. Pois, enquanto lê um romance sobre traição e assassinato, outros dois personagens tramam sua morte, num diálogo que, tal como a perversa leitura, corre "pelas páginas como um riacho de serpentes". Depois disso, nossas suspeitas são quase confirmadas pelo "fato" de que os "cachorros não deviam latir e não latiram". Ou seja, o amante/assassino do homem que lê um romance sobre um marido assassinado pelo amante da mulher do homem que lê um romance é conhecido pelos cachorros. Por isso, não latem.

A essa altura, o leitor já está esquecido de que tudo é, apenas, tinta sobre papel. Nada aconteceu, a não ser que estávamos lendo um conto de Cortázar. Por via das dúvidas, se estivermos de costas para a porta, é melhor olharmos para trás.

No redemoinho de tais pensamentos - capturados pela fusão entre forma e conteúdo -, concluímos: "Continuidade dos parques" também está falando da continuidade da vida psíquica. Não somente entre os personagens da peça literária, mas entre esses e o seu leitor. Umberto Eco (1968) já falara sobre isso em Obra aberta. Mas, essa, é outra história.

 

A espera da serpente

Em "Continuidade dos parques", Cortázar, logo no título, traz a ideia de comunicação entre duas ficções ou, ainda, entre realidade e ficção, que estará presente durante toda a história. A primeira parte conta o retorno de um homem de negócios à fazenda, capturado pela trama do livro que o acompanha há alguns dias, a ponto de livrar-se dos negócios urgentes para retornar à leitura. Na segunda parte, é apresentada a história dos amantes que planejam detalhes de um assassinato. Inicia o entrelaçamento dos dois mundos: exatamente a história que prende a atenção do leitor-personagem.

O homem de negócios busca o conforto da poltrona de veludo verde, para viver os últimos capítulos daquela história. A possibilidade de ser interrompido seria o motivo de sentar-se de costas para a porta? Ou tal atitude revela um sujeito solitário, desligado de seu mundo, numa casa vazia? Estaria ele tão absorvido por sentir-se parte do enredo? A menção da possibilidade de ser interrompido poderia estar relacionada a uma espécie de antecipação do final. Deixando-se levar pela ficção, ao mesmo tempo em que acariciava o veludo e sentia os cigarros à mão, certificando-se de ainda estar neste mundo. É parte da ficção, mas também da realidade que se confunde com o leitor, chamado a participar ativamente.

O gozo do prazer perverso ao afastar-se daquilo que o rodeava talvez fosse o triunfo por testemunhar o último encontro na cabana. Não importando que fosse o seu fim, desde que fosse também o fim daquela trama que tanto o consumia. O parque dos carvalhos, onde dançava o vento, que dá uma ideia de tranquilidade, permitindo ao leitor sentir-se passivo e fora da ficção, é o mesmo bosque que esconde o segredo dos devassos. Sangue, punhal e amantes transformam-se em um só: carícias são rechaçadas, aquele não é mais um encontro amoroso, mas de cúmplices de um assassinato. O diálogo corre como um rio de serpentes, numa referência ao mais primitivo levado à ação. Das profundezas emergem o mal, a traição, o veneno. A morte como parte de um destino já traçado em que o leitor/personagem aguarda passivamente na poltrona, por negar, quem sabe, ser seu o corpo que necessitavam destruir.

Separam-se os amantes, que seguem por caminhos opostos. Juntam-se dois mundos diferentes num mesmo tempo. O entardecer para um, enquanto para outro começa o anoitecer. Formas diferentes de sugerir que as ficções se entrelaçam, pois a hora é a mesma.

Tudo ocorre conforme o planejado, e a mulher se faz presente na recordação do assassino: uma sala azul, logo uma varanda e uma escada atapetada... no alto duas portas. Não está na primeira nem na segunda. Uma possível referência a não estar em nenhum dos dois mundos, já não é o do leitor, nem o dos amantes. A porta do salão... quem sabe no lugar onde ambos se unem.

A poltrona de veludo verde guia-nos de volta ao início, levando-nos a perceber que quem morre está lendo o livro. Espectadores e ao mesmo tempo cúmplices, pois sabíamos antes de acontecer.

Cortázar convida o leitor a ser ativo, a construir com ele a história. Revela, na trama, os amantes. Não faz, contudo, qualquer menção de que seria ela a esposa do homem de negócios, nem tampouco de que ele fosse casado. Também leva o leitor a matar o personagem em suas construções, ainda durante a leitura, tornando-o coautor. Essa é a magia que prende a respiração do leitor impactado pelas histórias que não apenas se entrelaçam, mas se tramam de tal modo, que começo e fim, leitor e personagem se confundem.

 

Comentários e considerações finais

Ler o conto no grupo e escrever sobre ele, levado por suas sensações e sem saber o que o colega priorizaria, foi uma experiência tocante. O mais enriquecedor foi constatar que cada enredo se tornou único, como um rio que toca um ou outro ponto para em seguida abrir um novo caminho. A singularidade das distintas mentes produzindo novas histórias instigadas por uma única.

Quando, graças a um estímulo, se dá oportunidade a pensar e deixar a mente fluir, o escritor percebe que não se põe no que escreve, mas se encontra no que escreve: a "Continuidade dos parques" entrelaçou ideias. Nossas mentes entretecidas pela tarefa, pelo texto, pelo desejo de expressão. Aqui não existe aquele que lê separado daquilo que lê.

Quando, novamente reunidos, na leitura dos ensaios, ficaram claros pontos divergentes como, por exemplo, a imagem dos carvalhos, que, para uns, simbolizavam angústia em uma cena sombria carregada de obstáculos e, para outros, um ambiente tranquilizador. Predominaram, entretanto, as convergências. Por exemplo, a poltrona de veludo verde como um local continente.

Outro aspecto importante, enfatizado por quase todos, é a relação do conto com o mundo onírico, em que não fica claro o que é sonho do personagem lendo um romance e o que é vigília do leitor/personagem que lê um romance.

O texto provoca uma desacomodação. São duas histórias paralelas, nas quais ficam evidentes os pares de opostos, realidade/ficção, sonho/vigília, interno/externo. O parque de carvalhos, onde dançava o vento, permite ao leitor sentir-se passivo e de fora, mas é o mesmo parque que esconde um segredo, criando o tom agressivo em que amante, punhal e sangue se transformam em um só.

Esse conto nos faz mergulhar num jogo de olhares, em que há o prazer de ver sem ser visto, instigando o sabor do proibido presente na paixão dos amantes. Muito se especulou, imaginou, sonhou, mas ficam ainda muitos questionamentos. Seria esse narrador um homem solitário? Desligado de seu mundo? Viveria numa casa vazia? Buscaria ele o aconchego na poltrona de veludo verde? E seus cigarros o fariam sentir-se acompanhado, menos só? Realidade e ficção se entrelaçam.

Cortázar, ao mesmo tempo em que conduz o leitor a ser cúmplice, também o leva a matar o personagem em suas construções, durante a leitura, tornando-o coautor. Sendo essa a magia do conto, que prende a respiração do leitor, impactado pela história em que começo e fim, leitor e personagem se fundem e confundem, instigando a curiosidade de seguir lendo e, espera-se, compreendendo que é um conto, apenas um conto.

A riqueza de lançar olhares diversos para um conjunto de palavras distribuídas em diferentes parágrafos, que parecem ser apenas tinta sobre papel, amplia o texto e os leitores. Ganhamos todos. Assim, a "Continuidade dos parques" reflete sua beleza no campo sensorial e observador de cada um dos autores. De um ponto de vista, a unidade é entendida sob a perspectiva do mundo interno e externo. De outro modo, a unidade parece ser a da mãe-bebê. A seguir, a unidade entre analista e analisando. Para outra leitura, parece ser a união entre dois amantes e um leitor voyeur.

Já comentamos, no início, que os diversos capítulos desse ensaio foram escritos com independência, de modo que nenhum dos autores influenciasse ou tivesse seu pensamento influenciado pelas impressões dos colegas. Em função disso, torna-se importante destacar as confluências presentes em vários pontos. A principal delas prende-se às referências, em todos os capítulos, à participação do leitor do conto. Não o leitor/personagem, mas nós, leitores reais propriamente ditos. Iniciando com a "desacomodação" em nós provocada pelo texto e o modo pelo qual nos tira da leitura passiva, empurrando-nos, quase numa vertigem, para dentro da trama que se desenrola em um campo sem limites entre realidade e fantasia, sonho e vigília. Essa participação ativa na leitura acontece ao nos tornarmos "leitores de um leitor", lendo uma pessoa que lê. Como existe um leitor no conto, nós, leitores do conto, estamos lendo o mesmo pelo olhar do outro, do leitor/personagem. Essa, talvez, a mais impressionante originalidade do conto de Cortázar. Tornamo-nos "... um leitor cúmplice e partícipe", e nosso fim, como leitores, coincide com o final da leitura do conto. Assim como o leitor/personagem se deixa penetrar pelo conto, sendo possuído por ele, também nós, leitores propriamente ditos, tornamo-nos coautores do romance ao imaginarmos as diversas alternativas possíveis para a compreensão da trama que acontece. Inicialmente na frente de nossos olhos. Depois, dentro de nós.

Importante sublinhar que, em todas as leituras dos autores do presente ensaio, há essa referência ao envolvimento do leitor. Sabemos, desde a Obra aberta, de Umberto Eco, do papel do leitor na construção do texto de um livro. Acontece que, no conto de Cortázar, somos quase forçados a estar dentro da trama e fazemos parte dessa continuidade para a qual o título nos alerta. Alguns dos autores chegaram a referir o susto que o conto provoca e, num chiste muito significativo, sugerem que não o leiamos de costas para uma porta ou recostados em uma poltrona de veludo verde.

Os textos produzidos com base no conto "Continuidade dos parques" não deixam dúvida quanto ao sucesso de Cortázar em desacomodar seu leitor, comprometendo-o com a leitura e convidando-o a construir com ele a história. Os que conhecem o autor sabem que para ele a literatura é um jogo em que leitor passivo não tem vez.

A analogia de dois mundos, ou duas ficções, com mundo externo e mundo interno é muito apropriada, porque esses mundos estão em constante troca. Abertos a comunicação, assim como os parques. E é frequente a confusão entre realidade externa e interna, o que de fato aconteceu e o que é sonho ou fantasia. O que é o leitor personagem e o que é o leitor coautor, que se põe na história a ponto de temer olhar para trás. Pode ser atrás da poltrona de veludo verde ou atrás de quem lê o conto. Relacionar com a sessão analítica faz pensar que quem está atrás do divã também é temido inicialmente, não por ser assassino, mas por revelar ao paciente o que ele muito se esforçou para deixar no bosque/inconsciente. O rio de serpentes também pode ser pensado como as pulsões mais primitivas. No conto, surge nos amantes que partem para o ato, a fim de darem cabo aos obstáculos. Pensar nos carvalhos como defesas faz muito sentido, porque ora são parques tranquilos, ora é o bosque, que pode ser escuro e assustador como quando as defesas se rompem e é necessário deparar com o desconhecido.

"Continuidade dos parques" deixa a quem lê a ideia de movimento, tanto de um parque a outro, quanto da vida que segue. Vida na ficção, vida na realidade, vida psíquica.

 

Referências

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Recebido em: 2/5/2017
Aceito em: 4/9/2017

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