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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017

 

RESENHA

 

Reflexões teórico-clínicas em psicanálise

 

 

Yone Vittorello Castelo

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. yone.castelo@gmail.com

 

 

Autor: Antonio Sapienza
Editora: Blucher, São Paulo, 2016
Resenhado por: Yone Vittorello Castelo, São Paulo

Assim como um organismo pode adoecer, definhar, porque em sua química falta um determinado elemento, uma matéria de vida, uma vitamina, da mesma maneira talvez nossa economia de vida, organismo de nossa sociedade esteja necessitando urgentemente deste algo indispensável, deste elemento Schiller.1
(Thomas Mann, 2011)

O livro Reflexões teórico-clínicas em psicanálise oferece ao leitor vários níveis de contribuições em sua leitura: uma que vou chamar de vertical, em que o leitor encontrará uma vasta gama de referências às teorias psicanalíticas realizadas pelo autor no percurso de seu ofício como psicanalista. Nesta dimensão, essas referências se prestam não só como um guia bibliográfico valioso, como também pela correlação dos vários conceitos de diferentes teorias acerca dos fenômenos da realidade psíquica, objeto da psicanálise.

Na dimensão que vou chamar de horizontal, as correlações que se apresentam entre as diversas teorias psicanalíticas revelam a procura de expansão para o alcance dos referidos fenômenos, que demonstram a liberdade de pensamento do autor, aliada a sua intensa disciplina científica.

Como se trata de textos escritos pelo autor durante um período de 35 anos de experiência como psicanalista, nessa dimensão de leitura a contribuição valiosa é o acompanhamento do percurso de sua expansão teórico-clínica. Esta expansão, entretanto, não se dá apenas na linha do tempo cronológico. Em cada texto, ou mesmo da perspectiva de um foco conceitual teórico, revela-se o seu pensamento associativo acerca dos fenômenos do mundo mental por diversos vértices, como em um prisma, configurando-se uma rede associativa valiosa, resultado do exercício dedicado à função de pesquisa na busca de conhecimento.

Assim, a própria obra tem como qualidade básica o movimento de expansão, o que a torna "realização" das proposições do autor em suas Reflexões teórico-clínicas em psicanálise. Assim, coerentemente com seu título, a obra é resultante de reflexões cujo significado é investigar, sem nenhum tipo de preconceito ou de pré-conceitos, em que a atitude de base é questionadora e autônoma para que se configure um conhecimento do que é investigado. E, como são reflexões, a cada capítulo a ênfase se dá na proposição de abertura do conhecimento na dimensão teórico-clínica. Esta qualidade consequentemente se apresenta nas experiências clínicas ilustrativas das realizações teóricas psicanalíticas, no rastreamento teórico advindo da receptividade do autor às várias contribuições das teorias psicanalíticas e nas articulações com as artes, com base em seu próprio acervo cultural.

No primeiro capítulo do livro, "Uma contribuição ao estudo psicanalítico da depressão psicótica", de 1977, destaco um grupo de conceitos, correndo o risco de simplificação, que será desdobrado em sua complexidade no restante da obra: dimensões psicóticas e não psicóticas da personalidade, mudança catastrófica e mudança criativa, que se manifestam na experiência clínica. Nesse texto há um conjunto de reflexões e proposições sobre as experiências clínicas expressivas do "sistema que tende ao fechamento em si mesmo ... onde a entropia cresce", referindo-se às dimensões psicóticas e aos recursos demandados na dupla de trabalho psicanalítico destinados à busca de abertura, isto é, das dimensões não psicóticas e da mudança catastrófica para a mudança criativa.

Uma das contribuições valiosas do autor é a chamada de atenção do psicanalista em sua função para as "modulações" do que se manifesta na experiência clínica, entre as qualidades de pensamento da dimensão psicótica e aquelas da dimensão não psicótica, das posições esquizoparanoide e depressiva. Esta é uma das contribuições dentro de um conjunto de textos em que o autor aborda os requisitos para a função psicanalítica, como nos capítulos sobre o trabalho de "sonho alfa" do psicanalista na sessão: intuição-atenção-interpretação; reflexões clínicas sobre uso e manutenção da função psicanalítica; compaixão, tolerância à frustração e capacidade de pensar a experiência emocional da sessão analítica.

As nomeações "modulação", "sistemas fechados" e "abertura" são condensações de uma gama de conceitos teóricos presentes em todos os capítulos, que o autor aborda em sua complexidade e que abrangem tanto o desenvolvimento da própria psicanálise, do psicanalista em sua função, como da proposição do desenvolvimento emocional na experiência clínica que é focada na dupla.

Destaco como ilustração dessa procura de "abertura", marca das Reflexões, as conferências (1991/1993) sobre os "Dois princípios do funcionamento mental" (Freud, 1911). Nestes trabalhos, com base em Freud, o autor vai desenvolvendo sua proposição de que esse texto freudiano, escrito concomitantemente com "O caso Schreber" (1911), trata de investigação metodológica e técnica na abordagem das manifestações psicóticas. Sapienza articula os dois conceitos de "princípios" (leis ou regras, algo que é de base, de início), de como a mente funciona: na ausência de capacidade de retardar descargas (fantasias inconscientes estimuladas pela realidade externa) dentro do espaço mental, configura-se a psicose, enquanto a capacidade de retardar descargas "tem basicamente a ver com a capacidade de pensar". Ao apontar a "psicose", sempre com base em Freud, o autor não segue a linha do mestre, que afirmava não haver transferência na psicose. Propõe que a transferência existe, porém, diferentemente de como se dá na neurose, requerendo instrumentalização diversa e específica no nível da técnica. Reconhecendo que Freud não sistematizou os fatores que configuram a psicose, recupera em "Luto e melancolia" (1917) a referência ao superego, que é objeto interno e de introjeção, tendo sido posteriormente desenvolvido pelas teorias kleinianas.

Quando se refere à capacidade de pensar, Sapienza assinala que para Freud se tratava de uma função de ego, enquanto para Bion, que posteriormente ampliou esta proposição, os pensamentos primitivos existem para serem pensados. Conclui o autor "que o fracasso nessa capacidade de pensar vai nos colocar em outras dimensões de realidade interna e externa" (p. 83).

Nesses trabalhos evidencia-se a expansão teórica reflexiva do autor com base no texto de Freud: ao enfocar os fatores que levam aos chamados sistemas fechados e aqueles que propiciam abertura, estes são apontados como

dependendo da reserva de pensamentos e sentimentos inconscientes. No funcionamento psicótico, em função da alta violência das situações das camadas primitivas e precoces, há um esvaziamento exatamente dos conteúdos sem os quais não é possível sonhar, ter atividade de pensamento consciente e inconsciente e exercício de todas as funções de ego que se passam em nível inconsciente (p. 157).

No capítulo "Reflexões clínicas", sobre o uso e manutenção das funções psicanalíticas, de 1999, essa questão é abordada com o emprego do "modelo de mente", seus níveis e estados, e aí é proposto o ofício do psicanalista e do psicoterapeuta como algo que tem uma íntima ligação com a maiêutica. Esta ligação aponta para a busca de promoção da mente aprisionada (níveis autísticos e narcísicos). No segundo tópico, a função do psicanalista como arqueólogo, há uma proposição interessante, de uma arqueologia de camadas catastróficas. Nesta proposição, Sapienza aponta o fato de que "uma grande parte das resistências em clínica psicanalítica visa a evasão de contato com mudanças catastróficas" (p. 256), quando, então, nos apresenta um paralelo entre o texto "Construções em análise", de Freud (1937), e as proposições de Bion sobre os desastres primitivos presentes no mundo mental.

No tópico "Metodologia psicanalítica", revela-se a coerência mantida pelo autor no enfoque de suas reflexões, quando, com base na proposição sobre a maiêutica, destaca três funções mentais do psicanalista visando a

ampliação do contato com áreas de mudanças catastróficas na busca de soluções criativas e realistas no decorrer da experiência emocional da sessão: compaixão no consentimento à dor mental, tolerância à frustração e reverie do analista, capacidade de pensar e preservação do método psicanalítico. (p. 259)

Vários textos são dedicados aos recursos necessários ao psicanalista no exercício de sua função, como, por exemplo, nos capítulos "Reflexões psicanalíticas sobre tantalização dos vínculos", "O trabalho do sonho alfa do psicanalista na sessão (intuição, atenção e interpretação)", "Compaixão à dor mental", "Tolerância à frustração" e "Capacidade de pensar na experiência emocional da sessão analítica".

A leitura do último capítulo do livro, "Reflexões psicanalíticas sobre 'Bion em São Paulo'", de 2012, nos apresenta o autor, profundo conhecedor da obra de Bion, discorrendo sobre "suas ideias e reverberações atuais suscitadas pela leitura das Primeiras conferências brasileiras, realizadas pelo dr. Wilfred R. Bion em sua primeira visita a São Paulo, em 1973" (p. 423). A atenção ao termo "atuais" revela a posição de permanente busca de "reflexões", em movimento que testemunha postura coerente com várias proposições no decorrer da obra: o perigo da ossificação da psicanálise e do psicanalista, a abordagem do conceito de capacidade negativa e, citando Bion, "o vir a ser psicanalista" (p. 170).

Recorrer à geometria espacial para apresentar esse livro, nas suas linhas verticais, horizontais, em prisma e no "elemento Schiller", foi o recurso que encontrei para expressar a complexidade que se mostra nessa obra e os movimentos que vão se configurando, ora focados na função do psicanalista, ora nas referências teórico-clínicas, ora nas articulações ilustrativas que ocorrem nas associações com as artes, advindas do acervo cultural do autor, e resultando em um todo harmonioso, coerente e estimulante que é oferecido ao leitor pelas Reflexões.

E se, como diz Thomas Mann, o "elemento Schiller" é indispensável, essa obra é uma realização desse elemento em psicanálise: a composição do valioso conhecimento teórico do autor conjugado a sua sensibilidade, resultando em uma proposição de permanente vitalidade criativa.

 

Referências

Mann, T. (2011). Quarta capa. In F. Schiller, Educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras. (Trabalho original publicado em 1793-1795)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/9/2017
Aceito em: 8/10/2017

 

 

1 Este elemento Schiller refere-se ao impulso lúdico, conceito trazido pelo poeta Friedrich Schiller em suas cartas de Augstenburg, publicadas no livro Educação estética do homem, 1793-1795, que se refere à composição do impulso formal e da sensível atuação conjunta da razão e da sensibilidade. Quando um não se sobrepõe ao outro, conjuga-se no lúdico, no sentido do jogo, cujo objeto é a forma viva. Isto é, a resultante da composição entre o objeto do impulso sensível que é a vida e o do impulso formal que é a forma.

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