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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Celso Antônio Vieira de Camargo

Editor Associado. celsovieira@uol.com.br

 

 

We are such stuff as dreams are made on,
and our little life is rounded with a sleep
(Shakespeare, A tempestade, ato IV, cena I)

O atual número do Jornal de Psicanálise dedicou-se ao tema pesquisa, área em que tem surgido quase como um correlato inevitável a avaliação de resultados. Inicialmente, todo o progresso que foi feito em nossa área surgiu com base na observação das situações que se desenvolviam dentro do setting analítico, criando-se sobre esta base o nosso arsenal teórico. O estudo de caso constituiu-se na mola mestra do desenvolvimento da psicanálise. Desde Freud, todos os principais autores construíram a psicanálise apoiados na observação dos fenômenos emocionais que se desenvolviam entre analista e analisando, e do analista consigo próprio. Com a ampliação do alcance e das possibilidades que a psicanálise oferecia, contudo, e com o desenvolvimento de outros recursos de "tratamento", vem sendo cobrada à psicanálise a avaliação de resultados, em termos quantitativos.

O assunto constitui um grande desafio quando tratamos da vida psíquica. Afinal de contas, todos ficamos de acordo em que a vida mental não se pesa, não se mede, tem características que mais a aproximam do sonho do que de algo que possa ser representado sensorialmente. A apreensão da realidade psíquica se faz de maneira efêmera, instantânea e fugaz, tal como acontece com os sonhos. Como poderemos avaliar o desenvolvimento em um trabalho de psicanálise, a não ser de maneira muito subjetiva? Para o psicanalista, algumas situações que poderiam caracterizar a ausência de sintomas podem representar um empobrecimento mental, já que certas melhoras em que ocorre apenas uma adaptação ao mundo exterior não necessariamente representam um progresso psíquico. Além disso, há momentos num trabalho psicanalítico em que uma piora da sintomatologia pode corresponder a um maior contato com a realidade psíquica. Afinal, é o que Bion põe em destaque ao abordar o conceito de "mudança catastrófica". Nada poderia estar mais longe dos critérios sensoriais de melhora quando vistos do ponto de vista da realidade sensorial.

No entanto, como enfatiza Mark Solms, na sua entrevista, esse desafio se põe para a nossa prática. Somos pressionados pelos seguros de saúde, pela psiquiatria e pela classe médica, de maneira geral, a mostrar resultados. Mais problemático ainda é, como ele nos diz, quando o progresso é medido por pessoas e critérios que não levam em conta o desenvolvimento emocional. Como podemos medir o aumento de percepção e de sabedoria que um trabalho analítico bem feito traz? Acrescento ainda, o que é mais complicado para o observador comum, com pouco acesso à realidade psíquica, isto às vezes envolve contato com mais sofrimento. Para a prática clínica, não surgem grandes dificuldades. Para a pessoa que sofre, pouco importam as considerações metodológicas ou os dados estatísticos. É maior o significado se o trabalho psicanalítico se ocupa de assuntos que dizem respeito à vida. Afinal de contas, como diz Shakespeare, é entre esse breve intervalo entre nascer e morrer que se inicia e termina a eternidade para cada um de nós.

É interessante perceber que, segundo Solms, a psicoterapia psicanalítica tem "robustas evidências de eficácia terapêutica". Isto apesar de termos ficado de fora desse debate, cujo centro acabou ocupado pela Terapia Cognitivo-Comportamental.

Parece que, a julgar pela preocupação do setor de pesquisas da IPA, esses resultados não ficam evidentes nas análises de frequência elevada e duração mais prolongada, possivelmente pelos critérios usuais de "melhora, eficácia terapêutica", ou talvez mesmo pelos poucos casos em que temos a possibilidade de trabalhar nessas condições. Penso que isso deve representar um alerta para todos aqueles que pretendem diminuir o tempo de análise e o número de sessões durante o período de formação, pois é nesse momento da formação que a psicanálise pode e deve ser exercida na sua plenitude. Na prática de consultório, creio que isso acontece menos, pois a vida moderna impõe restrições de tempo e dinheiro, aliadas ao uso de remédios eficazes na eliminação de sintomas, mas que não ajudam no desenvolvimento pessoal. Os antidepressivos podem melhorar a depressão, mas nada dizem sobre como dar sentido à vida.

Na nossa vida, importa perceber se estamos nos aproximando daquilo que é essencial em nossa prática clínica, que é a aproximação à verdade psíquica, ou um movimento em direção a essa verdade. Há aqui uma suposição básica, de caráter intuitivo, que a verdade é essencial para o desenvolvimento da vida. Mesmo que o(a) analisando(a) pouco possa fazer com relação a certas limitações pessoais, inevitáveis em nossa natureza humana, é essencial que ele(a) possa se conhecer e ter consideração mesmo para aquilo que cada um possa considerar como "defeitos". Seria desejável, embora nem sempre aconteça, termos a capacidade de ser gratos, como diria Melanie Klein, à possibilidade única de termos tido a possibilidade de "existir", principalmente quando esse existir vem acompanhado do sentimento de "ser". É difícil medir esse tipo de qualidade no contato com a vida.

O desafio, no entanto, está lançado.

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