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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

PESQUISA PSICANALÍTICA

 

Vicissitudes da observação e dos sonhos na prática clínica

 

Las vicisitudes de la observación y de los sueños en la práctica analítica

 

Vicissitudes of the observation and of dreams in analytical practice

 

Les vicissitudes de l'observation et des rêves dans la pratique analytyque

 

 

Maria Aparecida Angélico Cabral

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. cabral-lecy@uol.com.br

 

 


RESUMO

Neste artigo, pretendo compartilhar a aventura clínica com Aviva e as memórias afetivas evocadas. É uma situação complexa. Leva-se tempo para observar os movimentos internos de um paciente – uma relação tão delicada! A experiência de observar um bebê e a repercussão na vida pessoal e profissional da analista são explicitadas, o que auxilia na compreensão da realidade psíquica de Aviva. Foi a partir do telefonema na madrugada, ao compartilhar sua ida à maternidade, que sonhos e recordações são lembrados. Reflexões são elaboradas sobre a situação integradora apresentada por uma tribo na África como um forte fator para facilitar o desabrochar da mente. Trata da observação de uma tribo tão primitiva com requintes de um ateliê de joias preciosas.

Palavras-chave: observação, relação mãe-bebê, sonho, vozes da alma, depressão


ABSTRACT

In this article I intend to share my clinical journey with Aviva and the emotional memories it evoked. It is a complex situation. It takes time to observe the internal movements of a patient, such a delicate relationship! The experience of observing a baby and the repercussions in the private and professional life of the analyst is described in order to help understanding Aviva's psychic reality. It was an early-morning call to share her going to the maternity that evoked dreams and memories. Reflections are elaborated about an integrated situation by a tribe in Africa as a strong element to facilitate the awakening of the mind. The observation of such a primitive tribe with the luxury and refinement of an atelier of precious jewels!

Keywords: observation, mother/baby relation, dream, voices of the soul, depression


RESUMEN

En el presente artículo, pretendo compartir la aventura clínica realizada con Aviva y las memorias afectivas que han sido evocadas. Se trata de una compleja situación que lleva tiempo para observar los movimientos internos de un paciente, o sea, ¡una relación sumamente delicada! La experiencia de observar a un bebé y la repercusión en la vida personal y profesional de la analista es puesta de manifiesto, lo que ayuda a comprender la realidad psíquica de Aviva. Se ha dado a partir de una llamada telefónica en una madrugada, al compartir el traslado a la maternidad, y se han hecho presentes los sueños y recuerdos. Se elaboran reflexiones al respecto de la situación integradora presentada por una tribu en África como un fuerte factor para facilitar la apertura de la mente. Se trata de la observación de una tribu tan primitiva con rasgos de un atelier de joyas preciosas.

Palabras clave: observación, relación madre-bebé, sueño, voces del alma, depresión


RÉSUMÉ

Dans cet article, mon intention est de partager l'aventure clinique avec Aviva et les mémoires affectives évoquées. La situation est complexe; il faut du temps pour observer les mouvements internes d'un patient – une relation tellement délicate! L'expérience d'observer un bébé et sa répercussion sur la vie personnelle et professionnelle de l'analyste est explicitée dans le but d'aider à comprendre la réalité psychique d'Aviva. C'est à partir de l'appel téléphonique à l'aube, et en partageant son allée à la maternité, que des rêves et des souvenirs sont rappelés. Des réflexions sont élaborées sur la situation d'intégration présentée par une tribu en Afrique avec un facteur facilitateur important pour le réveil de l'esprit. L'observation d'une tribu si primitive exige les raffinements d'un atelier d'artisan joaillier.

Mots-clés: observation, relation mère-bébé, rêve, voix de l'âme, dépression


 

 

Não vou desistir da luta mental!
Nem permitirei à minha espada dormir na minha mão,
Até que tenhamos construído Jerusalém
Nas paragens verdes e deslumbrantes da Inglaterra...
(W. Blake, 1907, p. XIX)

 

Introdução

Neste artigo, pretendo compartilhar a aventura clínica com Aviva e as memórias afetivas evocadas. Um mergulho na intimidade de uma dupla e a busca incessante de palavras que representem as vozes da alma, do analisando e da analista. Impacto: impressão ou efeito muito fortes deixados por certa ação ou acontecimento (Koogan/Houaiss, 1997).

Processo analítico, situação complexa: leva-se tempo no processo de observar os movimentos internos de um paciente para a escuta de seus sonhos, para a tessitura dessa relação tão delicada. Leva-se tempo até que as ideias se sedimentem, que dirá para escrevê-las!

Em psicanálise, quando no aproximamos do inconsciente ... estamos certos de ser perturbados, [pois] ... [nesta situação] duas pessoas ousam fazer perguntas sobre aquilo que esqueceram e sobre aquilo que não sabem, e devem, ao mesmo tempo, ser capazes de viver no presente. O resultado é que se tornam mais fortes. (Bion, 1975, pp. 15 e 17)

Na nossa jornada passeamos por diferentes definições de impacto. Inicialmente, algo metido à força, impelido, ato ou efeito de impactar, chocar; colisão de dois ou mais corpos, com existência de forças relativamente grandes durante um intervalo de tempo muito pequeno (Koogan/Houaiss, 1997), e, delicadamente, as palavras passam a ganhar sentido para além da ação.

Recorro ao trecho das lavadeiras de Angústia, de Graciliano Ramos:

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer... depois enxáguam, dão mais uma molhada... Somente depois de tudo isso é que dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever deveria fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (2003, p. 13)

Foram muitas as lavadas e enxaguadas até alcançar a forma atual deste texto, diante dos impactos e das mudanças na relação analítica.

 

Arte de observar: a poética de uma mente

Descubro que minha atitude de "observar" foi despertada há muito tempo, desde a infância. Admirava a revoada de pássaros que, nas manhãs, invadiam, cantarolando, o bosque da casa de meus avós, e eu, sempre antes de começar minhas atividades, ia alimentá-los e apreciar a beleza de suas cores, das penas, dos ovos que chocavam. Talvez naquelas manhãs ensolaradas se urdissem meus sonhos.

Nos idos dos anos 1980 tive a agradável surpresa de conhecer o trabalho de Marisa Mélega (analista didata da SBPSP e coordenadora do curso de observação de bebês). Iniciei o curso de observação de bebês e acompanhei um bebê desde a saída da maternidade até cerca de 2 anos de idade. Essa experiência foi uma descoberta preciosa e estimulante que possibilitou a busca por novos caminhos em minha vida.

O método de observação foi criado por Esther Bick, em 1948, como uma forma de aumentar a capacidade de observação de pessoas interessadas no desenvolvimento infantil. Na época nem imaginava tornar-me uma analista. Essa experiência proporcionou-me, além do aprendizado teórico, a apreensão da realidade psíquica da dupla mãe-bebê e dos meus movimentos internos.

Foi durante a observação de um bebê que, qual o fio de Ariadne, penetrei no labirinto da minha própria mente e ampliei a visão do meu mundo interno. Encontrei-me ante uma tarefa de grande intensidade emocional quando, de uma maneira estética, pude me entregar à leitura "dos ideogramas que envolviam o entender da alma".

Iniciei a experiência despida de quaisquer teorias e pude tão somente observar. Não sabia aonde chegaria e me deixei impregnar por essa realidade sensível. Destarte desenvolvi uma escuta mais apurada, a capacidade de conter e tolerar frustração e impotência. Propiciando um outro olhar, uma abertura para novos sentidos.

Tamanha atmosfera emocional diante do desconhecido provoca ressonâncias que ecoam de formas diversas: por meio de sons, cores, mensagens verbais e não verbais. O não saber mobiliza angústias primitivas na relação mãe-bebê e na observadora.

A observação auxilia-nos a levar em consideração fatores invisíveis e, por vezes, imperceptíveis ao nosso alcance, que, quando revelados, transformam nosso entendimento sobre o funcionamento do paciente; "é uma descrição adequada, que abrange uma experiência que sentiu estar apoiada por todos os sentidos, sem desarmonia" (Bion, 2000, p. 24). Servem como faróis que trazem luz à relação da dupla. A observação da relação mãe-bebê iluminou o caminho e me ofereceu a oportunidade de desenvolver uma compreensão da psique infantil.

Atualmente percebemos a validação do método de investigação em psicanálise na neurociência, que comprova aquilo que observamos alhures no cotidiano da clínica. O aprendizado de psicanálise com base no método de observação de Esther Bick valoriza a qualidade do espaço mental do pesquisador da mesma área. Para Walter Trinca essa qualidade é determinante na relação com seu objeto de pesquisa:

A qualidade e o nível de consciência do pesquisador em Psicanálise definem quão abrangente ou quão estreito é o contato que ele estabelece com seu objeto de estudo ... a apreensão de fenômenos sutis em Psicanálise exige uma abertura para níveis de contatos profundos com eles ... Uma mobilidade no espaço mental correlativa à própria mobilidade do fenômeno ... quando há mobilidade psíquica, geralmente ocorrem a emergência e a localização do foco ou focos nodais. Ou seja, no emaranhado dos dados antes dispersos sobressai o fato selecionado tal como foi indicado por Bion. (Trinca, 2002, p. 196)

 

Aviva e seus impactos

Aviva é uma jovem que iniciou a análise aos 17 anos, em 1999. Segunda filha do segundo casamento da mãe, tem uma meia-irmã do primeiro casamento, que mora com a avó desde que a mãe se casou novamente. Àquela época, Aviva cursava o final do segundo ano do Ensino Médio e mantinha a fantasia de que, se o namorado a abandonasse, seria incapaz de dar continuidade às suas atividades intelectuais, sociais e relacionais. Ele era o líder, ele se relacionava, ele tinha turma e ele fazia progressos. Ela, por sua vez, sentia-se incapaz de se situar, não sabia que carreira seguir e percebia-se muito insegura para tomar qualquer decisão. Uma professora da escola encaminhou-a para a psicanálise; procurou-me, sem antes ter falado com seus pais; na ocasião disse que eles não a apoiariam, pois "nem acreditavam em psicólogas".

A jovem encontrava-se às voltas com sua sexualidade e sua escolha profissional. Gostaria de ser líder como o namorado, no entanto, notava os próprios limites, o que a fazia se sentir inferiorizada.

Faltava-lhe um espaço interno, e tais pensamentos saturavam sua mente. Diante desse estado emocional limítrofe, encontrava-se sem autonomia e sem possibilidades de escolha. Comparecia muitas vezes atordoada à sessão. Não sabia o que fazia mais barulho: se seus "ruídos internos" ou o "barulho do rádio". Até chegava a confundi-los.

A turbulência emocional de Aviva inundava a sala de análise. No início eu pouco falava; a sensação era de que uma fumaça inebriava meus pensamentos. Minha função como observadora me guiou como uma bússola – é o que possibilita, até hoje, ampliar a investigação e a compreensão do seu mundo mental.

Fui lentamente tecendo os fios da relação mãe-bebê. As imagens se delineavam em minha mente; Aviva falava de uma mãe impulsiva, explosiva e incontinente, e, algumas vezes, sua fala me confundia: não sabia se era ela ou a mãe, tal a intensidade dos personagens que emergem nos primeiros contatos.

Os pensamentos que afloravam de sua autoimagem conversavam com seus vários personagens. Queixava-se de que os pais não a deixavam sair e que, para agradá-los, tinha de fazer muitos programas em família (pai, mãe, irmã e ela); dizia que os garotos da escola ainda a olhavam como a menininha que usava "capacete" (aparelho para os dentes que a mãe a forçava a usar durante o dia e que a infernizou por dois anos), o que a deixava em várias situações embaraçosas.

O trabalho ao longo desses anos foi marcado por um funcionamento mental no limiar da possibilidade de pensar e não pensar; fato que nos aproximava, em suas dimensões mais primitivas. Bion ressalta:

Quero crer que o dano, que transparece mais na posição depressiva, em verdade teve início na fase esquizoparanoide, ocasião em que as bases do pensamento primitivo deveriam ter sido lançadas, mas não o foram em razão da hiperatividade da cisão e da identificação projetiva. (1994, p. 61)

Aviva, em sua labuta diuturna, buscava sempre a análise como um recurso de combate aos pensamentos e às alucinações que a atormentavam. Ela e eu visitamos vários "recônditos e esconderijos" durante nossa turbulenta viagem. Enfrentamos cisões, deslocamentos, defesas, identificações projetivas, enfim, uma gama de fenômenos que se repetiam e circulavam, tornavam a se repetir e, algumas vezes, retornavam com grande intensidade.

Estados primitivos emergiam diante de mudanças que a faziam penetrar no "labirinto escuro" de sua mente repleta de fantasias horrendas, que a punham diante do próprio desamparo para lidar com a vida. Bion diferencia a personalidade psicótica da não psicótica, observando que:

a primeira depende da fragmentação de parte da personalidade relacionada à percepção das realidades externa e interna. Os fragmentos projetados da personalidade penetram em seus objetos ou os engolfam. Essa observação é um instrumental relevante para a clínica, por ser algo que se pode observar nos primórdios da vida psíquica. Os ataques sádicos ao ego e à matriz do pensamento, em conjunto com a identificação projetiva dos fragmentos, levam seguramente a uma crescente disparidade entre as partes psicótica e não psicótica da personalidade, até que o fosso entre ambas se afigure intransponível. (1994, p. 50)

Aviva temia a invasão que seus sentimentos provocavam, e no "saquinho" que a protegia de suas "alucinações" transparecia a precariedade de sua organização mental. Talvez o fato de suportar suas crises num "saquinho" apontasse para a abertura de um espaço interno ou, ao menos, para a possibilidade de contato com seu mundo mental. Bion (2000) assevera que emoções violentas, em algumas ocasiões, podem dever-se a uma deficiência na capacidade de pensar. O autor refere-se a amor e ódio, pois considera que deles derivam todos os sentimentos. Emoções violentas devem-se, também, a alguma falha na instalação do princípio de realidade, o que pode mobilizar a psique; a ação é usada para descarregar o acréscimo de estímulos, propiciando a expressão física de amor e ódio.

Observando Aviva e as várias nuances do seu funcionamento mental ao longo desses anos, percebem-se a sua fragilidade e também uma falta de consideração para com ela mesma, como também para com o outro. No início, ela não tinha proteção contra impulsos assassinos e suicidas. Lentamente elabora as situações turbulentas e impactantes que ocupavam sua mente devido a sonhos e memórias afetivas.

Aviva sonhava seus restos diurnos, e a analista sonhava o material do paciente. A experiência analítica no aqui e agora fazia emergir uma emoção intensa, representante de seus medos e receios diante do novo.

 

Da articulação teórica ao sonho

Articular a observação clínica requer uma intuição psicanaliticamente bem treinada. A observação propicia a continência e a condição de dar forma ao sonho pela linguagem.

Sapienza (1999) acredita na sensibilidade imaginativa do analista, que está fortemente relacionada à sua capacidade de rêverie, acolhendo e desintoxicando os conteúdos terroríficos que solapam o mundo interno do analisando. Considera que a intuição do analista promove a ampliação do espaço psíquico, possibilitando a expansão das dimensões de tempo e espaço da realidade psíquica, para futuras investigações psicanalíticas.

Ferro (2009) acrescenta que o pensamento onírico como utilizado por Bion é uma brilhante retomada da ideia freudiana. Freud assevera que o pensamento onírico dá continuidade ao trabalho diurno. É resultado de um processo contínuo de alfabetização. O campo analítico possibilita descrever, apreender as emoções e enfocá-las melhor, utilizando os personagens como "luvas para tirar as coisas do forno" – um modo de facilitar a aproximação dos conteúdos incandescentes. O autor diz que este campo é o local para onde convergem as identificações projetivas e introjetivas, as histórias do paciente e do analista. As emoções podem cozinhar num certo grau de temperatura à mercê das transformações narrativas com as interpretações não saturadas... A reação do paciente determina quais ingredientes podem suavizar o tempero do prato.

Trinca afirma que para a pesquisa em psicanálise

a atitude (do pesquisador) advém de desbloqueio, desobstrução, despoluição e dessensorialização da mente. Os focos impõem-se de modo espontâneo na atitude fundamental de deixar-se ir, deixar-se penetrar. Conduzimo-nos livremente em conformidade com os fatos. Isso faz com que sigamos o curso da realidade, com menor perigo de nos esterilizarmos. Cada um de nós poderá viver a experiência com seu objeto de pesquisa e, de certo modo, recriá-lo na experiência. (2002, p. 196)

A tarefa do analista consiste, assim, em perceber a s comunicações conscientes e inconscientes e, ao mesmo tempo, escutar a si mesmo, estar atento às suas reações conscientes e inconscientes, a seus sonhos, fantasias, identificações projetivas e a tudo o que concerne à relação analítica.

 

O sonho

As ideias começam a se decantar.

Sonho com um terreno grande, no qual havia dois espaços: na primeira metade encontravam-se uns prédios com móveis e material de construção. A segunda parte estava livre para um possível reflorestamento. Dou-me conta de que o espaço do terreno era o do bosque da minha infância, da casa de meus avós. Na entrada do bosque encontro duas colegas que solicitam minha colaboração para participar do congresso. E eu continuo meu caminho adentrando o terreno do bosque e me recordo de uma poesia da infância:

Pingo d'água
Pingo d'água
Vai batendo
A noite inteira
Vai rolando tic tac
No mosaico do banheiro
Água mole em pedra dura
Tanto bate até que fura
(Folclore das vivências de Santo Amaro)

Acordo e sinto uma sensação de bem-estar e de uma recordação saudosa: um déjà vu, uma parte da infância querida que não volta mais.

Avalio o simbólico onírico que os dois espaços do terreno ocupavam no bosque da minha mente; esse imenso terreno talvez represente o que, paulatinamente, fez com que surgissem as imagens visuais e o alfabeto em minha mente.

Impactos, transformações, evoluções a caminho de uma compreensão dos sonhos que envolvem o encontro desse par analítico. Um mergulho na intimidade da parceria da analista. Experiências fortemente emocionais, marcantes e mobilizadoras.

As memórias afetivas despertadas requerem um continente com capacidade de rêverie (Grotstein, 2000), como o vinho em maturação necessita de um container resistente, de fina madeira para favorecer o processo, e algumas qualidades são requeridas para isso, tais como perfume, cor e textura.

Os sonhos fermentam e nos oferecem oportunidade para construir e reconstruir, são como pontes de ligação. Indicam a direção que não é dia, não é noite. E podem trazer, no bojo, a condição da simbolização do trabalho onírico, favorecendo a publicação (Freud, 1900/1972).

Pôr em palavras as vozes da alma é como abrir a janela para o sonhar, propiciando um território para uma intimidade respirável. É conjugar constantemente tudo o que vemos e observamos.

Assim, há um retorno aos bosques da infância – como no sonho –, utilizando-se da experiência emocional para as novas construções, e usando-se a outra parte para reflorestar, replantar e fazer retornar o verdor das árvores, para que voltem a vicejar. Há, ainda, outros sinais de vida nessa paisagem onde pássaros e cigarras partem e deixam marcas nas árvores: desse modo sabemos que ali estiveram, após suas transformações. Todas essas sutilezas brotam na relação analista-analisando.

 

Impacto do novo

Domingo

Estou na letargia da penumbra, a observar do lado de lá os sonhos, do lado de cá o real estampado no telefonema que me despertou. Aviva estava quase dando à luz.

Acordei com um sonho, do qual fui despertada pela voz de Aviva ao celular, dizendo: "Desculpe o horário, mas não pude resistir, quero compartilhar que estou com oito dedos de dilatação, indo para a maternidade, vou ser mãe de um menino". Sou tocada pela fala e lhe desejo uma boa hora. Após a comunicação que ela fez na madrugada, tive um ímpeto de ligar para saber se estava tudo bem; senti-me chamada para acompanhar e percebi que tinha de aguardar. Talvez "aguardar" para "preservar" a relação.

Como era ainda muito cedo, adentro na experiência de uma vivência curiosa, um pouco de sonho e um pouco de realidade. Um estado que evoca lembranças do início da minha formação como analista.

Bollas (1998) considera que a pessoa que sonha elabora um núcleo de muitas concepções oníricas (sentimentos, lembranças, observações diurnas, teorias, necessidades somáticas) em imagens condensadas, que formam um complexo de ideias que trabalham simbolicamente para ligar os vários fatores contribuintes dentro de uma estrutura que pode, agora, gerar novos significados.

Para Prochet:

um sonho, para além de algo a ser decodificado, também inclui um enigma. Sonhos são comunicação, são lugar, são tempo privilegiado, não são nem totalmente internos ou externos e riem-se de nossa tentativa de colocar lógica neles. O que importa é o convite implícito no sonhar, o convite ao perguntar, a rebeldia salutar que recusa as formas e acolhe outras formas, por mais inquietantes e desconfortáveis que estas possam parecer, de início. O sonho, como o brincar, é um lugar de possibilidades, nunca sendo um fim em si, mas um convite a experimentar outros começos e onde decifrar um sonho é tão significativo como abster-se de fazê-lo. (2013, p. 23)

Segunda-feira

Recebo um telefonema de Aviva, comentando os momentos de alegria durante o parto e dizendo que não sabia que seria capaz de amar tanto o seu bebê. A ginecologista comentou que ela tivera oito dedos de dilatação sem se queixar de dor, e que poucas mulheres reagiam assim. Vários amigos foram visitá-la, e o marido estava orgulhoso dela.

Aviva experimentava um misto de euforia e depressão: feliz e surpresa por perceber-se receptiva e aberta à vinda do bebê.

Desligamos: meu pensamento viajou e deixei-me encantar pelas suas palavras, com entusiasmo, um estado de mente inusitado no modo de se apresentar.

Recebi sua fala com resguardo. Procurei no dicionário o significado da palavra resguardar, pois o uso dela chamou-me a atenção. E encontrei: "guardar com cuidado, defender, abrigar, pôr a salvo, resguardar de perigos e miséria". A quarentena é também chamada de resguardo. Será que ela não quis dizer que estávamos juntas, apesar da distância, aguardando esse momento?

Achei curiosa a palavra que utilizei para expressar a apreensão do estado mental com que fui tocada, como também a captação das palavras por ela proferidas com alma.

Quarta-feira

Um apelo angustiante: problemas respiratórios levaram Gabriel à uti. Pediu uma sessão, pois ela tivera alta, e o bebê ficara na maternidade.

Chora, não sabe o que ocorreu, e irá no horário da visita falar com o médico. Tem ido ao banco de leite; com dificuldade, o leite sai, e agora sente que secou.

Desamparo, angústia e um terrível medo de perder o bebê.

Falamos dos medos, do "leite que secou", que as lágrimas poderiam secar, mas o leite que guardou para Gabriel estava com ela, a reserva não secou.

O medo da perda provocou uma intensa turbulência interna. Arremessada ao estado paranoide, teme perder-se de si e do bebê. Bion (1994, p. 129) assevera que o termo pensamento refere-se "à união de uma pré-concepção com uma frustração" e que "se a capacidade para tolerar frustração for insuficiente ... leva a que psique se defronte com a necessidade de decidir se foge à frustração ou a modifica".

 

Tornar-se mãe

Aviva entrou na sala falando ao celular com a empregada, dizendo que não conseguia ver, na câmera, o bebê, e indagando se estava desligada (talvez assustada com a separação, a dor que emergia e a persecutoriedade que despontava).

Desligou o aparelho e falou alto ao perceber o cacto: "Nossa! Como o cacto brotou! Ele cresceu demais!" No retorno, surpreendeu-se com a configuração do setting, apreensão que associei a seu crescimento.

Nesse momento, ela podia tocar os espinhos do cacto e perceber que a planta, quando ainda pequena, tem folhinhas que caem quando crescem e são transformadas em espinhos. Será que se dava conta de que os espinhos são parte do crescimento?

Passa a evocar a memória afetiva da mãe. Após tantos anos, comentou, com certas ressalvas, que com o nascimento do bebê passou a entender melhor o jeito da mãe em relação a ela.

Winnicott (1975) fala do olhar, do rosto da mãe como um espelho para seu filho, e que, nesse olhar, a criança encontrar-se-ia e reconhecer-se-ia antes ainda de ver a mãe como outrem. O autor enfatiza a importância que a mãe dá ao bebê, de ele ser o centro do mundo e de ela viver em função dele, o que propicia a base de um desenvolvimento saudável. Lentamente, à medida que o ego do bebê se fortalece, a mãe vai promovendo um estado de progressiva desilusão, e a criança vai podendo ter um senso maior da realidade.

Quanto à mãe, pode desenvolver um estado mental desde antes do nascimento, para ser capaz de estabelecer uma empatia com o bebê para atendê-lo. É um estado da mente que permite a ela pôr-se no lugar do bebê, estar ligada a ele para intuir suas necessidades.

Aviva está ansiosa por entender seu bebê, interpretar cada detalhe, num afã em que se embaralha, se perde, e fica com muito medo. Não consegue ler com seu coração o que Gabriel quer dizer quando chora sem parar, e tem dificuldade de compreender seus gestos e ruídos.

Ela sentia-se tão bem em sua gestação, que parecia não querer saber nada da realidade, alienando-se. Desconhecia o que era a vinda de um bebê. Recordo que, ao longo da gravidez, várias vezes abordamos a árdua tarefa de amamentá-lo e assumi-lo. Essa experiência comovente que se sucedeu ao parto provocou mudanças, e nossos encontros abriam espaço para interlocução.

É no encontro analítico que se constrói a possibilidade de compreensão de quem chega. Filigranas imperceptíveis algumas vezes apontam detalhes importantes no modo da comunicação não verbal. Mencionamos alguns exemplos, como o jeito de entrar na sala, a chave que se esquece de trazer frequentemente, o ritual que utiliza ao deitar-se no divã, como também os sons e ruídos que são audíveis da sala de espera. Os comentários que faz ao chegar e que, no desenrolar da sessão, adquirem tanto um significado contrário ao que comunicou, como também possibilitam a compreensão do não falado. A complexidade do encontro repercute, uma riqueza indescritível.

Food for thought

Gabriel está prestes a completar 1 ano, e as angústias de Aviva em relação a si mesma se intensificaram, às voltas com suas intrigas internas de um tempo em que o barulho do rádio de sua cabeça era maior que o barulho real do rádio do carro.

Assusta-se e indaga se essa regressão é comum após tantos anos em que se sentia não mais recorrer a essa forma de relação consigo mesma.

Conversamos intensamente e comentamos sobre as mudanças despertadas pelo nascimento de seu primeiro filho, Gabriel. Juntas, pudemos observar suas buscas e o modo encontrado para se entender e compreender melhor seu bebê.

Terminamos o relato com um sonho de Aviva: "Sonhei que Flora, cunhada que está grávida, teve o bebê no dia do nascimento de Gabriel. Estava feliz porque era uma menina e chamava-se Camila".

Nasceu Camila, sua sobrinha. Talvez o sonho fosse uma forma de expressão para falar do novo que surgiu na relação dela com o bebê, dela com a analista e com as pessoas com quem convive em suas relações. Após um ano, formula a compreensão de outras possibilidades, talvez germes que brotam em sua mente.

Novamente sou acordada por um sonho: sou surpreendida pela paciente que me faz notar que adormeci na sessão. Sai indignada da sala de análise e, na sala de espera, rasga os jornais, faz alguns desenhos e deixa tudo desorganizado. Ao sair, encontra uma paciente que a acolhe, transforma os jornais desenhados em uma mesa e comenta sobre a minha colaboração, que ela deveria considerar nosso trabalho.

Observo, então, esse sonho. Inicio a busca interna, os elementos e as reverberações das recordações afetivas. A analista adormece e perde a consciência.

Esse adormecer aponta para o medo da analista de se perder, ao mergulhar na depressão – ou estado esquizoparanoide – compartilhada de Aviva. A dupla consegue enfrentar os medos de um terror sem nome e retorna à superfície de modo gradativo, para poder respirar e retomar a relação. Será que a paciente que ela encontrou na sala de espera, que lhe é solidária, não estaria apontando para um outro aspecto de Aviva?

Estaria Aviva ainda impactada diante das sucessivas questões da vida como quando chegou? O sonho da menina não falaria em favor da inveja, e da rivalidade que é inerente à relação entre mãe e filha? Se sim, seria ela capaz de suportar a ambivalência presente em todas as relações humanas?

A possibilidade de transformar os jornais esparramados em uma mesa não seria uma chance de formar um continente? O sonho me leva a refletir sobre o quanto é difícil para o adulto se dar conta das suas reais angústias e do terror diante da cesura do nascimento.

A redescoberta é iniciada dentro do útero, uma aventura perigosa que consiste na vida e na criação de um vínculo com o bebê: uma guerra mental começa entre o que é selvagem e o que é civilizado.

Lentamente, ao longo dos 15 anos, fomos esculpindo nossa relação. Henry Moore comenta sobre o esculpir na pedra, em que é necessário saber como tocá-la com o cinzel. É a importância, no trabalho como analista, de saber tocar a alma com delicadeza e precisão.

O texto é pretexto para tornar público um sentimento despertado com a descoberta da paixão de observar, da observação do caso clínico e dos sonhos.

Na epígrafe, Blake, defensor incondicional do humano, escreve por meio de versos, iluminuras e desenhos, e então deparo com um labirinto. E nele não encontro um Minotauro, mas uma teia poética e visual, cujos fios me conduzem a uma outra dimensão de compreensão do autor que, acima de tudo, me serve de fonte de inspiração; estímulos emocionais em busca do meu mundo interno, despertando conjecturas imaginativas à procura dos significados que pude ir tecendo ao longo do encontro.

 

Abertura para um ateliê

Inicio, agora, a abertura para um novo espaço.

A leitura da Introdução do trabalho de Maria Cecília Pereira da Silva oferece-me a oportunidade de observar a situação de certa tribo, que mantém uma intimidade encantadora entre seus membros e suscita reflexões nos caminhos da mente.

Seria tal situação integradora um forte fator para facilitar o desabrochar da mente? A observação de uma tribo tão primitiva com requintes de um ateliê de joias preciosas?

Existe uma tribo no leste da África, na qual a arte da verdadeira intimidade (podemos chamar de vínculo) é forjada mesmo antes do nascimento. Nessa tribo a data de nascimento de uma criança não é contada a partir do dia do seu nascimento físico, nem mesmo do dia da sua concepção, como em outras culturas. Para essa tribo, a data de nascimento acontece na primeira vez em que a criança se constitui num pensamento na mente da mãe. Consciente de sua intenção de conceber a criança com um pai em particular, a mãe se retira para sentar-se sozinha embaixo de uma árvore.

Lá ela senta e espera até que possa ouvir a canção da criança que ela deseja conceber. Uma vez que tenha ouvido essa música, ela retorna ao seu vilarejo e a ensina ao pai para que eles possam cantá-la juntos enquanto fazem amor, convidando a criança a se juntar a eles.

Depois que a criança é concebida, ela canta para o bebê em seu ventre. Então ela ensina a canção às suas cunhadas e às mulheres mais velhas do vilarejo, para que, durante o trabalho de parto e no milagroso momento do próprio nascimento, a criança seja recepcionada com sua música.

Depois do nascimento, todos os cidadãos do vilarejo aprendem a música de seu novo membro e cantam para a criança quando ela cai ou se machuca. Ela é cantada em momentos de glória ou crise, em rituais e iniciações. Quando a criança crescer e for se casar, a música se tornará uma parte da cerimônia de casamento. E, no final da sua vida, seus entes queridos vão se reunir em torno de seu leito de morte entoando a canção da criança gerada antes de ser concebida. (Verny, 1997, citado por Silva, 2011, p. 13)

Espero que o leitor seja empático, preserve nossas diferenças e abra um espaço para a chance que a escrita oferece de traduzir em palavras a história da trajetória de um par analítico, em que a observação exerce um papel fundante.

 

Referências

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Recebido em: 28/10/2017
Aceito em: 16/5/2018

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