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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo Jan./June 2018

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Aula de desenho para psicanalistas (papel e lápis são suficientes para fazer uma obra inteira)

 

Drawing class for psychoanalystis (paper and pencil are enough to make a hole work of art)

 

Clase de dibujo para psicoanalistas (papel y lápiz son suficientes para hacer una obra entera)

 

Classe de dessin pour psychanalystes (papier et crayon suffisent pour faire une oeuvre entière)

 

 

Gizela TurkiewiczI; Paula Freitas Ramalho da SilvaII

IMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Faz parte da Associação dos Membros Filiados, AMF. gizela.turkiewicz@gmail.com
IIMembro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Faz parte da Associação dos Membros Filiados, AMF. paulafrs@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A partir da primeira edição do projeto intitulado "Psicanálise – processo autoral", desenvolvido pela Associação dos Membros Filiados (AMF) ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em 2017, as autoras discutem se e como a psicanálise pode ser considerada um trabalho autoral.

Palavras-chave: psicanálise, arte, processo autoral, interpretação


ABSTRACT

Starting from the experience with the first edition of the project named "Psychoanalysis – authorship process", developed by the Association of Candidates (AMF) of the Institute of Psychoanalysis Durval Marcondes of the Brazilian Society of Psychoanalysis of São Paulo (SBPSP) in 2017, the authors discuss whether and how psychoanalysis can be seen as an authorship work.

Keywords: psychoanalysis, art, authorship process, interpretation


RESUMEN

A partir de la primera edición del proyecto "Psicoanálisis – proceso autoral", desarrollado por la Asociación de los Candidatos (AMF) del Instituto de Psicoanálisis Durval Marcondes de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo (SBPSP) en 2017, las autoras discuten si y como el psicoanálisis puede ser considerado un trabajo autoral.

Palabras clave: psicoanálisis, arte, proceso autoral, interpretación


RÉSUMÉ

A partir de la première édition du projet "Psychanalyse – Processus d'auteur", développé par l'Association des Candidats (AMF) à l'Institut Durval Marcondes de la Société Brésilienne de Psychanalyse de São Paulo (SBPSP) en 2017, les auteurs discutent si et comment la psychanalyse peut être considérée comme un travail d'auteur.

Mots-clés: psychanalyse, art, processus d'auteur, interprétation


 

 

A experiência é o que nos abre
para aquilo que não somos.
(Merleau-Ponty, 1971)

A psicanálise pode ser um trabalho autoral? A partir deste questionamento, a atual Diretoria da Associação dos Membros Filiados (AMF) do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) foi buscar o diálogo com outras áreas de conhecimento em que o desenvolvimento autoral é parte inquestionável do processo de formação de cada profissional.

Numa primeira edição desse projeto, intitulado "Psicanálise – processo autoral", o artista plástico Dudi Maia Rosa1 foi recebido, em outubro de 2017, para uma aula de desenho semelhante àquelas que vem ministrando há aproximadamente vinte anos no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

 

Sobre o método

A proposta do exercício foi que cada participante, apenas com papel e lápis, desenhasse aquilo que via com base em objetos presentes na sala, bastante próximos do observador, como as linhas das próprias mãos e um vaso com flores. Maia Rosa propõe que o desenho é o resultado da relação entre o objeto e o autor – além da forma, ao desenhar, representa-se também a relação do objeto com o espaço ao redor e seus vazios, o negativo do desenho. Diante destes pressupostos, a possibilidade de desenhar não dependeria da técnica aprendida na academia, mas da capacidade do autor de relacionar-se com o objeto e transpor esta relação para o papel.

O exercício de desenho aconteceu em etapas. Primeiro, foi proposto que cada um desenhasse, com a mão direita, as linhas da própria mão esquerda. Na sequência, foi feito o desenho das linhas da mão direita, com a mão esquerda. Depois, cada um dos participantes aproximou de si uma flor, e fez três desenhos do mesmo objeto: com a mão direita, com a esquerda e com o papel coberto por um anteparo, mantendo o olhar no objeto observado ininterruptamente, de forma que o resultado do desenho só pôde ser visto após sua conclusão.

 

 

Durante o processo, Maia Rosa circulou pela sala, conversando com o grupo e com cada participante individualmente, comentando sobre os desenhos, o traço e a relação de cada um com o objeto observado. A seguir, ele propôs que os desenhos fossem expostos, que o trabalho de cada um se tornasse público e que o grupo pudesse conversar sobre a experiência, retomando os seguintes questionamentos disparadores da atividade: poderia ser a psicanálise um trabalho autoral? O que há de autoral em um processo tão íntimo e que ocorre em sigilo?

 

 

Impressões do grupo sobre a experiência

Durante a exposição dos trabalhos, pôde-se observar em cada autor um traço característico, uma estrutura de desenho e um jeito próprio de usar o papel, que foi chamado pelo grupo de "estilo próprio". Considerando que os participantes não eram artistas profissionais, mas analistas, possivelmente esse "estilo" relaciona-se a características individuais e de personalidade de cada um, e a sua experiência prévia com o desenho.

Observou-se que, a cada etapa do exercício proposto, os participantes passaram por mudanças, entregando-se progressivamente ao ato de desenhar, de forma que o lápis passou a ser extensão de suas mãos, e o branco do papel passou a fazer parte do desenho. Assim, o resultado foi o aprofundamento progressivo da relação do autor com sua obra.

Naturalmente, os desenhos feitos com as mãos direita e esquerda mostraram-se marcadamente diferentes. Uma impressão comum ao grupo foi que os desenhos da mão direita tinham contornos definidos, firmes e comprometidos em representar a forma do objeto; já aqueles feitos com a mão esquerda tinham traços mais livres, fluidos, menos preocupados em representar a imagem real, e mais entregues à relação entre autor e objeto. Essa relação pareceu estar ainda mais aprofundada nos desenhos feitos com o anteparo, em que cada participante não tinha a possibilidade de desviar seu olhar para o papel e, como que imerso no objeto, desenvolveu um desenho em que linhas e papel pareceram se tornar um só.

Correndo o risco de certo reducionismo, talvez se possa fazer um paralelo entre o desenho com a mão direita e o trabalho no registro do consciente; e o desenhar com a mão esquerda, ou com o anteparo, e a representação de um mergulho no registro do inconsciente.

 

Possíveis paralelos com a psicanálise

A psicanálise é, em sua origem, o trabalho autoral de Freud. Sua obra é apresentada ao mundo pela publicação da Interpretação dos sonhos, em 1900, mas sua criação está ligada ao tempo e às circunstâncias vividas por ele. Ele próprio faz um percurso pelo terreno em que a psicanálise floresceu, em seu "Resumo da psicanálise" (1924/2011), considerando o caráter intrigante das doenças nervosas, os estudos neurológicos da época e a influência de Charcot, Janet e, posteriormente, Breuer, em suas investigações sobre os fenômenos neuróticos, pela hipnose, precursora do método catártico e da regra psicanalítica fundamental da "associação livre e da arte interpretativa", que permitiu um ganho inestimável na compreensão do jogo de forças inconscientes, fundamental na formação dos sintomas neuróticos (Freud, 1924/2011). A psicanálise nasce, portanto, com esse caráter autoral e investigativo, e sua prática é indissociável da pesquisa psicanalítica. Não se trata, aqui, de pesquisa sobre psicanálise, mas de pesquisa psicanalítica enquanto investigação com o método psicanalítico, realizada por um psicanalista em sua praxis. Em texto de 2006, Figueiredo e Minerbo afirmam que o trabalho investigativo com o método psicanalítico é necessariamente obra do psicanalista, algo de sua autoria com base em um corpo a corpo sempre capaz de trazer novidades à dupla analista-analisando e à própria psicanálise.

Nesse sentido, parece ser possível uma aproximação com o artista e o objeto desenhado por ele. Na experiência relatada anteriormente, pode-se pensar que o desenho encarna algo da relação entre o autor e o objeto, mas existe independentemente de ambos. Como ele resulta da corporeidade dessa relação e se situa no tempo em que foi feito, cada desenho é único, e não pode ser replicado, assim como uma sessão analítica. Como na situação do desenho, a relação entre o analista e seu objeto implica deixar-se fazer por ele e, em contrapartida, construí-lo (ou desenhá-lo) à medida que avançam suas elaborações e descobertas. Esta é uma relação que não deixa nenhuma das partes tal como era antes de a própria pesquisa ser iniciada (Figueiredo & Minerbo, 2006).

A cada sessão, o analista põe sua escuta à disposição do paciente – que inclui toda sua corporeidade, sentidos que estão além da audição – e lhe empresta sua imaginação para recriar as formas do desejo que investiga, a partir do lugar de um interlocutor que deixa de ouvir o sentido literal para ouvir seus outros registros de comunicação. Então, boa parte do processo interpretativo se passa em silêncio, na disposição do analista para deixar que surja, para tomar em consideração – estar atento ao que lhe ocorre na forma de mito, de música, de imagem, de fala e de teoria, não a teoria geral da psicanálise, mas as teorias particulares daquela análise (Herrmann, 2003).

A interpretação é o que surge do campo transferencial, da especificidade da relação analítica, é criação recíproca: o paciente desenha-se com o seu analista, produzindo, sessão a sessão, esboços pequenos de uma totalidade inapreensível; e o analista tenta conceber como seria o conjunto do que só em parte pode ver, e invertidamente, na tentativa de completar o desenho do desejo de seu paciente, matriz simbólica das emoções, que surge, na análise, como fantasia (Herrmann, 2001).

Traçando um paralelo possível entre a interpretação psicanalítica e o método de desenho proposto por Maia Rosa, pode-se considerar que neste também há um deixar que surja, para tomar em consideração, em que o desenho é resultado do que se vê não somente pelo sentido da visão, mas por todos os sentidos disponíveis quando se abre mão da cópia fiel do objeto. A partir daí, os espaços vazios e o branco do papel passam a fazer parte da obra, desenhando-se a relação do objeto com o espaço a sua volta, o que daria forma ao negativo do desenho.

Como o artista que se deixa guiar por seu objeto, o analista segue o fluxo associativo do paciente com atenção flutuante, com os seus sentidos, e disso poderá resultar uma construção discursiva única, válida para aquela dupla naquela sessão. Assim, a psicanálise escapa de ser uma repetição ao infinito daquilo que teoricamente já se sabe (Frayze-Pereira, 2005), reforçando seu caráter autoral.

O adjetivo autoral tem o seguinte significado: "que diz respeito ao autor de obras literárias, artísticas ou científicas" (Michaelis). Neste sentido, só é possível haver autoria quando a obra em questão é publicada. A vasta literatura psicanalítica disponível tem mostrado que os textos psicanalíticos são tão autorais como tantas outras obras científicas e literárias, mas não é esta a questão aqui posta, e sim aquela sobre o que ocorre no trabalho analítico antes que ele seja escrito e publicado.

Retomando o paralelo com o desenho, um artista não é definido pelo domínio da técnica ou da teoria. Alguém pode ter o completo domínio da técnica e não produzir uma única obra de arte. Mas artista é aquele que se intitula como tal, que se autoriza a dizer "sou artista", com base na própria história, experiência, biografia (que inclui, certamente, o percurso de sua formação). Não seria também psicanalista aquele que assim se intitula? Para ser analista não basta dominar teoria e técnica, mas o que o define é sua experiência de análise, em sua análise pessoal e na de seus pacientes. Então, analista é aquele que, com base em percurso e história individuais, que não se repetem e não se copiam, pode dizer "sou analista". E, assim, a formação analítica seria também um processo autoral, em que cada analista faz seu percurso, com estilo próprio.

Ao interpretar, o analista publica, com exclusividade, para seu paciente, algo que lhe ocorre. Ainda que, na imensa maioria das vezes, a interpretação não seja escrita ou divulgada fora do consultório, e seja esquecida logo após ser dita, a interpretação é o trabalho autoral da dupla analista e paciente. Como se, pela interpretação, o paciente tivesse seu desejo desenhado pelo analista, com forma, sombra e negativo; desenho que é feito pela mão esquerda, ou com anteparo, que não é cópia fiel e que tem relação com seu próprio tempo.

 

Referências

Figueiredo, L. C. & Minerbo, M. (2006). Pesquisa em psicanálise: algumas ideias e um exemplo. Jornal de Psicanálise, 39(70),257-278.         [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A. (2005). Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. Cotia, SP: Ateliê         [ Links ].

Freud, S. (2011). Resumo da psicanálise. O eu e o id, "autobiografia" e outros textos (1923-1925). In S. Freud, Obras completas (Vol. 16). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)        [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Luto primordial. In F. Herrmann, Andaimes do real: o método da psicanálise (3.ª ed., pp. 219-228). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, F. (2003). A arte da interpretação. In F. Herrmann, Clínica psicanalítica – a arte da interpretação: teoria dos campos (pp. 81-96). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1971). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Michaelis. Dicionário brasileiro da língua portuguesa.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 7/5/2018
Aceito em: 9/5/2018

 

 

1 Dudi Maia Rosa é artista plástico, vive e trabalha em São Paulo, participou de diversas exposições coletivas e individuais, desde 1978, em instituições brasileiras e internacionais. Suas obras exploram a corporeidade e a presença física do objeto, trabalhando com volumes e relevos, em relação ao aqui e agora. Há cerca de vinte anos, dá aulas de desenho no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

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