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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

TEMAS LIVRES

 

A procura de uma intenção comunicativa na ecolalia: estudo de um caso

 

The search for a communicative intent on echolalia: a case study

 

En busca de una intención comunicativa en la ecolalia: un estudio de caso

 

À la recherche d'une intention communicative dans l'echolalie: étude d'un cas

 

 

Mônica Camasmie Dib

Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo. São Paulo. monica_dib@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Com base em experiências clínicas, foi observado que a ecolalia, em alguns casos, pode funcionar metaforicamente como uma janela que abre oportunidade para estabelecer uma relação dialógica entre o analista e crianças com sintomas autísticos (Kanner) e facilitar o desenvolvimento do paciente. No autismo encontramos uma organização de defesa altamente complexa e sofisticada, que tem o objetivo de garantir a invulnerabilidade do paciente, para evitar a recorrência das condições de ansiedade impensável (Winnicott). Neste estudo, o analista é considerado como uma "companhia viva" (Alvarez), que possibilita o processo de comunicação entre ele e o paciente, e diminui a sensação de isolamento entre eles. Este trabalho apresenta o estudo de um único caso, em que se desenvolveu e ampliou uma via de comunicação viva entre analista e paciente. O objetivo do trabalho psicanalítico não é necessariamente extinguir a ecolalia de forma indiscriminada, mas especialmente o de transformar esse modo estereotipado e repetitivo de comunicação num processo dialógico.

Palavras-chave: autismo, psicanálise da criança, ecolalia


ABSTRACT

Based on clinical trials, it was observed that echolalia, in some cases, may metaphorically works as a window of opportunity that is open to establish a dialogic relationship between psychoanalyst and children with autistic symptoms (Kanner). It may, therefore, facilitate the patient's development. In autism, we find a highly complex and sophisticated organization of defense. Its purpose is to guarantee the patient's invulnerability in order to prevent repeated conditions of unthinkable anxiety (Winnicott). In this paper, the psychoanalyst is considered a "live company" (Alvarez), who allows the communication process between analyst and patient to occur. It also minimizes the feelings of isolation between them. This work presents a single case study in which a way of live communication between analyst and patient has been both developed and increased. Psychoanalytic work does not necessarily have the purpose of indiscriminately extinguishing echolalia, but it has the special purpose of transforming this stereotyped and repetitive way of communication into a dialogic process.

Keywords: autism, Child Psychanalysis, echolalia


RESUMEN

A partir de experiencias clínicas, se observó que la ecolalia, en algunos casos, puede funcionar metafóricamente como una ventana que abre la oportunidad de establecer una relación dialógica entre el analista y el niño con síntomas autístas (Kanner) facilitando el desarrollo del paciente. En el autismo encontramos una organización de defensas altamente compleja y sofisticada, que tiene el objetivo de garantizar la invulnerabilidad del paciente, para evitar la repetición de condiciones de ansiedad impensable (Winnicott). En este estudio, el analista es considerado como una "compañía viva" (Alvarez) que posibilita el proceso de comunicación entre paciente y analista y reduce la sensación de aislamiento entre ellos. Este trabajo presenta el estudio de un solo caso, en el que se desarrolló y se amplió una vía de comunicación viva entre analista y paciente. El objetivo del trabajo analítico no es necesariamente extinguir la ecolalia de forma indiscriminada, sino transformar, especialmente, ese modo estereotipado y repetitivo de comunicación en un proceso dialógico.

Palabras clave: autismo, psicoanálisis de niños, ecolalia


RÉSUME

A partir d'expériences cliniques, on a observé que l'écholalie peut, dans certains cas, fonctionner métaphoriquement comme une fenêtre qui ouvre la possibilité d'établir une relation dialogique entre l'analyste et les enfants présentant des symptômes autistiques (Kanner) et ainsi rendre plus facile le développement du patient. Chez les autistes, nous trouvons une organisation de défense très complexe et sophistiquée qui vise à assurer leur invulnérabilité, afin d'éviter la récurrence des conditions d'anxiété impensable (Winnicott). Dans cette étude, l'analyste est considéré comme une "compagnie vivante" (Alvarez), ce qui rend possible le processus de communication entre le professionnel et son patient, permettant de réduire le sentiment d'isolement entre eux. Ce travail présente l'étude d'un seul cas, où une voie de communication vivante s'est développée entre l'analyste et son patient. L'objectif du travail psychothérapeutique n'est pas nécessairement faire disparaitre l'écholalie, mais c'est celui de transformer cette façon stéréotypée et répétitive de communication en un processus dialogique.

Mots-clés: autisme, psychanalyse de l'enfant, écholalie


 

 

A ecolalia é definida como a repetição de sons, palavras ou frases. Algo que ocorre também a crianças com sintomas autísticos. Miranda (1983) esclarece que há três tipos de ecolalia: imediata, referindo-se à repetição imediata do que a criança ouve; tardia, que ocorre quando a criança repete alguma coisa que ouviu em outro momento; e mitigada, que surge quando a criança repete de forma alterada o que ouviu anteriormente. A autora conceitua o comportamento ecolálico como "semelhante ao perseverativo, com articulação adequada, entonação reproduzida com exatidão e sem intenção de comunicação".

Miranda considera importante identificar qual fator provocou a ocorrência da ecolalia tardia "às vezes as verbalizações da criança são completamente apropriadas à situação, outras vezes são interpretáveis se a história da criança é conhecida e outras vezes são inapropriadas". Penso que, quando o receptor tenta entender o que a criança está sentindo naquele momento, em vez de apenas tentar decodificar os códigos linguísticos, a criança percebe o interesse do receptor por ela. É um caminho para resgatá-la do isolamento.

Schuler (1979) observa que uma criança com boa memória associativa pode produzir uma ecolalia cujo sentido tenha ligações com a situação emocional que está ocorrendo em determinado momento. Portanto, a experiência clínica com o caso aqui relatado revelou que existe um sentido emocional e um sentimento do paciente associados à ecolalia, razão pela qual vivenciar essa situação no processo psicanalítico não pode restringir-se à busca de significações linguísticas.

Vicker (1999) indica que as pessoas que convivem com a criança poderão reconhecer com mais facilidade a ecolalia tardia, efetuando vinculações entre o que está acontecendo no presente e a origem daquela emissão. O contato do analista com os pais da criança auxilia a obter dados relevantes para a interpretação da ecolalia.

Para Winnicott (1997), o autismo é uma "perturbação na delicada interação dos fatores individuais e ambientais, conforme eles operam nos primeiríssimos estágios do crescimento e desenvolvimento". A consequência é uma organização de defesa altamente complexa e sofisticada, com o objetivo de garantir a invulnerabilidade para evitar a recorrência das condições da ansiedade impensável.

Segundo Célia F. Korbivcher,

A função do analista, diante da barreira autística, é tentar penetrá-la, introduzindo-se como um elemento vivo, ativo, e se aproximar daquele mundo inanimado, conferindo vida psíquica àqueles estados autísticos. Para isso, seria preciso que essa barreira tivesse alguns pontos vulneráveis, de modo a permitir que a comunicação do analista atinja o paciente, para haver um trânsito entre estados autísticos e estados em que a mente opera permitindo ao paciente transitar por áreas mentais sem se sentir tão vulnerável e aterrorizado. (2007, p. 57)

A nossa hipótese é que a ecolalia funciona em alguns casos como um ponto vulnerável, como uma janela que, de forma metafórica (Kanner, 1942), abre um espaço dialógico entre o analista e o paciente. Kanner denomina "ecolalia metafórica" aquela que aparece apropriada ao contexto em que ocorre (Miranda, 1983).

Pires (2007) considera a ecolalia como possibilidade terapêutica: "a ecolalia pode ser vista não como impedimento ao desenvolvimento, defesa cristalizante, mas como veículo do mesmo".

O estudo de um único caso, através da análise da ecolalia ocorrida durante a sessão, é útil como uma forma de ampliar e compreender uma via de comunicação viva. Se o analista interpretar a ecolalia somente como uma linguagem repetitiva, poderá perder a oportunidade de compreender o estado mental da criança. Interpretar a ecolalia também pode diminuir a "sensação dramática de isolamento existente entre o analista e a criança", descrita por Tafuri (2000).

Pensar no analista como uma "companhia viva" (Alvarez, 1994) inclui torná-lo interessante para a criança. Por exemplo, é isto o que ocorre geralmente quando a mãe chama para si a atenção do filho, rindo, brincando e falando em linguagem que seu bebê "entenda". Isto possibilita que o processo de comunicação entre mãe e filho seja mais efetivo para expressar sentimentos. Em relação à psicanálise, Alvarez usa o conceito de reclaiming como uma forma de o analista provocar interesse em seu paciente e fazer com que a criança tenha a experiência de ser despertada. Referindo-se ao seu paciente Robbie, Alvarez comenta que usava o reclaiming "quando eu fazia algum movimento fundamental para alcançá-lo, onde quer que ele estivesse em seu perdido estado de estupor" (1994, p. 66). O reclaiming é uma forma de vitalização que convoca o paciente para o contato humano e para trazê-lo de volta a si mesmo, recuperando seu senso de existência. Considero que, no contexto deste estudo, o analista provoca interesse em seu paciente quando demonstra que deseja compreender e interpretar a ecolalia que ocorre em certo momento. Interpretar o significado comunicacional e os conteúdos emocionais dessa ecolalia exige que o analista preste atenção a detalhes do que acontece na sessão e, também, na sequência dos comportamentos da criança.

O objetivo do trabalho psicanalítico não é extinguir a ecolalia de forma indiscriminada, mas transformar um modo de comunicação estereotipado e repetitivo em um modo dialógico de comunicação. Apresento a seguir elementos que parecem confirmar tal hipótese. Trata-se de uma criança atendida em meu consultório, cujo nome foi mudado com o objetivo de sigilo.

André tem 5 anos e está em tratamento há um ano. Apresentava um quadro com sintomas dentro do espectro autista. Não tinha comportamentos motores repetitivos. Demonstrava ter bom potencial intelectual, observado nas brincadeiras com blocos de Lego. Tinha comportamentos repetitivos no sentido de manter a uniformidade do ambiente e das brincadeiras. Raramente apresentava contato visual. Mostrava-se isolado, com pouco interesse pelas pessoas. Gostava muito de celulares, computadores, televisão e videogames. Os pais relataram que ele ficava tranquilo quando estava com esses objetos tecnológicos. Seu comportamento mais evidente era a ecolalia tardia. Emitia sons, palavras e frases aparentemente sem intenção comunicativa. Eu não era capaz de dar um sentido ao que ele estava dizendo. No início, sua fala era mecânica, ecolálica e confusa. Ainda não conseguia usar o pronome pessoal "eu" o tempo todo, muitas vezes ainda falava de si mesmo em terceira pessoa. Após oito meses foi possível começar a relacionar fatos que ocorreram durante as sessões ou numa sessão específica com as ecolalias de André. Cantarolava só com sons alguns trechos de músicas. Cantava pedaços de músicas da televisão, da escola, ou repetia pedaços de estórias de livros. Em casa assistia televisão por muito tempo e na sessão repetia frases ou pequenas falas dos desenhos e filmes em situações diversas. No início, as frases pareciam não ter sentido. Aparentemente, eram como um envoltório de palavras, para proteger-se dos seus sentimentos e do contato com as pessoas. A emissão de sons também aparentava ser uma forma de descarregar tensão, preencher a boca e o espaço da sala com as suas palavras, e afastar-se das palavras que eu estava dizendo. Eu sentia uma necessidade intensa de compreendê-lo, de conhecê-lo, mas não conseguia. Acompanhei-o em suas brincadeiras, como uma forma de encontrar a sintonia aguardada. Ele queria fazer uma construção com o Playmobil e procurava alguma peça – "cadê o telhado?". Eu procurava o brinquedo e o entregava em sua mão. Ele ficava bem satisfeito. Apesar de parecer que André me usava como uma "procuradora de brinquedos", senti que estávamos iniciando uma comunicação dialógica: se ele queria algo, dirigia-se a mim, e eu podia dar a peça para ele. Perguntava muitas vezes: "o que é isso?", algumas vezes diante de alguma palavra que conhecia, como uma forma de comunicação repetitiva, mas muitas vezes não sabia o nome do objeto, demonstrando ter um vocabulário precário, devido principalmente ao atraso na aquisição da linguagem. Oferecer-me como companhia viva (Alvarez, 1994) para André, com certeza forneceu-lhe um holding e favoreceu a integração através da continuidade de sua existência (Winnicott, 1978).

Aos poucos comecei a relacionar as frases com o que estava acontecendo durante as sessões, ou numa sessão específica. Pires (2007) propõe um "método ecolálico de investigação e aproximação da realidade", que tem como característica uma aproximação adesiva ao objeto, na tentativa de vir a conhecê-lo. Segundo Fonseca, a questão da apresentação do objeto é crucial. Baseando-se em Winnicott, diz que:

é necessário um estado inicial de não-percepção da separação para que um espaço transicional possa, mais tarde, substituir a união primitiva. A dualidade não pode ser percebida no começo, já que isso iria colocar em perigo a construção da subjetividade. O objeto deve ser apresentado através daquela ilusão para vir a ser aceito em sua alteridade. (2001, p 463-488)

Compartilhando da mesma ideia do espelhamento que Tafuri expôs, como imitar seus sons, cantarolar junto com ele, orientada por Vera Regina Fonseca em supervisões, comecei a dar algumas interpretações verbais, entoando-as na mesma melodia que André entoava. Para Fonseca:

O ritmo, os jogos de imitação e a apresentação gradual e parcial do objeto externo ... parecem pertencer ao conjunto de "técnicas" maternas que se usam, espontaneamente, durante as interações. Esse estilo, por vezes, pode ser útil no trabalho de psicanálise com crianças com graves perturbações. (2001, p. 488)

Foi importante observar que aos poucos ele olhou para mim quando eu fazia essas verbalizações. Depois de alguns meses de análise, ele começou a sorrir quando eu cantarolava e às vezes respondia: "não é assim", ou dizia "sim", concordando ou discordando do que eu dizia.

Atualmente, André surpreende-se e se acalma em outras situações quando digo algo que dá um sentido ao que está acontecendo com base em sua ecolalia. Citarei alguns exemplos que surgiram em dias nos quais foi possível compreender sua ecolalia, assim como outros em que não consegui dar significado ao que ele estava falando.

Logo no início do tratamento, repetiu angustiado várias vezes, durante duas ou três sessões, andando pela sala, muito aflito: "uma pedra pequena caiu e bateu no tubo de seiva... o vazamento fica dentro do tubo de seiva... precisamos fechar esse buracão". Sem que ele conseguisse explicar melhor, ou usasse um brinquedo, ou outros dados, foi impossível entender o significado real dessas frases. Para interpretar esse episódio, no que se refere ao "buraco", recorri a Tustin (1984) e considerei que esse "buraco" é relativo à sensação dolorosa de separação entre ele e a mãe. Atenta à repetição do tema "vazamento fica dentro do tubo de seiva", interpretei que poderia referir-se à falta de continência interna, pela dificuldade de reter conteúdos afetivos, provavelmente devido à fragilidade na formação de sua "pele psíquica" (Bick, 1968). A frase "precisamos fechar esse buracão" pode ser interpretada como sensação de ameaça por uma intrusão, como quando Winnicott fala das falhas protetoras do ambiente, expondo o bebê a intrusões precoces, antes de ele estar preparado. André continuou aflito, provavelmente por não entender o que ele estava sentindo, ou como se, naquele momento, André ainda não conseguisse lidar com as ansiedades primitivas descritas por Winnicott, Tustin e outros autores, tal como as sensações de cair sem fim e de aniquilamento. Acredito também que não encontrei a forma adequada para que ele compreendesse o que eu estava falando. A falta de sintonia inicial em qualquer tratamento psicanalítico de crianças que, como André, têm pouca capacidade para se vincularem e se comunicarem através da linguagem dificulta a tarefa de dar significado aos comportamentos de tais crianças e também de sermos compreendidos por elas.

Depois de dois ou três meses, André passou a gostar de montar cenas com o Lego ou Playmobil. Quando se sentia frustrado, porque a cena não ficou como ele gostaria, começava a repetir frases incompreensíveis bem baixinho, bravo, porque o resultado da montagem não ficou com a forma prevista por ele. Geralmente eu não conseguia entender o que André falava, mas às vezes eu entendia nomes de personagens de televisão ou de livros, frases confusas e repetitivas. Atualmente ele consegue dizer o que precisa mudar na brincadeira, pede as peças e aceita algumas ideias e a minha ajuda quando é necessária.

Certo dia, André chegou com a mãe, e ela disse que eles foram ao casamento da prima e que ele se comportou bem. No dia seguinte, dormiu na casa da tia. Ele começou a repetir bem alto – "igreja de notre damas". Aproximou-se de uma caixa com alguns brinquedos na sala de espera, ficando praticamente de costas para a mãe. Continuou repetindo a frase alto, levantou-se, deu uma volta, retornou para a caixa. A mãe ia sair, disse "tchau" para o André, mas ele continuou repetindo a frase. Depois que ela saiu, André voltou-se para a caixa de brinquedos. Pegou muitos brinquedos, entre els um barco, mas não conseguiu carregá-los. Relutou em levar menos brinquedos, mas me acompanhou. Ele subiu as escadas com alguns brinquedos, e eu levei o barco. Ele subiu dizendo "igreja de notre damas". Entramos na nossa sala. Eu falei sobre o casamento, que ele foi a uma igreja diferente da Igreja de Notre Dame (do livro O corcunda de Notre Dame). Disse que existem várias igrejas diferentes. Ele repetiu várias vezes uma frase do livro: "tem morcegos e coelhos no alto". Falei que talvez ele tenha ficado com medo no casamento, que pensou que lá também houvesse morcegos e coelhos. Ele olhou nos meus olhos, pareceu compreender o que eu disse e ficou mais tranquilo. Olhou o armário e pediu para brincar com o Lego. Viu um carro semimontado e começou a colocar coisas dentro dele. A partir daí colocou pequenas caixas com peças dentro do carro e, no final, colocou seu pai, sua mãe, ele e o irmão no carro (provavelmente simbolizando a ida da família para a igreja). Saiu da sessão bem mais calmo e foi para a escola. A frase inicial de André sobre a "Igreja de Notre Damas" foi com certeza uma forma de comunicação intencional comigo, mesmo que sob a forma inicial de ecolalia. As minhas interpretações deram um sentido a uma situação desconhecida, permitindo que ela fosse compreendida.

Em outra sessão, apresentou ecolalia diante de vivências corporais: "quer semente de girassol?", "acabou a bateria, alguém pode me ajudar?" E "tem uma onça pintada...". Repetiu algumas vezes, falando baixinho entre uma frase e outra, até que saiu da sala e foi fazer cocô. Voltou mais calmo e continuou a montar a brincadeira. A partir de uma sensação corporal que não tem nome, André tentou comunicar um pedido de ajuda.

Às vezes, repetidamente cantarolava sem palavras, enquanto eu interpretava alguma coisa da brincadeira. Em seguida repetia bem baixinho o que eu havia falado, como se tivesse que ouvir as minhas palavras de novo, para entender melhor, como se estivesse pondo para dentro de si as minhas palavras, o que eu estava dizendo. Devido à aquisição tardia da linguagem, para crianças como André ocorrem lacunas na compreensão do que os outros dizem. A repetição das minhas palavras foi uma forma de comunicação intencional, pois ele estava tentando compreender-me e assimilar-me.

A mesma ecolalia "tem um rio correndo lá embaixo" foi usada em dois momentos distintos: enquanto fazia xixi no banheiro, relacionada com a água que saía dele e, em outro dia, ao sair da sessão, na hora de descer a escada da sala de atendimento até a recepção da clínica, mostrando a distância que passaria a existir entre nós a partir do momento em que ele fosse embora. Segundo Freitas, esta última interpretação já é vincular.

Quando André saiu da sala de atendimento, em dois dias disse "o vento chegou e o pássaro ficou sozinho na floresta", mostrando assustado o desamparo diante da consciência de estar se separando de mim, sozinho diante da turbulência de seus estados internos. Em outra sessão disse: "não estou ouvindo nada, o pica-pau parou de cantar". Assim demonstrando perceber que, quando sai da sessão, algo acabou. Em outra sessão disse várias vezes "é um poço sem fundo, Dick falou", demonstrando uma ansiedade de aniquilamento.

A mãe de André gosta de conversar um pouco comigo quando chega ao consultório. No início do tratamento, André ficava andando pelo consultório, mexia em alguma coisa da sala de espera, ou deitava no sofá. Atualmente, ele faz um barulho, "tic-tac, tic-tac", ou pega um relógio em uma outra sala e vem mostrar para nós, como se estivesse dizendo: "está na hora de começarmos a sessão".

Dormiu na escola em uma "festa do pijama". No dia seguinte disse várias vezes na sessão enquanto andava: "medo do escuro". A mãe disse que ele ficou bem na escola, conseguiu dormir. Eu relacionei o medo do escuro à noite que dormiu na escola, pois, quando perguntei se ele tinha dormido bem, disse "dormi com a tia". Uma emissão que no início parecia uma ecolalia demonstrou ser uma comunicação cada vez mais próxima dos seus estados emocionais.

Em uma sessão, André chegou atrasado ao consultório e com muito sono. A mãe relatou que ele estava assistindo à televisão e não queria sair de casa. Na sessão, andou pela sala repetindo frases de desenhos da televisão e cantarolando trechos de músicas dos desenhos. Começou a brincar com o Playmobil, mas interrompia a brincadeira, levantando-se, andando pela sala, emitindo as ecolalias. Interpretei que ele estava tentando falar que estava em casa, assistindo à televisão quando a mãe o chamou para sair. Ele continuou com o olhar distante e com as ecolalias. Eu disse então: "André, que tal você sair de dentro da televisão e vir aqui brincar comigo?". Ele me olhou, sentou no chão e começou a mostrar a brincadeira que estava construindo. Pediu-me para montar uma casinha e colocar a família dentro. Após duas ou três sessões semelhantes a esta, principalmente às segundas-feiras, percebi que a repetição de conteúdos da televisão diminuiu. A minha intervenção certamente foi uma forma de chamar a sua atenção (reclaiming) para o nosso momento juntos, como Alvarez explicou em seu livro.

André evoluiu muito em relação à sua linguagem. A ecolalia praticamente desapareceu. Observo que ela ainda aparece nos dias em que está cansado ou com muito sono, Ele já consegue relatar fatos, como quando estava doente e teve que ir para o hospital. Sentou na poltrona e disse: "fui no hospital com meu pai, tinha uma agulha bem fininha com uma borboletinha, fez o exame, depois um assoprão e o buraquinho foi embora". Perguntei se ele tinha sentido dor, disse que "sim, só um pouquinho". Perguntei se ele tinha ficado com medo, e André respondeu: "papai tava comigo". Fiquei emocionada ao ver que um menino que chegou falando raramente o "eu", sem contato visual e com uma linguagem restrita, conseguiu, após um ano, relatar assim um momento difícil que aconteceu com ele.

Tafuri diz que

essas vivências íntimas, corporais e emocionais, que a mãe tem com o seu bebê, permitem a ela imaginar e interpretar as necessidades e desejos do bebê. A mãe, ao interpretar os estados emocionais do bebê, lhe designa um lugar no reino da linguagem. Porém, a interpretação só se faz presente a partir de uma relação empática com o seu bebê. (2000, p. 142)

Considero que a empatia relacionada ao fato de a analista tentar se pôr no lugar do paciente faz com que ela consiga interpretar os sentimentos e necessidades da criança, tal como a mãe, e, assim, possibilite o acesso progressivamente através da linguagem ao mundo simbólico e a vinculação da criança com seus próprios sentimentos e com as pessoas ao seu redor.

 

Referências

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Recebido em: 19/8/2017
Aceito em: 29/7/2018

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