SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.51 número94Quando o analista é um mal para seu paciente; um retorno à "psicanálise selvagem": un retorno al "psicoanálisis salvaje"Psicanálise e mitologia: Ifigênia (1977) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Manuscrito inédito de 1931 - breves notas sobre um texto de Freud até há pouco desconhecido, e recém-traduzido para o português1

 

Unpublished Manuscript of 1931 – brief notes on a until recently unknown text of Freud, and now translated into portuguese

 

Manuscrito in é dito de 1931 – breves notas sobre un texto de Freud hasta poco desconocido y recientemente traducido al portugués

 

Manuscrit inédit de 1931 – de brèves notes sur un texte de Freud jusqu'à récemment inconnu, et récemment traduite en portugais

 

 

Elsa Vera Kunze Post Susemihl

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. esusemihl@gmail.com

 

 


RESUMO

O texto apresenta um histórico resumido da descoberta desse manuscrito por Paul Roazen em 2004 e das controvérsias em torno da coautoria de Freud e Bullit (1966) de Woodrow Wilson: a psychological study. A seguir, a autora comenta alguns aspectos desse texto e da sua tradução para o português. Seguem-se comentários sobre bissexualidade e religião, relacionando-os à apresentação destes temas em outros textos de Freud.

Palavras-chave: história do Manuscrito inédito de 1931, tradução, libido, bissexualidade, instinto de vida e instinto de morte, religião


ABSTRACT

The text presents a historical summary of the discovery of this unpublished Manuscript of 1931 by Paul Roazen in 2004 and of the controversies surrounding the co-authorship of Freud and Bullit (1966) of Woodrow Wilson: a psychological study. The author then comments on some aspects of this text and its translation into Portuguese. Then follow comments on bisexuality and religion, relating them to the presentation of these themes in other texts of Freud.

Keywords: history of the unpublished Manuscript of 1931, translation, libido, bisexuality, life instinct and death instinct, religion


RESUMEN

El texto presenta un resumen histórico del descubrimiento de este manuscrito por Paul Roazen en 2004 y de las controversias en torno a la coautoria de Freud y Bullit (1966) de Woodrow Wilson: a psychological study. A continuación, el autor discute algunos aspectos de este texto y su traducción al portugués. Los siguientes son comentarios sobre bisexualidad y religión, relacionándolos a la presentación de estos temas en otros textos de S. Freud.

Palabras claves: historia del Manuscrito in é dito de 1931, traducción, libido, bisexualidad, instinto de vida e instinto de muerte, religión


RÉSUMÉ

Le texte présente un résumé historique de la découverte de ce manuscrit et sa découverte par Paul Roazen en 2004 et des controverses entourant la co-paternité de Freud et Bullit (1966) de Woodrow Wilson: a psychological study. L'auteur commente ensuite certains aspects de ce texte et sa traduction en portugais. Ils suivent des commentaires sur la bisexualité et la religion, les reliant à la présentation de ces thèmes dans d'autres textes de Freud.

Mots-clés: histoire du Manuscrit inédit de 1931, traduction, libido, bisexualité, instinct de vie et instinct de mort, religion


 

 

Esse é um texto marcado por controvérsias.

Ao que tudo indica já foi escrito em meio a controvérsias, quando as discordâncias entre os coautores, Freud e Bullit, se fizeram presentes no trabalho conjunto. Temos hoje acesso à documentação que esclarece algumas passagens dessa colaboração, graças à descoberta de Paul Roazen, em 2004.

A história desse Manuscrito nos leva às primeiras décadas do século passado, quando Freud clinicava em Viena e quando Bullit, ao final da Primeira Guerra Mundial, acompanhou o então presidente americano Thomas Woodrow Wilson nas conversações de paz e na formulação do Tratado de Versalhes. Freud e Bullit se conheceram nesses anos e compartilharam ideias e críticas semelhantes em relação ao presidente Wilson e sua atuação durante o estabelecimento desse tratado, que depois realmente se mostrou desastroso e levou a situações que culminaram com a Segunda Guerra Mundial. Freud considerava Thomas Woodrow Wilson uma pessoa identificada com ideias messiânicas e que tomava suas ilusões religiosas literalmente, o que, a seu ver, o fazia uma pessoa inadequada para se relacionar com os "filhos comuns dos homens" (Freud & Bullit, 1966/1984, p. 18).

Surgiu, então, em 1930, um projeto de ambos, Freud e Bullit, de escreverem em conjunto um texto biográfico a respeito do presidente americano Woodrow Wilson. Bullit, o ex-embaixador, contaria sua experiência política e Freud, o psicanalista, contribuiria com uma análise psicológica do caráter do presidente. A colaboração foi abraçada por Freud com entusiasmo, mas no decorrer do trabalho foram se instalando divergências, levando a discussões, tentativas de compromisso e, finalmente, a um esfriamento no andamento do projeto. Talvez encontremos aqui a primeira marca daquilo que vai caracterizar a história dessa biografia, a controvérsia, sobre a qual esse Manuscrito agora pode jogar um pouco de luz.

Alguns anos mais tarde, com o avanço do nazismo na Áustria, Freud e sua família são forçados a fugir. Bullit, agora o embaixador americano em Paris, tem um papel decisivo nesse momento, pois fornece ajuda, por meio dos seus contatos políticos, na chegada da família Freud em Paris e no seu caminho a Londres, o destino final do exílio. O projeto da biografia é então retomado por iniciativa de Bullit em meio a esse cenário dramático de fuga, exílio, velhice e doença. Freud parece ter nesse momento concordado com sua publicação, e decidem que esta se daria somente após a morte da segunda esposa de Wilson. Vale ressaltar que não existe documentação precisa a respeito dos termos dessa decisão e do acerto feito agora em relação às divergências anteriores. Em uma passagem da biografia publicada, é sugerido que essas diferenças estavam associadas a assuntos relativos a crenças religiosas, tendo em vista que Bullit era cristão e Freud um judeu agnóstico. E mais, que em algum momento Freud havia acrescentado alguns parágrafos ao seu texto aos quais Bullit fez sérias objeções (Freud & Bullit, 1966/1984, p. 16). Hoje, com o Manuscrito em mãos, podemos pensar que o acréscimo recusado por Bullit deve ser a passagem, no final no Manuscrito, em que Freud nos apresenta uma compreensão psicanalítica da figura de Cristo.

O livro é publicado finalmente em 1966, quando ambos os coautores, Freud e Bullit, já não se encontravam mais vivos. Será que Freud se deixou mover à publicação pela gratidão devida a Bullit, que intercedeu a seu favor quando da fuga de Viena e da chegada a Paris, a caminho de Londres? Ainda que as divergências anteriores não houvessem sido esclarecidas?

O primeiro capítulo da biografia atribuído a Freud sempre gerou estranhamento e controvérsias. Reconhecia-se, sim, ali algo característico de Freud, mas não pareciam ser o seu estilo, sua fluência, sua maneira de se comunicar, sua forma argumentativa. Essas controvérsias levaram a um não reconhecimento da coautoria de Freud por parte de Anna Freud e outros psicanalistas. Mas, por outro lado, na introdução do livro, esta sim inegavelmente de Freud, ele mesmo havia assumido a coautoria e a responsabilidade textualmente: "pela parte analítica somos ambos responsáveis" (Freud & Bullit, 1966/1984, p. 31). Como sustentar então que não é dele o primeiro capítulo?

Mais um capítulo nas controvérsias ocorre ao serem encontrados por Paul Roazen, em 2004, os documentos, agrupados em 22 itens no total, entre textos datilografados em alemão e inglês com anotações de Freud e Bullit, cartas, rascunhos, notas, contratos, em meio aos quais está esse Manuscrito de 1931 (Solms, 2006), que agora traduzimos e publicamos.

Com esse Manuscrito em mãos, constatou-se que ele de fato não coincidia totalmente com o primeiro capítulo do livro. Teria sido escrito por Freud para uma publicação, e então editado por Bullit, de acordo com suas próprias concepções e crenças, tornando duvidosa a autoria de Freud? Ou foi escrito para Bullit com o simples propósito de muni-lo teoricamente para que ele pudesse proceder com a análise psicológica do caráter de Wilson? Autores como Gubrich-Simitis (2006) e Solms (2006) parecem ter visões contrastantes a respeito. E a controvérsia continua.

Mas o achado talvez mais esclarecedor é ressaltado por Solms (2006, p. 1276). Trata-se de um documento que tem a frase da introdução, "pela parte analítica somos ambos responsáveis", fortemente riscada por Freud e acrescentado em seu lugar: "no que diz respeito à parte analítica, o trabalho principal e as principais conclusões são dele, Bullit, mas fiz tantos acréscimos e mudanças, que posso compartilhar a responsabilidade pelo resultado". Temos aqui, por ora, uma indicação: Freud não se reconhecia como coautor da obra sobre Wilson, e não queria esta sentença assim publicada. Isso esclarecido, somos brindados com a versão original de um texto de Freud, tal qual ele o escreveu. Ainda que fique em aberto se deveria ser publicado dessa forma ou se deveria somente servir de ajuda para Bullit.

O Manuscrito foi enviado em 1931 para Bullit, que fez amplo uso dele ao longo do seu livro. Foi agora possível cotejar a edição feita por Bullit do texto original. Conforme Gubrich-Simitis, ele muitas vezes fez uso do material de Freud, principalmente no primeiro capítulo, mas também de forma esporádica no segundo capítulo e nos seguintes:

de forma grosseira, chegando até a uma estereotipia e repetição, beirando a caricatura ... A reprodução de certas passagens sofreu grandes mudanças: metáforas foram trocadas por outras e linhas argumentativas foram interrompidas, além de muitas simplificações que foram feitas, não levando em conta a advertência deixada por Freud, "A vida psíquica do ser humano é uma coisa muito complicada". Acresce-se a isso uma atenuação do vocabulário de Freud, por exemplo, onde Freud fala de "homossexualidade reprimida", de "homossexualidade passiva" ou de "libido homossexual sublimada", fala-se no primeiro capítulo de "passividade reprimida em relação ao pai", "passividade" ou ainda "libido sublimada". As expressões "sexualidade" e "instinto sexual" são substituídas, via de regra, por "Eros" e "amor", apesar do próprio Freud ter feito comentários sobre esse tipo de alteração no vocabulário. Finalmente, partes marcantes e extensas da argumentação de Freud são suprimidas totalmente nesse primeiro capítulo: não somente a acentuação da importância da angústia de castração, ou o elogio do resultado da repressão da homossexualidade que atenua a agressividade e a destrutividade, na verdade, a própria bissexualidade congênita do ser humano, mas, sobretudo, toda a investigação da identificação com Cristo como um fenômeno geral...2 (2006, p. 32)

Ou seja, grande parte do que encontramos agora nesse Manuscrito, se não foi atenuado, foi excluído totalmente.

Podemos pensar hoje que essas alterações feitas no texto original nos indicam os pontos de fratura na colaboração e coautoria, dilemas que devem ter desestimulado Freud a continuar no projeto. A sexualidade, a bissexualidade, a castração e uma compreensão psicanalítica da identificação com Cristo, ideias essenciais da psicanálise, mas talvez desmedidas para um político-escritor, com uma profunda ligação com suas raízes cristãs.

 

Sobre o texto

Logo nos primeiros parágrafos reconhecemos o estilo de escrita e pensamento freudianos. Sua apresentação nos lembra a linguagem das "Cinco lições de psicanálise" (Freud, 1910[1909]/1969), a leveza e desenvoltura com que Freud é capaz de formular premissas básicas psicanalíticas de forma clara e resumida, mas não simplificada. Encontramos um detalhamento do complexo de Édipo, revisitado na maturidade, de uma forma que não existe em toda sua obra, trabalhado sob impacto dos instintos de vida e de morte, da bissexualidade, das identificações e do supereu, apresentando os conflitos e suas resultantes possíveis. Notamos a linha de pensamento construída desde a "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1969f) e dos "Três ensaios" (Freud, 1905/1969l), com a apresentação do complexo de Édipo e a teoria da libido, acrescida da concepção de libido do eu narcísica e de libido objetal de "À guisa de introdução ao narcisismo" (Freud, 1914/2004), e com a ideia da perda do objeto de amor, da introjeção e da identificação com o objeto perdido de "Luto e melancolia" (Freud, 1917[1915]/1969h), até a formulação do instinto de vida e do instinto de morte em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1917[1915]/1969a) e a formação do supereu, ao final do complexo de Édipo, no menino em "O eu e o id" (Freud, 1923/2007a). Toda a essência do conhecimento adquirido ao longo desse trajeto é posta em operação aqui nesse pequeno Manuscrito. Mas, sem dúvida, a grande novidade está em alguns poucos parágrafos próximos ao final, quando a identificação com a figura de Cristo é apresentada como uma solução para esses conflitos relativos ao complexo de Édipo, tão difíceis de serem harmonizados e que atuam desde cedo na mente humana.

 

A tradução

Com relação à experiência de tradução, ela acompanhou a fluidez do próprio texto. Ainda que a linguagem pareça ser simples e despretensiosa, para um leitor ou tradutor psicanalista, algumas passagens embutem sentidos muito precisos, e a atenção a eles me acompanhou. Com relação à escolha de determinados verbetes, deixei algumas observações em "Notas sobre alguns verbetes" (Freud, 2006/2017) no livro para quem quiser se informar a respeito de alguns termos ou algumas escolhas. Encontram-se aí também algumas referências para quem quiser se aprofundar. Fiz uma escolha de tradução do termo Trieb para instinto, opção assentada em anos de história e debate de tradução. Sem me aprofundar na discussão aqui, optei por instinto para sublinhar o enraizamento dos conflitos psíquicos nas fontes corporais do instinto, conforme é destacado neste texto.

 

Algumas notas

A seguir, sublinho algumas ideias que não são nem novas nem desconhecidas, mas que se apresentam mais uma vez em nova roupagem e novas conexões e nos fazem refletir e enfatizar algumas das lições deixadas pelo fundador da nossa disciplina.

Nos primeiros parágrafos, Freud faz um comentário interessante, quando escreve que a possibilidade de análise de uma pessoa somente é possível na presença da pessoa. Muito pode ser pensado, escrito, refletido sobre pessoas públicas, obras literárias, obras de arte etc., mas Freud faz questão de deixar claro que isso não é psicanálise, mas sim o que é possível fazer sem a presença do outro e que aqui chamará de "estudo psicológico".

Alguns parágrafos adiante, ainda no início do texto, encontramos um comentário parecido a muitos outros que se espalham por toda a obra freudiana. Um comentário sucinto a respeito de método científico e uma posição sobre teoria do conhecimento. Funciona também como alerta, reafirmando a noção de provisoriedade dos conhecimentos adquiridos e dos modelos construídos. Assim, lemos aqui que os conhecimentos adquiridos pela psicanálise são provisórios, ainda que verdadeiros, até que "mais luz seja jogada sobre a escuridão do desconhecido". Considera que a psicanálise abriu um portão, e com isso pode reconhecer algumas formas, mas estas podem se transformar à medida que este portão se abra mais, e mais luz possa iluminar as formas. Apoia-se no desenvolvimento da física, citando o fato de que o conhecimento de Newton não foi invalidado por Einstein, mas este estendeu o campo e assim fez novas descobertas. Penso que essa postura científica de Freud lhe é muito cara e vale a pena que a tenhamos em mente. Ainda que rigoroso e certo das descobertas de suas investigações, tinha plena consciência de sua limitação e da escuridão que as envolvia. E, mesmo em um texto tão curto e aparentemente não pensado para discussão de problemas teóricos mais sofisticados, faz questão de iniciá-lo estabelecendo esses balizamentos para tudo o que virá a seguir.

Traz então as três premissas psicanalíticas com as quais vai trabalhar:

1. Que somos movidos por libido, que é a energia do instinto sexual que engloba tudo o que tem a ver com amor, aproximando-se da noção de Eros em Platão. E que ela se abriga no amor-próprio, no narcisismo, e também no amor objetal, ambos em constante movimento pendular. A libido objetal é a libido que foi direcionada para o objeto, em oposição à libido narcísica, aquela que se alocou no eu.

2. Que somos seres bissexuados, cuja bissexualidade se manifesta na masculinidade por atividade e na feminilidade por passividade.

3. Que existem na vida psíquica dois instintos principais, Eros, a sexualidade no sentido expandido, e o instinto de morte, assim denominado pelo seu anseio final, e que se manifesta por impulso de agressão e destruição.

Nota-se que a apresentação e utilização ao longo do resto do texto de agressão e destruição como manifestações do instinto de morte estão muito longe das discussões teóricas apresentadas por Freud quando da introdução deste na teoria dos instintos em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1917[1915]/1969a), e nos remete diretamente à forma clínica pela qual Melanie Klein se apropriou desta concepção.

 

A bissexualidade

A natureza bissexual do homem é uma concepção psicanalítica originária dos inícios da psicanálise, já sendo debatida por Freud na correspondência com Fliess (1985/1999). A seguir, a bissexualidade vai ser discutida por Freud no âmbito mais geral do desenvolvimento da libido, quando ela se manifesta por meio dos instintos parciais de atividade e passividade, conforme nos é apresentado nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1969l). Somente mais tarde, porém, ainda no mesmo texto, em uma nota de rodapé acrescida em 1915 (p. 207), ele se refere à correlação entre feminilidade-passividade e masculinidade-atividade.

Nesse mesmo ano de 1915, Freud também cita, em "Pulsões e suas vicissitudes" (1915/2007b, p. 158), essa correspondência entre ativo-masculino e passivo-feminino ao descrever a polaridade ativo-passivo como uma das três polaridades presentes na vida psíquica, sendo as outras duas sujeito(eu)-objeto(mundo externo) e prazer-desprazer. Destaca aqui que é somente mais tarde no desenvolvimento que se dá essa fusão de ativo-masculino e passivo-feminino, e que inicialmente na vida psíquica a oposição masculino-feminino não tem nenhum significado psicológico.

Encontramos no trabalho sobre "O eu e o id" (Freud, 1923/2007a) uma passagem bastante elucidativa a respeito do complexo de Édipo, aqui apresentado à luz das duas inclinações existentes em ambos os sexos, a feminina e a masculina, mostrando como a bissexualidade se imiscui nos diferentes destinos do complexo de Édipo, dando origem ao complexo de Édipo positivo e ao negativo. Não há, aqui, porém, referência à atividade nem à passividade.

No texto do Manuscrito de 1931, Freud traz de uma forma absolutamente clara e detalhada os conflitos do complexo de Édipo, agora pensados à luz da masculinidade e da feminilidade e seus correspondentes atividade e passividade.

 

Religião

O interesse na investigação da relação intrínseca das produções sociais, como a religião, com o mundo interno instintivo e a necessidade do indivíduo de se haver com a realidade e a vida em sociedade também remonta aos primórdios dos escritos freudianos. À medida que as observações clínicas e as conceituações psicanalíticas se desenvolvem, também essa relação intrínseca é revista e reformulada.

Cedo Freud relaciona fenômenos culturais e religiosos com fenômenos psicopatológicos, investigando processos psíquicos comuns a eles. É assim quando aproxima a histérica das bruxas medievais, ainda nos anos 80 do século retrasado, no seu Relat ó rio sobre meus estudos em Paris e Berlim (Freud, 1956[1886]/1969, p. 45) e em Histeria (Freud, 1888/1969d, p. 77).

Alguns anos mais tarde, apresenta um curto texto, Atos obsessivos e prá ticas religiosas (Freud, 1907/1969), no qual relaciona os mesmos mecanismos de repressão como subjacentes tanto à neurose obsessiva quanto aos rituais religiosos. E, ainda, explicita a concepção, que será investigada ao longo de sua obra, de que as raízes da religiosidade devem ser atribuídas à constituição instintual humana.

Assim, em "Totem e tabu" (Freud, 1913[1912-13]/1969k) essa constituição instintual é agora pensada com mais detalhes no contexto do complexo de Édipo, na relação do homem com o pai, que é permeada por emoções de ambivalência. O Deus individual de cada um é formado a partir de sua relação pessoal com o próprio pai. Dois fatores básicos desta relação, a consciência moral culposa (Schuldbewusstsein) do filho e a sua revolta (Trozt), que nunca se esgotam, estão, pois, presentes intrinsecamente na raiz da religião. Também o anseio do filho de se pôr no lugar do Deus-pai está presente. Freud já aponta aqui a figura de Cristo como uma saída para mitigar a culpa de se pôr no lugar do pai, por meio do sacrifício da própria vida. Sustenta que o pecado original cristão está relacionado com o pecado cometido contra o Deus-pai, em referência à lembrança daquele assassinato original: "Na doutrina cristã, assim, os homens estavam reconhecendo de maneira mais indisfarçada o ato primevo culposo, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único" (pp. 156-158).

Sublinho aqui o aprofundamento radical da linha de investigação que Freud vinha trilhando, quando concebe e argumenta sobre a origem da organização social humana, o contrato social, a partir de um conflito instintual vivido pelo grupo, dentro das relações emocionais ambivalentes de amor e ódio. A explicação da culpa inconsciente e a compreensão psicodinâmica da figura de Cristo estão em consonância com o aprofundamento que nos é apresentado no presente Manuscrito de 1931.

A ideia da concepção de Deus criada na semelhança da relação com o pai é retomada em vários textos, entre outros, em "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância" (Freud, 1910/1969g), em "Schreber" ("Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia", Freud, 1911/1969) e no "Homem dos lobos" (da "História de uma neurose infantil" (1918[1914]/1969). Neste último, Freud também se refere à identificação do paciente com Cristo, por meio da qual o paciente expressava uma saída para seus conflitos internos, ligados à dominância de uma posição masoquista em relação ao pai, por meio de uma sublimação ideal: como Cristo podia aceitar seu amor profundo pelo pai-Deus sem culpa, e sua tendência masoquista também podia ser drenada por meio da história da paixão de Cristo.

Ao apresentar seu modelo de aparelho psíquico composto pelas instâncias do eu, do id e do supereu, Freud concebe o supereu como resultado de uma profunda identificação com o pai e da introjeção desta relação durante o declínio do complexo de Édipo:

Sendo o Eu-Ideal uma formação substitutiva que entrou no lugar do sentimento de nostalgia e anseio pelo pai, ele contém o germe a partir do qual todas as religiões se formaram. A sensação de humilde religiosidade, à qual o fiel tão nostalgicamente se reporta, resulta de seu juízo a respeito das próprias insuficiências, que, por sua vez, advêm da comparação que o eu faz de si mesmo com seu Ideal. (Freud, 1923/2007a, pp. 46-47)

Freud esclarece, assim, como a relação paterna ou o complexo paterno seguem atuando na mente por meio dessa instância psíquica, e através de suas características próprias, tanto como exigência quanto como proibição, vão estar envolvidos na relação particular de cada um com o seu Deus, construída a partir desta instância. É notável como Freud é assim capaz de descrever um entrelaçamento profundo entre as produções sociais e os anseios, vivências e experiências mais íntimas de cada um.

A religião, a moral e a empatia social – conteúdos principais do que é mais elevado e sublime no homem – eram originariamente uma só coisa. De acordo com as hipóteses que apresentei em "Totem e tabu", foram adquiridas filogeneticamente a partir do complexo paterno. A religião e as restrições impostas pelos costumes e pelas regras morais referem-se ao próprio processo de enfrentamento e superação do complexo de Édipo, enquanto a empatia social decorre da necessidade de superar a rivalidade remanescente entre os jovens membros da nova geração. (Freud, 1923/2007a, p. 47)

Podemos, a partir desse ponto, retomar a ideia apresentada nesse Manuscrito, sobre a identificação com Cristo. Tal qual em outros textos, após uma apresentação do complexo de Édipo e seus conflitos a partir das identificações e relações objetais, tendo em vista a feminilidade-passividade e a masculinidade-atividade, e ressaltando o conflito no menino entre uma posição passiva em relação ao pai, quando identificado com a mãe, e uma relação ativa masculina, quando identificado com o pai, Freud mostra, num golpe de mestre, a identificação com a figura de Cristo harmonizando esse conflito, na medida em que tal identificação supre as duas demandas, pois Cristo ao mesmo tempo se submete ao pai e se torna o pai.

Sublinho o vértice psicanalítico da compreensão religiosa que se dá pelo interior, ou seja, investiga as produções sociais e religiosas a partir das sua relação íntima com a constituição instintual e psíquica de cada um e como ela se expressa e se arranja no grupo, no sentido de se haver com a realidade, tanto da sua constituição instintual quanto do mundo externo.

 

Para finalizar

O Manuscrito de 1931 foi inicialmente publicado em alemão por Ilse Gubrich-Simites e em inglês por Mark Solms, que também o traduziu, em 2006. Ambas as edições vieram acompanhadas de artigos comentando o texto e sua história. Em 2015, é publicada uma tradução para o italiano, de S. Franchini, em edição crítica com comentários de M. Hinz e R. Righi. Também, em início de 2017, surge uma tradução para o francês, com apresentação de Elisabeth Roudinesco.

Em 2017, Alexandre Socha e eu nos propusemos ao projeto de organizar a publicação desse texto agora traduzido para o português, e assim o livro Manuscrito in é dito de 1931 foi lançado em edição bilíngue pela Editora Blucher no final de 2017. Além do texto de Freud com a minha tradução direta do alemão, o livro ainda conta com um prefácio de Alexandre Socha e um posfácio de Luís Carlos Menezes.

 

Referências

Freud, S. (1969a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (C. M. Oiticica, Trad., Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917[1915]         [ Links ])

Freud, S. (1969b). Atos obsessivos e práticas religiosas. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (M. A. do Rego, Trad., Vol. 9). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1907)        [ Links ]

Freud, S. (1969c). Cinco lições de psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (D. Marcondes, J. B. Corrêa, W. I. de Oliveira, D. Mussa, C. da S. Costa, J. Salomão, P. D. Corrêa, Trads., Vol. 11). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910[1909]         [ Links ])

Freud, S. (1969d). Histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago (J. L. Meurer, Trad., Vol. 1). (Trabalho original publicado em 1888)        [ Links ]

Freud, S. (1969e). História de uma neurose infantil. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (E. A. M. de Souza, Vol. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1918[1914]         [ Links ])

Freud, S. (1969f). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (W. I. de Oliveira, Trad., Vols. 4 e 5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1969g). Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (D. Marcondes, J. B. Corrêa, W. I de Oliveira, D. Mussa, C. da S. Costa, J. Salomão, P. D. Corrêa, Trads., Vol. 11). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910)        [ Links ]

Freud, S. (1969h). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (T. de O. Brito, P. H. Britto, C. M. Oiticica, Trads., Vol. 14). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917[1915]         [ Links ])

Freud, S. (1969i). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. O. de A. Abreu, Trad., Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Freud, S. (1969j). Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. L. Meurer, Trad., Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1956[1886]         [ Links ])

Freud, S. (1969k). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Ó. C. Muniz, Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913[1912-13]         [ Links ])

Freud, S. (1969l). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (V. Ribeiro, Trad., Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1999). Sigmund Freuds Briefe an Wilhelm Fliess, pp. 237-239. Frankfurt am Main: Fischer Verlag. (Trabalho original publicado em 1985)        [ Links ]

Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In S. Freud, Obras psicológicas de Sigmund Freud, escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, Coord. geral da trad., Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (2007a). O eu e o id. In S. Freud, Obras psicológicas de Sigmund Freud, escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, Coord. geral da trad., Vol. 3). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Freud, S. (2007b). Pulsões e suas vicissitudes. In S. Freud, Obras psicológicas de Sigmund Freud, escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, Coord. geral da trad., Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (2017). Manuscrito in é dito de 1931 (E. V. K. P. Susemihl, Trad.). São Paulo: Blucher. (Trabalho original publicado em 2006)        [ Links ]

Freud, S. & Bullit, W. (1984). Thomas Woodrow Wilson: um estudo psicol ó gico. Rio de Janeiro: Graal. (Trabalho original publicado em 1966)        [ Links ]

Gubrich-Simitis, I. (2006). Zum Kontext eines bislang unbekannten Freud-Text. Neue Rundschau, 117. Jahrgang 2006, Heft 1,26-35. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag.         [ Links ]

Solms, M. (2006). "Freud" and Bullit: an unkown manuscript, JAPA, 54/4,1276.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 17/4/2018
Aceito em: 14/5/2018

 

 

1 Texto baseado na apresentação feita no evento de lançamento do livro Manuscrito inédito de 1931, Editora Blucher, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) em 24 de fevereiro de 2018.
2 Tradução da autora do original em alemão.

Creative Commons License