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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

INTERFACE COM A CULTURA

 

Psicanálise e mitologia: Ifigênia (1977)1

 

Psychoanalysis and mythology: Iphigenia (1977)

 

Psicoanálisis y mitologia: Ifigenia (1977)

 

Psychanalyse et mythologie: Iphigénie (1977)

 

 

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas, GEPCampinas. Piracicaba. amnagalli@gmail.com

 

 


RESUMO

Mitologia e psicanálise são áreas que se comunicam, considerando em especial o discurso que envolve as questões da angústia e da tragédia da condição humana. Ambas trabalham com a representação de aspectos inconscientes da mente. Neste artigo, desenvolvemos o tema através de uma breve análise do filme Ifigênia, cuja história baseia-se na tragédia grega de mesmo nome. Ifigênia é um filme grego, de 1977, dirigido por Michael Cacoyannis. O filme centra-se na vida trágica de Ifigênia, irmã de Orestes e Electra e filha do rei Agamêmnon – comandante das tropas gregas no cerco de Troia – e da rainha Clitemnestra. Indagamos, com base no conteúdo do filme, se não seríamos todos, em alguma medida, personagens de um mito, convivendo com a tensão de lidar com nossas contradições? A mitologia e a psicanálise se aproximam, assim, por considerarem a angústia como característica da condição humana, que alça, dos escombros, a matéria-prima com que tecemos a arte de viver.

Palavras-chave: psicanálise, mitos, Ifigênia, tragédia


ABSTRACT

Mythology and Psychoanalysis connect with one another, especially when it comes to their discourse on the issues of the anguish and the tragedy of the human condition. Both Mythology and Psychoanalysis deal with the representation of unconscious aspects of the mind. In this paper, we develop this theme through a brief analysis of the movie Iphigenia, which tells the story of Greek tragedy. Iphigenia is a Greek movie, directed by Michael Cacoyannis. It centers on the tragedy of Iphigenia, the daughter of King Agamemnon and Queen Clytemnestra. Agamemnon was the commander of the troops of Troy, and Clytemnestra was Orestes's and Electra's sister. Inspired by the content of the movie, we wonder if we all would not be, to a certain extent, characters of a myth; characters, who live with the tension of dealing with our contradictions. Mythology and Psychoanalysis come close to each other as they understand anguish as typical of the human condition that reveals the raw material with which we weave our lives.

Keywords: Psychoanalysis, myths, Iphigenia, tragedy


RESUMEN

La mitología y el psicoanálisis son áreas que se comunican, especialmente teniendo en cuenta el discurso que envuelve los temas de la angustia y la tragedia de la condición humana. Ambos trabajan con la representación de aspectos inconscientes de la mente. En este artículo, desarrollamos el tema a través de un breve análisis de la película Ifigenia, que narra la historia de la tragedia griega. Ifigenia es una película griega, dirigida por Michael Cacoyannis. La película se centra en la tragedia de Ifigenia, hija del rey Agamenón, comandante de las tropas de Troya, y la reina Clitemnestra, hermana de Orestes y Electra. Nos preguntamos, a partir del contenido de la película, si no somos, en cierta medida, personajes de un mito, viviendo con la tensión de tener lidiar con nuestras contradicciones. La mitología y el psicoanálisis se aproximan cuando consideran a la angustia como una característica de la condición humana que hace resurgir, entre los escombros, la materia prima con la que tejemos el arte de vivir.

Palabras clave: psicoanálisis, mitos, Ifigenia, tragedia


RÉSUMÉ

La mythologie et la psychanalyse sont des domaines qui se communiquent, étant donné en spécial le discours qui concerne les questions de l'angoisse et de la tragédie de la condition humaine. Les deux travaillent avec la représentation des aspects inconscients de l'esprit. Dans cet article, nous développons ce thème par une brève analyse du film Iphigénie, qui raconte l'histoire de la tragédie grecque. Iphigénie est un film grec, dirigé par Michael Cacoyannis. Le film se fonde sur la tragédie d'Iphigénie, la fille du roi Agamemnon – commandant des troupes de Troie – et de la reine Clytemnestre, sœur d'Oreste et Electre. Nous demandons, à partir du contenu du film, si nous n'étions pas, dans une certaine mesure, des personnages d'un mythe, vivant avec la tension de faire face à nos contradictions. La mythologie et la psychanalyse se rapprochent, en considérant l'angoisse comme une caractéristique de la condition humaine qui hausse des décombres les matières premières avec lesquelles nous tissons l'art de vivre.

Mots-clés: psychanalyse, mythes, Iphigénie, tragédie


 

 

O sofrimento diz desaparece!
Contudo todo apetite quer a eternidade,
Quer a profunda, profunda eternidade.
(Assim falou Zaratustra, Nietzsche)

Gott ist tot ("Deus está morto").
(Assim falou Zaratustra, Nietzsche)

1. Mitologia e psicanálise

Mitologia e psicanálise são áreas que se entrelaçam no caminho das palavras, no discurso que envolve as questões da angústia e da tragédia da condição humana. Ambas se locomovem pelos caminhos da representação de aspectos inconscientes da mente. Freud foi um grande admirador e estudioso das fontes mais primitivas da evolução do homem, tais como a mitologia, a filosofia e a literatura antiga. A linguagem própria do inconsciente estrutura a subjetividade humana. Ele começou a aventura psicanalítica descobrindo o poder simbólico da palavra. A clínica psicanalítica verifica em que medida os afetos e as representações estão ligados em complexos laços simbólicos, e como o pensamento, através da expressão verbal e pré-verbal, opera nesse emaranhamento.

A linguagem da mitologia compõe-se de um repertório de narrativas que são transmitidas de geração a geração. Muitas são as definições e as formas de abordar os mitos. Comecemos pela etimologia da palavra: mito vem do grego mythós, cuja tradução mais apropriada seria palavra,mensagem,discurso. É uma forma de comunicação, de caráter eminentemente simbólico, que procura explicar a origem e o significado do mundo – trata-se de um sistema de pensamento de uma determinada cultura, de uma forma de sistematização de questões relativas às angústias do ser humano, em busca de uma forma de conhecimento, seja ela sobre a origem do universo e do homem, sobre o nascimento, a morte, ou sobre outras temáticas essenciais.

São múltiplas as funções exercidas pelas histórias míticas, as quais são baseadas em tradições e lendas que seguem uma perspectiva temporal indefinida. Elas com frequência envolvem uma força divina.

O mito cumpre, na cultura primitiva, uma função indispensável; expressa, acentua e codifica a crença; protege e reforça a moral; vigia a eficiência do ritual e de certas regras práticas para a orientação do homem, não é uma fábula vã, mas uma força criadora, um ingrediente vital da civilização humana. (Grimal, 2005, p. vii)

Nesse sentido, na Grécia antiga, a condição humana era vinculada à existência dos deuses olímpicos, que são representações de forças e níveis da realidade transcendente. O mundo era povoado por deuses que atuavam sobre a vida humana em todos os seus momentos; cabia ao homem viver da melhor forma possível conforme os desígnios divinos. Para uma vida harmoniosa, era necessário conhecer, em cada situação, o âmbito divino correspondente (seus genitores, condições de seu nascimento e lugar na genealogia divina), para que se pudesse agir de forma piedosa com relação à divindade. Era preciso permanecer sempre atento ao sagrado. Esquivar-se de suas premissas poderia resultar em muito sofrimento.

Dentro desse contexto, a tragédia é uma forma transformada do mito. Portanto, há uma diferença clara entre o mito e a tragédia: uma tragédia não é um mito, ela é uma variante recortada e transformada, estética e formalmente, para a arte. Quanto ao conteúdo, a tragédia compreende o relato de acontecimentos terríveis que inspiram comoção. É uma forma dramática cujo fim é despertar o terror e a piedade, com base no percurso do herói, que termina quase sempre com a morte.

 

2. Ifigênia

Ifigênia é um filme grego, de 1977, dirigido por Michael Cacoyannis. O filme centra-se na tragédia de Ifigênia, irmã de Orestes e Electra e filha do rei Agamêmnon – comandante das tropas gregas no cerco de Troia – e da rainha Clitemnestra. Imediatamente antes da Guerra de Troia, Agamêmnon ofende a deusa Ártemis, ao matar um cervo sagrado. Em punição, ela ordena que o rei sacrifique sua filha, só assim os navios de guerra poderiam zarpar para Troia. Participamos, inicialmente, da silenciosa angústia de Agamêmnon, que afirmava ter um grande amor por sua filha – porém, um amor vulnerável aos deuses, os "donos" da guerra. Em seguida, conhecemos Ifigênia, princesa da cidade de Micenas, que recebe um chamado de seu pai a fim de casar-se imediatamente. Ela deveria, assim, viajar para o porto de Áulis. Tal chamado é motivo de surpresa e apreensão para Ifigênia e sua mãe. Apesar disso, Ifigênia prepara-se para a longa viagem e começa a sonhar, inquieta, com seu misterioso pretendente. Chegando às praias de Áulis, acompanhada de sua mãe e de Orestes, seu irmão pequeno, Ifigênia vislumbra a tropa armada, comandada por seu pai, que é impedida de zarpar pela falta de vento. Entre os soldados ali reunidos, encontra-se Aquiles, o "escolhido" por Agamêmnon para desposar Ifigênia. Ele, além de muito belo, é invulnerável, o que encanta a todos, até mesmo Ifigênia e sua mãe. Logo, um criado revela o motivo real que trouxe Ifigênia a Áulis: ser sacrificada para aplacar a ira da deusa Ártemis, que, ofendida por Agamêmnon, suprimira o vento necessário à partida da frota grega. Clitemnestra, furiosa e transtornada, interpela o marido, que – resignado e impotente – confessa sua trama. A jovem inicialmente decide fugir, com a ajuda de Aquiles e de um criado, porém, acaba por entregar-se voluntariamente ao sacrifício, aceitando seu destino e atendendo aos desígnios de Ártemis. As cenas finais ocorrem no altar da deusa, onde um sacerdote comanda o ritual. No último instante, quando a lâmina já toca a sua carne, o corpo de Ifigênia desaparece, substituído pelo de um cervo.

 

3. Conjecturas: a verdade e a mentira

Na sala de análise, mais do que compreensão, buscamos ser. É na experiência com um analista verdadeiro e espontâneo que podemos nos tornar quem somos. Nesse sentido, mais do que saber, tornar-se é o polo que nos leva à verdade (Bion, 2004).

Não seríamos todos, em alguma medida, personagens de um mito, convivendo com a tensão de lidar com as nossas contradições? As ações e emoções apresentadas no filme, que exemplificam e legitimam a realidade psíquica de cada personagem, podem nos levar a pensar que a dor vem do próprio fato de viver; como viver os conflitos? Será que mesmo o mais puro e genuíno amor pode acabar inundado de escuridão e terror?

Estar com o outro traz, para o palco das relações, emoções positivas e negativas que servem como matéria-prima dos vínculos. Sem ter completo domínio sobre as emoções, caminhamos, mergulhamos e sobrevivemos com base no aprendizado nelas e com elas. Quando, por sorte e por um extensivo trabalho psíquico, prevalece a inscrição de memórias afetivas (de qualquer ordem), as ameaças tornam-se brandas, e não obscurecem mais a vida, mesmo que em presença de conflitos.

Podemos estender e relacionar tais observações à tragédia de Ifigênia – em especial, quando, depois de mãe e filha terem sido enganadas, descobrem a verdade de forma cruel, sem compaixão, o que as faz cultivar indagações coloridas pelo rancor, indo em busca de algo que está além da verdade em si. Procuram, cada uma a seu modo, reconhecer, nelas mesmas, suas verdades e mentiras, agora desnudadas no campo de batalha onde a vida e a morte se confrontam.

O prazer da sexualidade narcisista poderá solapar e abolir a fertilidade da parceria, desconectando-a da sexualidade socialista, aberta para as conexões da dinâmica da posição depressiva, fortemente tingida pelas complexas questões edipianas. (Sapienza & Junqueira Filho, 2004)

Ou seja, para vivermos o real contato com o outro e a verdadeira compaixão, há que se deixar a conspiração de lado. De fato, sentir efetivamente a dor e o medo, ou não ter medo de ter medo, expande os vínculos de amor à vida e a consideração pelas verdades. Fechados em si mesmos, e em bases precárias, o novo e o divergente não são incluídos, e sim mortos e expulsos por ataque ou fuga.

Ao ganhar vida própria e sexualidade, Ifigênia é jurada de morte pela força da inveja e pela luta dos personagens, contra os próprios lutos. Os que a condenam não podem viver a perda do ideal, da imortalidade fantasiada. Em vez disso, vivem a complexidade das traições. O conflito dá lugar a desligamentos e desinvestimentos.

Considerando as figuras de Aquiles, Agamêmnon, Ifigênia e Clitemnestra como representantes de nossos conteúdos mentais, como cidadãos de nosso mundo interno, é preciso compreender que convivemos com diferentes predomínios no psiquismo. Ora violento, ora sob o domínio dos impulsos, ora direcionado à ação investigativa, ora interagindo ou rivalizando, somos todos seres que transitam entre Eros e Tânatos, seguindo a travessia do patrimônio emocional humano. A ameaça da morte é sempre vivida com dor (Freud, 1920/1996).

A mitologia e a psicanálise aproximam-se, assim, por considerarem a angústia como característica da condição humana, que alça dos escombros à tessitura da arte de viver. Em relação à psicanálise, seu eixo são as nossas verdades emocionais. Cada um de nós, em sua trajetória rumo à constituição de uma identidade própria, carrega na bagagem seus mitos pessoais. Cabe-nos a tarefa de acomodá-los no tempo e no espaço, para assim conhecer e respeitar o divino e o humano, o que, segundo os gregos antigos, seria o norte da "justa medida". Os recursos do trabalho psicanalítico auxiliam a entrada em nossos turbulentos templos mitológicos, para que neles possamos nos relacionar com a nossa verdade, e com base nisso tornar mais verdadeira nossa relação com o outro.

 

Referências

Bion, W. R. (2004). Transformações: do aprendizado ao crescimento (2.ª ed.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1996). Além do princípio de prazer.In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud(Vol. 18, pp. 17-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Grimal, P. (2005). Dicionário da mitologia grega e romana (5.ªed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Sapienza, A. & Junqueira Filho, L. C. U. (2004). Fatores de conjunção e disjunção no relacionamento de parceria fértil e criativa. Reunião Científica na SBPSP. Campinas, SP.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 12/6/2017
Aceito em: 16/9/2017

 

 

1 Comentário apresentado no Cinema, Estação Cultural, Piracicaba, SP.

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