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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo Jan./June 2018

 

RESENHA

 

Psicanálise e ciência: um debate necessário

 

 

Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco

Psicólogo, psicanalista e doutorando em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, USP. São Paulo. wilsondeacfranco@gmail.com

 

 

Autor: Paulo Antonio de Campos Beer
Editora: Blucher, São Paulo, 2017, 208p
Resenhado por: Wilson de Albuquerque Cavalcanti Franco,1 São Paulo

Psicanálise e ciência: os debates necessários1

A coleção Psicanálise Contemporânea foi lançada recentemente pela Blucher, como parte dos esforços iniciais da editora no campo da psicanálise. Auspiciosamente instalado em meio aos primeiros títulos encontramos Psicanálise e ciência: um debate necessário, de Paulo Antonio de Campos Beer.

Que um livro como esse figure em uma editora como a Blucher – consolidada há décadas no meio das chamadas "ciências duras", como engenharia e física –, que esteja sob os cuidados de Flávio Ferraz – coordenador da consolidadíssima coleção Clínica Psicanalítica e agora da coleção Psicanálise Contemporânea – e, por fim e acima de tudo, que o título tenha sido trabalhado com o esmero que Beer lhe dedicou é motivo de comemoração e esperança para quem leva a sério o tal "debate necessário" de que trata o livro.

Não que seja um debate inédito ou desconsiderado. Longe disso. Abundam obras sobre as relações entre psicanálise e ciência – obras que, por sinal, começaram a surgir quase junto com a psicanálise (e mesmo antes dela, se pensarmos no insólito caso de "Psicologia científica", de Freud, escrito em 1895). Não, o debate não é necessário porque foi deixado de lado, ele é necessário porque tem sido maltratado e submetido a abordagens no mais das vezes marcadas por escolhas retóricas e estratégicas que o autor (o do livro e o da resenha, por ângulos e razões diferentes) reputa desinteressantes, contraproducentes e/ou mesmo empobrecedoras. Pensemos, por exemplo, na célebre assertiva segundo a qual a ciência "forclui" o sujeito, fazendo com que a psicanálise seja uma espécie de "avesso da ciência", ou naquela outra segundo a qual a psicanálise se valida na práxis clínica e por isso não se presta a validações "anônimas", porque científicas: temos aí bons exemplos de evasões ao debate, maneiras de desqualificar o debate. Se considerarmos, no entanto, que o debate é necessário, teremos que nos aventurar para além dessas máximas e palavras de ordem e "meter as mãos" no debate (podendo até mesmo ratificar as máximas que tomei como exemplos, contanto que elas sejam fruto de um pensamento, uma demonstração e, portanto, de um posicionamento no debate, e não antes e de fora dele).

No livro em questão encontramos um exercício bastante claro e específico, demonstração de uma ponderação estratégica diante da problemática.

O livro se compõe de três capítulos principais (emoldurados, claro, por uma introdução e uma conclusão, totalizando cinco unidades argumentativas articuladas). Em um primeiro momento o autor justifica o debate – em função da fundamentação científica requerida das práticas clínicas como condição para sua inserção no corpo de práticas em saúde e na proposição de políticas de saúde, e em função do mesmo requerimento no contexto da sustentação de pesquisas e publicações. Especial atenção é dedicada ao campo da saúde mental pública brasileira, meio a que o autor é próximo e familiar, mas certamente a questão não se restringe a esse campo. É sabido do leitor que os espaços de pensamento que não sejam regulados, calculados e administrados diminui a cada dia, e com isso temos sido convocados a "mostrar serviço" e fundamentar nossas práticas em termos de sua validade, efetividade e produtividade. A ideia que o texto veicula é que é possível e necessário posicionar-se nesse campo, tanto na confrontação da lógica perversa e injusta que ampara sua implantação como na derrubada de sua aparente intocabilidade, "entrando no jogo" e disputando-o (também) "por dentro".

Pois bem, a estratégia mobilizada pelo autor nesse contexto será avançada nos três capítulos "duros" que compõem o cerne do trabalho do livro.

O primeiro deles se dedica a mapear as formas nas quais a psicanálise (e em especial a lacaniana) tem entendido sua relação com a ciência – organizando os principais elementos em jogo e contornando os maiores equívocos e impasses nesse processo, com grande elegância e diretividade. O leitor ficará assombrado ao ver quanto trabalho se desdobra nessas 50 páginas que são como bombas compactas.

Segue-se a isso um percurso preliminar mapeando incidências no debate oriundas da epistemologia e da filosofia da ciência. O trabalho aqui é ainda mais sintético e pontual, como marteladas calculadas em pedra bruta: entre as páginas 103 e 131 tratar-se-á de Popper, Kuhn, Feyerabend, Gilles-Gaston Granger e Hacking, esse último despontando claramente como uma aposta estratégica do autor em meio a esse panorama e como forma de encaminhar-se nesse terreno especificamente. Localizam-se, assim, as principais críticas e posicionamentos relativos da psicanálise no edifício das ciências modernas ocidentais aos olhos de seus "recenseadores" autorizados (os tais epistemólogos e filósofos da ciência). A firmeza, diretividade e pontualidade da discussão mostram, mais uma vez, que não se trata de um cânone didático-pedagógico do tema, mas de uma convocação ao debate, no sentido mais político e estratégico da expressão.

Mas há mais, e muito mais: o autor, para a provável surpresa de muitos, passa no terceiro capítulo à discussão minuciosa de uma série de experimentos neurocientíficos! Trata-se dos experimentos conduzidos por Howard Shevrin e sua equipe, que desde pelo menos 1992 têm-se dedicado a desenhar e conduzir pesquisas voltadas à demonstração dos princípios da psicanálise (enquanto teoria e enquanto prática) por meio do maquinário neurocientífico (incluídos aqui o maquinário "leve", como conceitos, expressões e encadeamentos lógicos, e o "pesado", como máquinas e equipamentos). Pois bem, Shevrin et al., conforme relata Beer, têm obtido sucesso considerável na demonstração dos fundamentos neurocientíficos por trás do pensamento clínico psicanalítico, e com isso têm aberto caminho para o desenvolvimento de pesquisas "hard" que demonstrem a efetividade da práxis clínica psicanalítica. Entramos, aqui, em terreno praticamente inexplorado pela imensa maioria dos psicanalistas interessados no campo, que, por sinal, costumam "proscrever" discussões como essas ao terreno da heresia antissujeito e antipsicanálise.

Como disse no início desta resenha, é motivo de comemoração e otimismo que uma obra como essa figure numa coleção intitulada Psicanálise Contemporânea. Afinal, sabemos que a psicanálise não é extemporânea, e portanto não é eterna, e sabemos melhor ainda que não queremos uma psicanálise anacrônica e ultrapassada. Comemore-se, portanto, a coragem de Paulo Beer ao propor-se a debater de forma corajosa com aqueles que estão no conforto de seus gabinetes, de seus consultórios, de suas escolas e mesmo de suas bancadas de laboratório, a coragem de percorrer esses terrenos nesse pequeno grande livro, a coragem enfim de convocar-nos para fora de nossos já velhos saberes e dizeres e para o seio desse debate necessário.

 

 

Recebido em: 14/9/2017
Aceito em: 3/10/2017

 

 

1 Trabalho beneficiado por bolsa FAPESP, processo número 2015/02520-7.

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