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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora. jornaldepsicanalise@sbpsp.org.br

 

 

Concluímos um ciclo iniciado em 2017 em que nos ocupamos de alguns pilares da metapsicologia e da pesquisa clínica, significativos para a identidade psicanalítica. A proposta para este número é refletir sobre a fertilidade dessas bases conceituais no contexto cultural peculiar da atualidade.

Levando em conta a atemporalidade inerente à vida psíquica inconsciente é possível supor que o desenvolvimento da capacidade humana de simbolização dependa mais das vicissitudes da interrelação entre subjetividade e intersubjetividade - eu/outro, interno/externo - do que, propriamente, do contexto histórico-cultural em si mesmo.

Entretanto, podemos nos perguntar se o modelo psicanalítico de mente muda conforme o momento histórico ou se mantém sua validade assegurada, independente dos fatores circunstanciais mais concretos ou externos. Não nos referimos a mudanças nos procedimentos clínicos e metodológicos, uma vez que Freud (1990a/1905; 1990b/1937) já os vislumbrava, quando considerava algumas contraindicações ao tratamento psicanalítico em seu caráter provisório:

As psicoses, os estados confusionais e a depressão profundamente arraigada (tóxica, eu poderia dizer), por conseguinte, são impróprios para a psicanálise, ao menos como tem sido praticada até o momento. Não considero nada impossível que, mediante uma modificação apropriada do método, possamos superar essa contra-indicação e assim empreender a psicoterapia das psicoses. (Freud, 1990a/1905, p. 247)

Quanto ao modelo de mente da psicanálise, vale lembrar que os fenômenos psicóticos foram precisamente formulados por Freud (1990c/1900) enquanto manifestações da incapacidade de sonhar, devido a falhas nas funções de censura e resistência características do "trabalho do sonho" que servem, principalmente, para preservar a saúde mental, e não simplesmente para preservar o sono e realizar desejos, conforme discutimos no editorial do número 93 sobre "Sonhos" deste Jornal (Gavião, 2017).

A função dos sonhos de criar uma barreira pré-consciente para filtrar conteúdos afetivos inconscientes existencialmente relevantes se revela também na vigília, nas reveries, memórias-sonho, associações livres em geral, fenômenos psicoafetivos, simbolizantes e intersubjetivos imprescindíveis para a técnica psicanalítica, e bastante valorizados na literatura sobre a mente do analista e sua importância na evolução do processo analítico. Klein, Bion, Winnicott, entre outros autores clássicos e contemporâneos, confirmam a previsão de Freud de que o alcance técnico da psicanálise poderia se desenvolver e se aprofundar em níveis mais primitivos da mente.

Com o tema escolhido para este número, Psicanálise hoje: clínica e formação, estendemos as questões conceituais e técnicas ao contexto da formação psicanalítica, na perspectiva da contemporaneidade.

Ao diferenciar "processo psicanalítico" de "intervenção psicanalítica", Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho refere-se a "estilos" e "aplicações" da psicanálise, em contraposição à ideia de clínicas psicanalíticas variadas, alertando para o risco de banalizações diante do paradoxo existencial evocado pela experiência psicanalítica, que implica colocar o dedo nas próprias feridas.

Bernardo Tanis, presidente da SBPSP, nos brinda com seu artigo voltado à formação em psicanálise em que formula a hipótese de que a ampliação da experiência de formação em áreas fronteiriças, tanto no sentido de configurações clínicas no limite da analisabilidade como de contextos interdisciplinares, poderia ter um efeito catalisador, sem perda da especificidade.

Ligia Todescan Lessa Mattos dialoga com Junqueira e Tanis quando questiona: "Peculiaridades da vida contemporânea mudaram os pacientes? Há um novo modelo de mente exigindo uma 'nova psicanálise'? Ou são os avanços dos conhecimentos teóricos e técnicos da psicanálise que permitem acolhermos hoje pacientes antes vistos como 'não analisáveis'?" (p. 43).

Alfredo Naffah Neto reúne apontamentos sobre a análise de uma paciente esquizoide, no enfoque winnicottiano, caracterizando o que Winnicott denominava "análise modificada". Fátima Regina F. C. de Alencastro Graça e Luís Cláudio Mendonça Figueiredo enriquecem a discussão com uma linguagem original e elucidativa da clínica da clivagem e sua metapsicologia associada à "neutralização energética", ao congelamento dos afetos. Alinhados ao vértice winnicottiano, Walter José Martins Migliorini e Lídia Maria Chacon de Freitas apresentam o curioso desenvolvimento da "capacidade de incomodar" e sua relação com os objetos transicionais. Fernanda Cristina Dias contribui com detalhamentos sobre a constituição do "objeto subjetivo" no caso de Margaret Little, analisanda de Winnicott que publicou um relato autobiográfico e tornou-se psicanalista.

Claudia Vannozzi Brito e Alfredo Naffah Neto apresentam a extensão do setting analítico ao atendimento de pais no tratamento psicanalítico de crianças e adolescentes, em toda sua complexidade transferencial e contratransferencial, assim como Tania Mara Zalcberg e Diva Aparecida Cilurzo Neto na "clínica 0 a 3 anos".

A atitude analítica é elaborada por Elizabeth Lima da Rocha Barros e Maria Olympia A. Ferreira França, cada uma com seu estilo, num diálogo direto com membros filiados ao Instituto da SBPSP, como Marion Minerbo e suas interessantes proposições a respeito do manejo de "elementos-beta tanáticos" e "elementos-beta eróticos".

A "Associação dos Membros Filiados" (AMF) oportunamente trata dos três modelos de formação reconhecidos pela IPA, segundo o olhar de Eduardo de São Thiago Martins, Luís Carlos Menezes e Maria Alejandra Vázquez et al.

Orlando Hardt Jr. e Anne Lise S. Scappaticci retomam os percursos de Freud e Bion, respectivamente, com instigantes dados biográficos e autobiográficos.

A perspectiva bioniana é vivamente comunicada por Francesca Ricci, Maria Luiza Salomão e Felípe F. De Nichile que também assina uma tradução de Green. Péricles Pinheiro Machado Jr. compartilha uma experiência intensiva de luto, tema sempre atual.

De um ângulo mais amplo sobre a clínica psicanalítica inserida na cultura contemporânea, Gina Khafif Levinzon trata do suicídio em adolescentes, uma realidade impactante. Silvia Lobo observa o risco de extinção da experiência mais íntima de maternagem, à medida que a mulher ocupa novos espaços sociais.

No primeiro editorial deste projeto me referi ao avanço do neofascismo no Brasil e no mundo, que de lá para cá previsivelmente se intensificou, levando à reflexão sobre o instinto de morte como um forte referencial da contemporaneidade: intolerância, violência emocional, autodestrutividade individual e coletiva.

As temáticas abordadas nos diversos artigos deste número explicitam o valor da psicanálise como atividade simbolizante, geradora de sentidos, sempre exigindo cuidado qualitativo com a formação de novos psicanalistas, o que implica o cuidado com a própria mente no exercício da função analítica. O setting institucional pode ser concebido como continente dinâmico, consistente e favorecedor da imersão nas dimensões inconscientes das relações humanas e em suas inevitáveis manifestações destrutivas.1 Torna-se indispensável a diferenciação entre a clínica psicanalítica contemporânea (demandas narcísicas e simbolização precária) e a clínica da formação psicanalítica (imersão pessoal do analista em formação - como analisando e como analista).

Agradeço a participação e coleguismo dos integrantes deste projeto editorial, especialmente a Celso Antonio Vieira de Camargo com quem aprendo, constantemente, que parceria se faz com serenidade, disponibilidade e generosidade.

Pelos desafios e trocas tão enriquecedoras, minha gratidão a Evelyn Finguerman Prizant, Geraldo Galender, Lídia Maria Chacon de Freitas, Marcella Monteiro de Souza e Silva, Marcus Souto Abrantes, Mônica Jeanine Fischbach Saliby, Patrícia Nunes, Paula Freitas Ramalho da Silva, Stephania A. Ribeiro Batista Geraldini, Sylvia T. Pupo Netto e Yone Vittorello Castelo. Pela confiança e estímulo, agradeço ainda, a Vera Regina J. R. Marcondes Fonseca e a Bernardo Tanis.

Um ótimo Ano Novo!

 

Referências

Freud, S. (1990a). Sobre a psicoterapia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 7, pp. 239-251). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1990b). Construções em análise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 289-304). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1990c). A interpretação de sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 5, pp. 323-566). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Quinodoz, D. (1992). O setting psicanalítico como instrumento da função continente. International Journal of Psycho-Analysis, 72,627-635. (R. B. Colucci, Trad.         [ Links ])

 

 

1 Quinodoz (1992) refere-se a dois modelos de continente possíveis de serem associados ao setting psicanalítico clássico, com frequência alta de sessões, que podem ser valiosos à discussão historicamente polêmica e calorosa ao tema da formação: o continente estático, como um vaso contendo leite (regulamentação como burocracia impedindo a criatividade) e o continente dinâmico, como um seio contendo e produzindo leite na relação com o bebê (regulamentação como cuidado institucional promovendo a intimidade criativa).

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