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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

PSICANÁLISE HOJE: CLÍNICA E FORMAÇÃO

 

Psicanálise: seus estilos e aplicações1

 

Psychoanalysis: its styles and applications

 

Psicoanálisis: sus estilos y aplicaciones

 

Psychanalyse: ses styles et ses applications

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. mr.junqueira@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo surgiu como comentário ao eixo "A psicanálise e suas clínicas", proposto no I Simpósio Bienal da SBPSP - O Mesmo, o Outro. Sua proposta é modificar o título do eixo para "Psicanálise: seus estilos e aplicações". Quanto aos estilos, apresenta o contraste entre as psicanálises argentina e brasileira proposto por Roudinesco, em que a última é vista como um condensado "antropológico, colonial e bissexual". Quanto a suas aplicações, ressalta a importância de diferenciar um "processo psicanalítico" de "intervenções psicanalíticas", para evitar a banalização e reações paradoxais, nas quais o remédio acaba sendo mais danoso que a doença.

Palavras-chave: processo psicanalítico, intervenção psicanalítica, alteridade


ABSTRACT

This article arose as a commentary to the axis "Psychoanalysis and its clinics", proposed in the Ist Biennal Symposium of the Brazilian Psychoanalytical Society of São Paulo - The Same, the Other. It suggests to modify the title to "Psycoanalysis: its styles and applications". Concerning the styles, it mentions the contrast between Argentinian and Brazilian psychoanalysis suggested by Roudinesco, where the later is seen as an "anthropophagic, colonial and bisexual" cluster. Concerning its applications, it stresses the importance to differentiate a "psychoanalytic process" from "psychoanalytical interventions", in order to prevent banalities and paradoxical reactions, where the medicine is more harmful than the disease.

Keywords: psychoanalytic process, psychoanalytical interventions, alterity


RESUMEN

Este artículo nació como una evaluación del eje "Psicoanálisis y sus clínicas", propuesto en el I Simposio Bienal de la SBPSP - El Mismo, el Otro. Nuestra propuesta es cambiar su título para "Psicoanálisis: sus estilos y aplicaciones". Cuanto a los estilos, presenta el contraste entre el psicoanálisis argentino y brasileño sugerido por Roudinesco, en que el último es visto como un condensado "antropofágico, colonial y bisexual". Cuanto a sus aplicaciones, resalta la importancia de diferenciar un "proceso psicoanalítico" de una "intervención psicoanalítica", para evitar la banalidad y reacciones paradojales, donde el remedio es peor que la enfermedad.

Palabras clave: proceso psicoanalítico, intervenciones psicoanalíticas, alteridad


RÉSUMÉ

Cet article est née comme un commentaire à l'axe "La psychanalyse et ses cliniques", qui a été proposé dans le I Symposium Biennale de la Société Brésilienne de Psychanalyse de São Paulo - Le Même, l'Autre. Sa proposition est modifier son titre pour "Psychanalyse: ses styles et ses applications". Autant que les styles, on présente le contraste parmi la psychanalyse argentine et la brésilienne proposé pour Roudinesco, où la dernier est vue comme une condensation "anthropophagique, colonial et bisexuel". Autant que ses applications, on relève l'importance de différencier un "processus psychanalytique" d'une "intervention psychanalytique", pour éviter la banalité et des réactions paradoxales, où le remède est pire que la maladie.

Mots-clés: processus psychanalytique, intervention psychanalytique, altérité


 

 

O marketing, uma das armas poderosas da vida moderna, já provou ser uma faca de dois gumes: será que ao propormos o título "A psicanálise e suas clínicas" nós, psicanalistas, não estaríamos lançando mão dele para divulgarmos o nosso Simpósio? Além do mais, esta expressão pode evocar um viés expansionista que, acredito, está longe de nossas pretensões: isto, no entanto, não quer dizer que não devêssemos, sempre que possível, incrementar a divulgação da psicanálise. Eu me sentiria mais confortável com o título acima e espero esclarecer por quê.

Em relação ao estilo, recomendo o ótimo artigo de Elizabeth Roudinesco (2018), "Cidades da psicanálise", publicado no número de maio passado da revista Serrote, em que ela discute a reinvenção da paixão freudiana, por meio de um mapa afetivo entre a Europa e a América Latina, neste caso específico, entre Buenos Aires e várias cidades brasileiras. Ela sugere que, durante o entreguerras, Buenos Aires reinventou o amor pela psicanálise, num momento em que a epopeia vienense estava acometida de uma espécie de melancolia, por ser fruto de uma "sociedade liberal depressiva", na qual os tratamentos da alma pareciam pertencer mais à esfera da farmacologia do que ao difícil processo de imersão no inconsciente.

Quanto ao Brasil, esse caldeirão miscigenatório, em que, segundo uma pesquisa, encontramos 136 tons de pele, tudo se passaria como se a

curiosidade pela alteridade os impelisse [os brasileiros urbanos] cada vez mais a compreender e escutar as diferenças culturais ... Quanto aos terapeutas, interrogam-se tanto sobre os distúrbios psíquicos - coletivos ou individuais - como sobre a maneira de abordá-los nos meios sociais mais pobres, em especial nas favelas. (Roudinesco, 2018, p. 172)

Sua lente passeou pelo Rio, Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Campinas e Belo Horizonte, levando-a a produzir um condensado no qual:

As relações entre o corpo e o intelecto são de natureza antropofágica, colonial e bissexual. Comer o outro, recalcar o outro, cuspir o outro, isto é, o inimigo, o estrangeiro, o índio da Amazônia, o próximo, o mestiço, o semelhante, o miserável, o homem e a mulher: tal seria a maneira como o Brasil incorpora a imagem que faz de si mesmo, em sua relação com o mundo europeu, um mundo sempre vivido no modelo de uma projeção oscilante entre devoção e rejeição. (Roudinesco, 2018, p. 173)

Citando o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, de 1928, que convida seus contemporâneos a uma "revolução caraíba", visando a resgatar o matriarcado original, que permitia a expressão de todos os desejos recalcados, ela lembra que "só a degustação simbólica do colonizador permitiria à modernidade brasileira consolidar-se segundo um processo de devoração estética, que consiste não em imitar a civilização europeia, mas em comê-la a fim de melhor assimilá-la" (Roudinesco, 2018, p. 175).

Historicamente, as escolas psicanalíticas brasileiras acomodaram-se não nas faculdades de medicina, mas sim nas de psicologia, instaurando uma osmose completa entre as práticas clínicas e a transmissão da doutrina e dos corpus. Tendo sido fundadas por pioneiros locais como Durval Marcondes em São Paulo e Júlio Porto Carrero no Rio, que não tinham quaisquer pretensões a gurus, a psicanálise brasileira desenvolveu-se como um assunto coletivo sem reivindicar figuras de autoridade: "daí sua força clínica mais sólida, desde o início do século XXI, do que a dos países europeus" (Roudinesco, 2018, p. 176). Achei importante reproduzir esta afirmação, apesar de achá-la precipitada.

Voltemo-nos agora, para a questão das "aplicações" da psicanálise, assunto mais polêmico e que me permitirá comentar as formulações dos colegas Ana Paula Terra Machado, da sbpdepa, e Bernardo Tanis, da SBPSP. Gostaria de adiantar que, em essência, estou de acordo com o conteúdo de suas afirmações, mas, no que diz respeito à forma, quero fazer alguns reparos e mesmo expressar algumas divergências.

Não por acaso, ambos os autores citam a mesma passagem do artigo de Freud de 1913 "O início do tratamento", em que ele ressalta que "a extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas ... resistem à mecanização da técnica". Senti que o aval do próprio Freud foi convocado como uma "hipótese definitória" (Bion, 1963, p. 71) para, no limite, sustentar a existência da pluralidade da clínica psicanalítica, o que me parece discutível, a menos que se entenda que tantas serão as clínicas quantos forem os analisandos. A advertência de Freud, a meu ver, pretende tão somente nos alertar que, para cada pessoa, temos de dispor de uma dada sensibilidade, uma dada escuta, um tipo particular de comunicação e um arsenal teórico que melhor atendam às suas necessidades e/ou aspirações.

Ana Paula não se furta a posicionar-se no "debate sobre psicanálise ou psicoterapia psicanalítica", afirmando que, "se o nosso objeto é o inconsciente e que nosso trabalho ocorre no campo dinâmico da transferência, estamos diante de um trabalho psicanalítico". Eu concordo que poderemos detectar aqui um "trabalho" no sentido de uma abordagem psicanalítica, mas acho que esses elementos são insuficientes para caracterizar um processo psicanalítico: para tanto, eu acrescentaria a atmosfera de solidão e abstinência, a dinâmica de ausências e presenças, as vivências emocionais ligadas à remuneração desse trabalho, a dialética entre acting-outs e acting-ins, o exercício de uma ludicidade não utilitária e a busca incansável por inovações de toda ordem, em que até o acaso merece ser considerado, como nos exemplos da serendipity de Walpole e do efeito beija-flor de Johnson. É verdade que, em seguida, ela menciona a abstinência e a dinâmica fala-silêncio.

Somos também alertados para a importância fundamental do enquadre interno do analista, aquilo que Bion chamou de vértice psicanalítico, categorizando-o na posição D4 da sua Grade, e que representa a mente "atentamente insaturada". Quem procura um psicanalista, porém, não está necessariamente em busca de psicanálise e, muitas vezes, nem sabe o que seja esta atividade: é claro que poderemos "auscultar" (sic, Ana Paula) sua disponibilidade para que ela por meio de intervenções investigativas e, num momento adequado, possa ser encaminhada a um processo psicanalítico.

Acho muito oportuna a lembrança sobre a importância do amor na sustentação de um processo psicanalítico, principalmente nos momentos de turbulência e desencontro: assim como na vida de um casal, nesses momentos, o que pode evitar um impasse é recorrer ao que chamo de "lençol freático amoroso do vínculo" e, por meio dessa sondagem, irrigá-lo novamente com tolerância e esperança.

Ao focarmos a abertura para o social, observamos, sem dúvida, que o pensamento psicanalítico se difundiu capilarmente por todos os seus recantos, obrigando-nos, no entanto, a estabelecer uma diferenciação estrita entre a aplicação de seus recursos em situações não analíticas e o nascimento desses recursos no interior de um processo psicanalítico.

Li, recentemente, uma crítica de um educador (Bondía, 2001) ao sistema educacional contemporâneo, que inunda o sujeito com informações e opiniões sem lhe permitir adquirir um "saber de experiência": para que essa aquisição possa ocorrer, ele acha necessário que o sujeito moderno hiperativo consiga submeter-se a um "gesto de interrupção", ou seja, que pare para pensar, olhar, escutar, sentir, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

Ora, no nosso caso, só é possível ocorrer isso no interior de um setting psicanalítico, pois, fora dele, nossas intervenções serão necessariamente prejudicadas por serem proferidas do interior de um veículo que, com frequência, acaba facilitando seu trajeto através de atalhos.

Tomemos como exemplo o episódio da série catalã Merlí, em que o professor se dirige à casa de um aluno, Ivan, que desenvolvera uma fobia escolar e se trancara no apartamento. Respondendo a um apelo da mãe, Merlí dirige-se ao refúgio do aluno, bate na porta e, não obtendo resposta, fala com segurança e ponderação: "Ivan, eu sei que você está aí sequioso para que alguém venha te ajudar a sair dessa prisão: eu vou esperar aqui fora até você conseguir abrir a porta, que você mesmo trancou".

Episódios como esse, recorrentes nessa excelente série, nos encantam como seres humanos e como psicanalistas por suas implicações educacionais, familiares e sociais, mas, com certeza, lhes falta a estrutura processual em que Freud e seus seguidores garimparam o ouro da psicanálise. Não há dúvida, por exemplo, de que a medicina socorrista é de grande ajuda em situações de desastres ou de guerras, mas a essência de seus recursos foi desenvolvida mediante investigações realizadas com rigor metodológico em laboratórios de pesquisa. Estou convencido de que, na psicanálise, o rigor metodológico necessita da estrutura do setting, já que no seu interior já nos defrontamos com o universo dos mecanismos psíquicos essenciais acima mencionados.

Sinto-me muito à vontade para corroborar os relatores quando afirmam nossa necessidade de "expandir o espectro das variantes de intervenção psicanalítica", como sugerido por Bernardo, bem como para incentivar os jovens analistas a rastrearem modelos metapsicológicos em qualquer campo do conhecimento, atividade na qual, aliás, nossa Sociedade foi pioneira ao organizar, desde 1992, quatro Encontros Bienais, dos quais tive o privilégio de ser o idealizador e coordenador.

Por isso, eu preferiria acreditar que o que oxigena a psicanálise não é a diversidade da clínica (Ana Paula), mas sim a consolidação de seus pilares metapsicológicos por meio da inspiração encontrável no conjunto da cultura, como, por exemplo, a capacidade negativa de Keats, a "incapacidade positiva" de Beckett, Artaud anunciando Van Gogh como o suicida da sociedade, o anão no ombro do gigante de Newton, os excessos pervertedores da excelência de Coleridge, o medo como pai da sagacidade, de Emerson, ou o Deus representado por um círculo cujo centro estaria em todo lugar, de Empédocles.

Aliás, estou convicto de que está reservado à psicanálise um caminho próximo àquele percorrido por Aby Warburg (1866-1929), de forma pioneira, no seu Atlas de imagens Mnemosyne, em que, por meio da confrontação associativa de quaisquer imagens expressivas, ele empreendeu o estudo do processo civilizador com base naquilo que chamou de "fórmulas de páthos"(Patosformeln), ou seja, o que Freud, seu contemporâneo, estava formulando como a "pulsão inconsciente". Mas Warburg anteviu um dilema institucional idêntico àquele que estamos enfrentando hoje na psicanálise, ao criticar a prática de fetichizar a "novidade" e supervalorizar o "prazer na expansão" (Expansionlust), em detrimento do "poder do processamento" (Verarbeitungskraft) do rico material já obtido: no caso dele, pela história da arte e pelas mídias comunicativas, em nosso caso, pelo universo mental desvendado por nossa jovem ciência, que, apesar de já existir embrionariamente antes de Freud, como atestado por Ellemberger (1970) no seu excelente The discovery of the unconscious, só nasceu após um parto por ele instrumentalizado.

Warburg, além do mais, acabou tendo uma apreensão vivencial do "processo psicanalítico", já que, em sua obsessão pelo mapeamento da Nachleben der Antike (a "vida eterna das antiguidades", conceito que ecoa a volta do reprimido freudiana), acabou tendo um colapso psicótico que o levou ao Hospital de Bellevue, e ali estabeleceu um intenso intercâmbio "científico" com figuras do porte de Biswanger e Kräpelin, fato de grande utilidade na elaboração de sua dor psíquica.

Esse dilema de como progredir num campo do conhecimento sem abdicar dos êxitos já obtidos não é novo, mas sempre requererá firmeza e ponderação. Em 1842, Eça de Queiroz escreveu um ensaio premonitório em relação às previsões atuais a respeito da extinção do livro pela mídia eletrônica: naquele então, estava em jogo a ameaça que o jornal pudesse representar para a sobrevivência do livro. O escritor argumentou que isto não ocorreria devido às deficiências do novo veículo de comunicação: "aligeiramento do juízo", pouca aferição da veracidade das ideias, incitação à vaidade. O setting psicanalítico, por exemplo, possui a consistência de algo processual do mesmo modo que a informação do livro em relação à Wikipédia ou à disputa pirata das redes sociais.

Com isso, retornamos à questão do marketing, só que agora para tentar esclarecer uma importante questão conceitual, qual seja, o acolhimento da psicanálise pelo conjunto da sociedade. Este é um assunto diretamente ligado ao objeto específico da psicanálise, a dor psíquica. O fato inconteste é que a dor psíquica (e, por extensão, a própria psicanálise) é um sucesso de crítica, mas um fracasso de público. Senão vejamos: acabo de fazer uma compra numa loja de roupas, e o vendedor, ao saber que eu era psicanalista, comentou: "Eu estudei psicologia até o segundo ano, mas eu amo 'psicanálise', aliás, eu faço psicanálise há vários anos". Não é difícil deduzir-se que o termo "psicanálise" está sendo usado aqui como algo de domínio público, o que, até mesmo, permite que qualquer psicólogo recém-formado possa, tranquilamente, afixar a placa de psicanalista na porta de seu consultório.

Isso nos remete a outra faceta fundamental: a psicanálise no Brasil, e em vários outros países, não é uma profissão regulamentada, entre vários motivos, porque, se o fizermos, a engessaremos numa camisa de força acadêmica e científica alheia à sua essência. Isto, por outro lado, nos relega a uma terra de ninguém, nos deixando vulneráveis a qualquer regulamentação espúria engendrada na calada da noite, e que poderia até nos lançar na ilegalidade.

Outro aspecto de grande importância é o que poderíamos chamar de "reações paradoxais". Quando eu era residente de psiquiatria, havia no meu grupo um colega que tinha estagiado numa comunidade terapêutica de base psicanalítica, que só conseguia enxergar os pacientes através de lentes impregnadas de castrações, projeções e conflitos edípicos - o perigo aqui é a banalização. Por outro lado, o grupo que eu coordenava atendeu um neurótico obsessivo-compulsivo grave, a quem eu, após várias entrevistas, ofereci uma interpretação psicanalítica selvagem, que teve efeito catastrófico: aquilo despertou nele um vulcão de angústia, levando a família a tirá-lo do hospital a seu pedido. O cuidado nesses casos é não brincarmos com fogo, a menos que estejamos dentro de uma câmara pouco inflamável e protegidos com roupas adequadas.

Last but not the least, o enfrentamento da dor psíquica sofre uma série de boicotes, seja por parte do próprio sujeito, que tende a empurrá-la para baixo do tapete, seja pela concorrência desleal que promete eliminá-la por um passe de mágica, seja porque a eliminação da dor física, através de fármacos ou fisioterapia, é muito mais expedita e gratificante. A psicanálise, então, para existir, teria antes que ajudar as pessoas a superarem um paradoxo existencial, o de porem seu próprio dedo em suas feridas.

Tentarei ilustrar isso na clínica. Num primeiro momento, o analisando, um empresário de cerca de 50 anos, queixa-se, como de costume, da postura de sua esposa, que sempre tenta resolver os problemas por meio do princípio do rebaixamento. No caso, a dificuldade de sua filha de passar de ano na ótima escola que frequentava, vislumbrando, como solução, transferi-la para uma escolinha de periferia. A filha retorna do primeiro dia de aula reclamando amargamente de ter sido rebaixada para uma escola tão chué. (Ele comenta, suspirando, como está sendo duro reconhecer quão perturbada mentalmente é a mulher com quem se casou.) No entanto, faz um esforço para não a criticar por reincidir em posturas derrotistas, mas somente alertá-la de que "nós temos de estar preparados para admitir que esta manobra não funciona". Nesse momento, a esposa retoma, o que faz habitualmente, uma velha fieira de queixas: que ela não queria ter filhas, que o culpado era ele, que insistiu, que a carga maior sempre ficava com ela, como no episódio recente em que teve de aguentar a filha em casa, vários meses, durante um surto psicótico.

Temos aqui a reencenação de uma velha disputa do casal: o analisando privilegiando investir o dinheiro contado de seu trabalho em propiciar, a si e à família, atendimentos de boa qualidade; a esposa, porém, sempre considerou isso um gasto perdulário, optando por andar de ônibus, só frequentar profissionais de segunda categoria, não se permitir bons restaurantes, e assim por diante.

Mais uma vez, chamo sua atenção para o fato de estarmos nos embrenhando na dialética entre a excelência e a precariedade, o grande e o pequeno, o sólido e o frágil. Ele associa livremente com um sonho daquela noite. Surge diante de si uma grande montanha rochosa, e ele sente que seria legal instalar sua empresa no pico dela: no entanto, quando resolve descer, percebe no caminho uma grande pedra meio solta que, se tocada, poderia despencar e matar uns pescadores que estavam lá embaixo pescando à beira-mar. A cena, agora, se desloca para a pesca: havia um peixe grande que estava mordendo um peixe maior ainda, mas isto foi fatal, já que ele foi pescado por tabela, na medida em que sua vítima fora pescada pelos pescadores.

A lembrança desse sonho leva-o a associar com um episódio do dia anterior. Na saída da sua empresa há uma faixa de pedestres; lá chegando, percebe uma senhora parada na calçada aguardando sua vez; fiel à sua decisão recente de respeitar o pedestre, verificou se alguém vinha atrás de si, e resolveu ir parando; uma caminhonete que estava ao seu lado resolveu acompanhá-lo, mas um motoqueiro que vinha atrás dela entrou em sua traseira; ele sentiu-se culpado por este acidente, concluindo que nem sempre o melhor é fazer a coisa certa.

No cenário apresentado, a análise e, por extensão o analista representam o investimento sólido, coisa que o analisando sempre se esforçou para oferecer às suas duas filhas, mas que a esposa repudia veementemente por achar um luxo absurdo. O fato é que o analisando teve um colapso mental no passado, e, por conta própria, "descobriu a psicanálise": desde então, ele tem se beneficiado desse trabalho, conseguiu que a filha mais velha fizesse uma análise e, há quatro anos, ao perceber que a filha menor estava sofrendo emocionalmente, tentou encaminhá-la para um atendimento, que foi vetado pela esposa. Recentemente, essa adolescente teve uma crise psicótica, e, só então, foi levada para iniciar uma análise e, a seguir, a um tratamento medicamentoso.

A psicanálise, como a empresa do analisando, não pode instalar-se no alto de uma montanha ou de uma torre de marfim, sem correr o risco de despencar, mas, por outro lado, sua potência máxima para lidar com a dor psíquica está umbilicalmente ligada a ocorrer num setting em que esta dor possa ir sendo destilada em doses homeopáticas e por meio de estratégias metapsicológicas que nos evocam a luta pela sobrevivência ocorrida na natureza. Uma bela representação disso aparece no sonho do analisando: o analista-pescador, para chegar ao analisando-peixe menor, precisou esperar que ele se alimentasse do peixe maior para, então, poder ser fisgado pela interpretação-construção psicanalítica.

Minha intenção, ao apresentar essa vinheta, foi nos situar diante de uma "imagem processual" daquilo que o setting psicanalítico pode nos oferecer.

Aproveitando a temática deste nosso I Simpósio Bienal, poderíamos parafrasear Bion e imaginar um diálogo entre "O mesmo" (representado pela psicanálise hoje) e "o Outro" (representado pela psicanálise amanhã). De fato, no seu livro The dream, primeira parte de A memoir of the future, há um interessante diálogo entre "O mesmo", representado por Myself, e "o Outro", representado por Bion.

Num dado momento Myself afirma que a palavra "sentimento" em si mesma não quer dizer nada, pois, como Kant assinalou, "conceitos sem intuição são vazios, e intuições sem conceitos são cegas".

Bion replica: "Eu conheço esta citação, mas será que aquilo que ele tinha em mente é aquilo que você entendeu?"

E Myself devolve: "Não tenho a menor ideia sobre aquilo que ele tinha em mente, mas eu estou usando os 'conceitos dele' para se casarem com as 'minhas intuições', pois deste jeito, eu consigo saber o que 'Eu tenho em mente'. Se eu conseguisse justapor você comigo, os dois juntos, comporiam algo expressivo".

Rosemary opina como terceiro incluído dizendo: "Parece que vocês estão se entendendo muito bem. Tão bem, que eu quase diria que vocês são a mesma pessoa".

Bion e Myself em uníssono: "Eu também" (Bion, 1975, pp. 206-207).

Chegamos, assim, à questão crucial de como dirimir o dilema psicanálise x intervenção psicanalítica: do meu ponto de vista, este é um falso dilema, já que, como pessoas físicas, estamos fadados a enfrentar as agruras de uma formação "clássica", mas que, como pessoas jurídicas, poderemos fazer "intervenções psicanalíticas", como Merlí, e, com isso, quem sabe, atiçar a curiosidade do vulgo para essa tal de psicanálise.

 

Referências

Bion, W. R. (1963). Elements of Psychoanalysis. London: Heinemann.         [ Links ]

Bion, W. R. (1975). A Memoir of the Future. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bondía, J. L. (2001). Leituras S. M. E. Campinas.         [ Links ]

Ellenberger, H. (1970). The discovery of the unconscious. New York: Basic Books.         [ Links ]

Johnson, S. (2017). O poder inovador da diversão. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Merton, R. & Barber, E. (2004). The travels and adventures of Serendipity. Princeton: Princeton University Press.         [ Links ]

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Roudinesco, E. (2018). Cidades da psicanálise. Serrote, 28.         [ Links ]

Warburg, A. (2013). A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 06/09/2018
Aceito em: 19/9/2018

 

 

1 Trabalho apresentado no I Simpósio Bienal SBPSP - O Mesmo, o Outro, no dia 25/8/2018.

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