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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

PSICANÁLISE HOJE: CLÍNICA E FORMAÇÃO

 

A formação psicanalítica: especificidade e transformações1

 

The psychoanalytical training: specificity and transformations

 

La formación psicoanalítica: especificidad y transformaciones

 

La formation psychanalytique: spécificité et transformations

 

 

Bernardo Tanis

Membro efetivo e atual presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) 2017- 2020. Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica pelo núcleo de psicanálise da PUC-SP. Autor de Circuitos da solidão entre a clínica e a cultura (Casa do Psicólogo) e Memória e temporalidade: sobre o infantil em Psicanálise (Casa do Psicólogo). São Paulo. tanis@uol.com.br

 

 


RESUMO

O texto aponta para um diálogo aberto sobre questões que demandam nossa atenção quanto à formação psicanalítica nos dias de hoje. Para além do reconhecimento da relevância inquestionável do clássico tripé, presente nos diferentes modelos de formação, bem como de suas vantagens e limitações, sustenta a tese de que a formação analítica deve ampliar seus horizontes sem perder a sua especificidade. O trabalho justifica essa tese, assim como apresenta possíveis caminhos para sua implementação.

Palavras-chave: formação, tripé, transmissão, psicanálise


ABSTRACT

This paper points to an open dialogue on issues that demand our attention concerning psychoanalytical training in our days. Besides the recognition of the unquestionable reputation of the classic tripod and its present in the different training models, its advantages and limitations, it supports the thesis that psychoanalytical training should enlarged (expand) its horizons without losing its specificity. The paper justifies this thesis as well as offer possible pathways and directions for implementation.

Keywords: training, psychoanalytical training, tripod


RESUMEN

El texto apunta a un diálogo abierto sobre cuestiones que demandan nuestra atención en relación a la formación psicoanalítica en los días de hoy. Además del reconocimiento de la importancia incuestionable del clásico trípode, presente en los diferentes modelos de formación, sus ventajas y limitaciones, sostiene la tesis de que la formación analítica debe ampliar sus horizontes sin perder su especificidad. El trabajo justifica esta tesis así como presenta posibles caminos para su implementación.

Palabras clave: formación psicoanalítica, trípode, especificidad


RÉSUMÉ

Le texte suggère un dialogue ouvert sur des questions qui requièrent notre attention par rapport à la formation psychanalytique de nos jours. Outre la reconnaissance de la pertinence incontestable du trépied classique, présent dans les différents modèles de formation, de ses avantages et de ses limites, il soutient la thèse selon laquelle la formation analytique devrait élargir ses horizons sans perdre sa spécificité. Le travail justifie cette thèse ainsi que présente les moyens possibles pour sa mise en œuvre.

Mots-clés: entraînement, trépied, transmission, psychanalyse


 

 

Embora o tema da formação analítica tenha sido extensamente abordado, não parece estar exaurido. Pelo contrário, tanto por sua relevância para o futuro do nosso campo quanto por ser gerador de polêmicas, debates e cisões no movimento psicanalítico, considero que cada nova geração de analistas o recupera e vê-se solicitada a significá-lo à luz dos desafios que a mutante realidade impõe. Este trabalho - produto de sucessivas reelaborações, leituras, experiências pessoais e trocas com analistas de várias latitudes em Congressos e Jornadas - é um texto poroso e, acima de tudo, um convite ao diálogo e à reflexão.

No meu primeiro texto sobre o assunto, Considerações sobre a formação psicanalítica (Tanis, 1988), o leitor encontrará uma discussão da especificidade da formação do psicanalista e uma reflexão sobre a importância e as armadilhas do clássico tripé análise, supervisão e estudo teórico, assim como importantes referências históricas sobre o assunto em pauta (Enriquez, 1979; Valabrega 1983; Kernberg, 2000, entre muitos outros). Vários anos se passaram desde sua publicação e, no entanto, ainda me reconheço nas inquietações e ideias nele desenvolvidas. As transformações no campo, assim como o percurso ao longo destes anos, me conduzem hoje a ampliar o espectro da discussão.

Não farei uma apresentação exaustiva e histórica do tema (ver, por exemplo, Favilli, 1998); meu interesse é apenas mapear, à luz do atual contexto histórico-cultural, alguns pontos que possam balizar futuras reflexões cada vez mais necessárias para o presente e o futuro da psicanálise. Meu texto é fruto do trânsito e do convívio em diferentes instituições psicanalíticas e acadêmicas, assim como da minha experiência pessoal a partir dos diferentes lugares que, como psicanalista, tenho ocupado ao longo destes anos. Para além de palavras de ordem, já desgastadas, aponto para um diálogo aberto sobre questões que demandam nossa atenção.

Constato que hoje nos vemos às voltas não só com clássicas questões sobre a particularidade da formação de analistas que, sem dúvida, merecem nossa atenção, mas também com novas configurações do campo psicanalítico em particular e da área psi em geral. Penso que o diálogo e o debate são fundamentais neste momento, pois, a meu ver, as significativas transformações da subjetividade e os impactos culturais e econômicos que vêm ocorrendo nas últimas décadas, como descrito por Jameson (1991), Debord (1997), Giddens (1991), Bauman (1999) e outros, solicitam uma ampla reflexão (Tanis, 2003), sem a qual não poderíamos encarar os desafios com os quais nos defrontamos e que aguardam as futuras gerações de analistas.

Isso nos impõe um esforço redobrado. Assim, como deus Jano, dirigimos nosso olhar para duas frentes: em primeiro lugar para o resgate da singularidade da psicanálise como modalidade de intervenção clínica, como teoria da psique e como método de pesquisa clínico e da cultura e, em segundo lugar, para a contextualização do lugar da psicanálise na sociedade atual, seja no âmbito das práticas clínicas em geral (psiquiatria, psicoterapias), seja no universo acadêmico, e na sua relação com as instâncias reguladoras e/ou regulamentadoras.

Pretendo abordar essas duas frentes, sustentando a tese central de que a formação analítica deve ampliar seus horizontes sem perder a sua especificidade.

Mas vamos por partes, pois a complexidade do assunto assim o demanda.

 

Especificidade da psicanálise

A psicanálise nasceu, como bem o faz notar Birman (2000), como consciência crítica da Modernidade. Vale dizer que, por meio dela, os reinos do eu e da razão soberana foram destronados.

O que a psicanálise colocou e, a meu ver, ainda coloca em evidência inquestionável é a limitação do discurso médico para dar conta do mal-estar moderno como produção subjetiva e cultural. O desejo, o conflito e o sofrimento psíquico nas suas múltiplas expressões são irredutíveis a motivações de natureza exclusivamente biológica.

Freud aponta o descentramento do sujeito diante do próprio desejo inconsciente, tematizado na primeira descrição do psiquismo. Posteriormente, amplia sua visão e a complementa. Assinala, em "Mal-estar na civilização" (1930[1929]/1976), a condição trágica do homem em relação ao desamparo a partir do qual se constitui - modelo formulado a partir da segunda tópica e que introduz a noção de pulsão de morte. Os analistas pós-freudianos ampliaram e desenvolveram clínica e teoricamente sua descoberta.

Para a psicanálise não se trata de nenhuma ortopedia psíquica, mas de uma transformação a partir de um fazer-saber sobre a natureza inconsciente da subjetividade, promovendo no a-posteriori do ato interpretativo a desalienação desta mesma subjetividade condenada, até então, à repetição.

Nesse complexo processo, como bem caracteriza Serge Viderman em A construção do espaço analítico (1982/1990), sentido e força se articulam na dimensão transferencial de tal modo que as dimensões da significação e da pulsão permanecem irredutíveis.

Assim, qualquer ilusão de transparência, compreensão intelectual ou completude narcísica como finalidade última do processo de análise ou da formação de um analista permanecem fora do campo da nossa disciplina e da nossa prática, como também qualquer tentativa de apreensão do objeto psicanalítico, por vias exclusivamente racionais, seria impraticável.

Levar em consideração o sentido forte dessas colocações implica compreender por que a formação de psicanalistas demanda uma especificidade, enfatizando a análise de quem a almeja como condição necessária, como possibilidade de abertura à ressignificação da própria subjetividade e como reconhecimento da eficácia do próprio inconsciente. Embora a análise seja condição necessária e primordial, não é suficiente quando o assunto diz respeito à formação. Voltaremos a este ponto.

Os institutos de formação nasceram com o objetivo inicial de garantir um ensino fiel à descoberta psicanalítica e, ao mesmo tempo, disciplinar uma prática que corria o risco de se tornar selvagem em mãos de charlatões sem uma formação adequada. O Instituto de Psicanálise de Berlim, fundado em 1926, será seu primeiro modelo (Eitingon), a partir do qual fica estabelecido o famoso tripé: análise didática, supervisão e seminários teóricos. Embora o tripé permaneça como eixo da formação, o modo de compreendê-lo e de instrumentá-lo na prática, assim como sua contextualização teórica, sofreram muitas transformações desde então. As diversas tentativas de buscar o melhor modelo que atendesse à práxis psicanalítica como experiência singular sempre foram objeto de discussão, quando não levaram a cisões dentro do movimento psicanalítico. Apontam a tensão entre o singular e o grupo. As instituições psicanalíticas não deixam de conter aporias e aspectos paradoxais.

Avançando para outro conjunto de questões, convém lembrar neste contexto o trabalho de Freud Sobre análise leiga, escrito em 1926, a propósito de um processo judicial contra Theodor Reik, analista não médico. Nesse trabalho, expõe em forma de diálogo, de modo claro e preciso, para um interlocutor imaginário, os princípios da teoria e da clínica, assim como as bases para a formação.

Em uma passagem o interlocutor imaginário interroga Freud: "Interpretar! Palavra complexa. Não gosto de ouvi-la, com ela o senhor destrói toda certeza. Se tudo depende de minha interpretação, quem garante que interpreto corretamente? Tudo fica subordinado ou a meu arbítrio? (Freud, 1926/1986).

Existe vacina contra este arbítrio? O vértice ético (Tanis, 2014), assim como o epistemológico, ficam evidentes nesta questão.

Quem não se interrogou a respeito disso? Quem não esteve atento ao risco de que a interpretação proferida não visasse enquadrar o analisando em um modelo teórico preestabelecido? Quem não temeu pela folie-à-deux? E a limitação da escuta pela contratransferência, ou, se quisermos, resistência do analista? Quem não percebeu o aspecto delirante de um grupo quando os analistas se cegam em nome de uma verdade, nos casos em que a teoria dá lugar à doutrina dogmática, e a formação, ao doutrinamento? Como diz Viderman:

Ninguém vira, antes de Melanie Klein o que Melanie Klein viu após ter imaginado seu modelo teórico. Ninguém viu tão claramente (e com mais paixão) o que ela viu primeiro, a não ser aqueles que partilham do mesmo modelo - ninguém menos bem que aqueles que o rejeitam. (1982/1990, p. 123).

Quem não percebeu a paralisia superegoica do jovem analista, preso a uma rede imaginária que não consegue a desidentificação necessária dos modelos e filiações de origem para o exercício de uma prática criativa, reproduzindo o mesmo lá onde o novo deveria emergir?

Esperamos que nossos modelos de formação e suas instâncias constitutivas propiciem e favoreçam o exercício ético, criativo e não alienante da psicanálise, e ao mesmo tempo nos protejam do arbítrio, alerta do próprio Freud. Estaremos sendo bem-sucedidos nesta empreitada?

 

Transmissão ou formação?

Cabe um olhar para o campo semântico de dois dos significantes utilizados para descrever o processo pelo qual alguém se torna analista: transmissão e formação.

A transmissão nos remete a um registro vertical, com os corolários de autoridade e valor. Assemelha-se ao modelo que Giddens aponta para as sociedades tradicionais. Segundo este modelo, certos valores e crenças são passados de uma geração para outra; ele compreende a tradição "como uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente" (Giddens, 1994, p. 80). Tal modelo, que instaura os guardiões da tradição, combina conteúdo moral e emocional. Mistura complexa, para quem sabe dos pontos cegos da transferência institucional entre mestres e discípulos. Embora possa oferecer a ilusão de uma segurança ontológica aos que aderem ao modelo, promove a repetição, impedindo a ousadia e a criatividade dos jovens analistas, assim como limita o diálogo com autores considerados proscritos por serem alheios à "tradição" do grupo. O vértice religioso da transmissão está na origem desse modelo.

Já a formação é associada ao Romance de Formação, o Bildungsroman. Diz Mezan:

O périplo pelo qual o personagem se educa para a vida, enfrentando-se com a decepção, com a dor e com a perda das ilusões, mas também tomando conhecimento de suas possibilidades, de seus limites e de suas responsabilidades. (1993, p. 155)

Esse modelo, embora não deixe de aludir à questão da forma e encerre o risco da formatação, refere-se mais ao aspecto processual do vir a ser analista, destacando a natureza conflitiva e transformadora inerente a esse processo.

Não considero que esses modelos sejam patrimônios exclusivos desta ou daquela instituição; pelo contrário, vejo-os acontecendo também em grupos independentes, muitas vezes, configurados em torno da figura de um mestre. Percebemos também que no seio das instituições analíticas coexistem, por vezes, ambos os modelos. O que me interessa frisar não é o conteúdo de tais tradições, pois estes podem variar, mas apenas sinalizar a sua existência e o fato de que esses dois modelos devem ser analisados criticamente, levando em consideração a história dos grupos e instituições, mas sem deixar que esta impeça a emergência do novo.

 

Algumas breves palavras sobre o tripé na formação

São múltiplas as vias pelas quais alguém se aproxima da psicanálise: o próprio sofrimento psíquico, fascínio pela dimensão inconsciente do psiquismo, fantasias e desejos reparadores, ilusão de prestígio profissional, hoje nem tão em alta etc.

Será o processo de análise o lugar de encontro com os efeitos do próprio inconsciente, com o reconhecimento dos seus desejos e paixões, angústias e temores. Nesta condição, a força de um núcleo traumático pulsional de natureza infantil terá lugar na cena transferencial. Laços de dependência, identificações, demandas de filiação ancoradas em fantasias edípicas não permanecerão intocáveis.

Dessa experiência transformadora, geradora de uma familiaridade do analista com o seu próprio funcionamento psíquico, poderão surgir as condições de escuta analítica. O desejo e a disponibilidade de ocupar o lugar de analista poderão despontar no analisando.

A supervisão, ou análise de supervisão, como alguns preferem chamá-la, ocupa um lugar de extrema importância no processo de formação. Ligada à escuta clínica do analista, a supervisão surge como terceiro, não apenas em relação à análise que o iniciante conduz, mas também a sua própria análise. Isso não quer dizer que o supervisor exercerá uma interferência direta na análise, mas, como diz Fédida, terá um efeito na liquidação da transferência, da idealização do próprio analista pelo analista em formação. Fédida ainda aponta a supervisão como base de matriz potencial da comunidade analítica. Não se trata de aprender na supervisão uma técnica, mas de desenvolver a condição de escuta do analista.

O estudo das teorias é o terceiro elemento desse tripé. Conhecer o desenvolvimento dos principais modelos teóricos instrumentaliza o analista e favorece o diálogo com seus pares. No entanto, o estudo teórico, a meu ver, não deveria reduzir-se à exegese do texto nem à erudição psicanalítica. Seria interessante desenvolver, e isto poucas vezes ocorre ao longo do processo de formação, o estudo das condições de emergência da função teorizante do analista, permitindo, desse modo, uma reflexão sobre o estatuto peculiar da teoria em psicanálise. Seminários clínicos podem vir a ser um lugar propiciador e estimulante para o exercício dessa função. Este item parece cada vez mais urgente diante da dificuldade que os analistas encontram em estabelecer um diálogo clínico quando oriundos de filiações diferentes, o que vem conduzindo a uma fragmentação do campo. Estaríamos não apenas preocupados com a transmissão de conceitos, mas também com a formação de analistas capazes de criar suas próprias teorias ad hoc, sem negligenciar os grandes modelos.

 

A formação estendida: uma questão de fronteiras

Falsearemos qualquer conversa sobre a natureza específica da formação analítica se não levarmos em consideração a complexidade e a riqueza do vir a ser analista. Essa complexidade e seus desafios incrementaram-se nos dias de hoje. Parece que, atualmente, alguns analistas se extraviam e a clínica se dilui diante da multiplicidade dos discursos que a colocam em xeque e que mobilizam à reflexão:

a) do ponto de vista dos seus fundamentos: as neurociências, a psiquiatria ou terapias cognitivas;

b) pelos sistemas de saúde: o questionamento da sua eficácia terapêutica diante dos seus altos custos, fenômeno global;

c) do ponto de vista da subjetividade contemporânea: em que medida a nossa prática e as nossas teorias estão aptas para atender às demandas das novas patologias ancoradas em complexos processos de transformação de vínculos e ritmos temporais;

d) da perspectiva das suas instituições de formação: imensa difusão da psicanálise e proliferação indiscriminada de centros de formação;

e) no que diz respeito ao seu lugar na universidade: pós-graduação, cursos de especialização acadêmicos, assim como o papel da pesquisa psicanalítica em suas diferentes modalidades;

f) do ponto de vista de sua relação com o Estado e os sistemas de saúde: a regulamentação da profissão de psicanalista e/ou psicoterapeuta.

Como os interessados em empreender sua formação analítica e os analistas em exercício estão mergulhados nas mesmas condições históricas, é ilusório conceber uma psicanálise e um processo de formação que evitem ou apenas tangenciem essas questões. A perversão estaria instalada no próprio processo de formação, à semelhança do que assistimos na clínica com crianças em que certos pais procuram manter os filhos numa espécie de bolha ilusória, esperando que algum dia estarão grandes e fortes o suficiente para enfrentar as adversidades da vida. Mais do que uma doce ilusão, trata-se de uma compreensão falha do processo de crescimento, pois sabemos que a competência para responder à adversidade reside na chance de uma aprendizagem contínua desde o nascimento. A mentira e a ilusão só reforçam nossa paranoia e fragilidade, apenas preparam para o colapso narcisista.

A manutenção de modelos de formação, institucionais ou não, que reforçam a separação entre gerações para além da assimetria inerente tende a criar a falsa ilusão de que somente os jovens analistas estão expostos às questões listadas anteriormente. Incrementa-se desse modo uma relação de dependência de seus mestres e alimenta-se a ideia de que quanto mais formação, mais fortificados ficarão. Mas não se trata, a meu ver, de receber mais do mesmo, já que isso promove a repetição e acaba enjoando, ou embotando a criatividade.

A psicanálise hoje, mais do que em outros momentos da sua história, deve lidar com uma questão de fronteiras. Fronteiras não são territórios tranquilos, envolvem ameaças de invasão, fantasias persecutórias e também curiosidade, sedução e até o risco de perder a própria identidade. Em contraposição a uma postura defensiva ou de confronto em face dos itens anteriormente listados, é necessária uma estratégia de diálogo, de discriminação das especificidades de atuação, de busca de interlocução com os diferentes campos do saber, resgatando a importância da sua contribuição. Distantes da arrogância ou da timidez, somente um posicionamento claro que reconheça não só nossos limites, mas também o nosso potencial poderá garantir um lugar para a psicanálise na nova geografia globalizada. A formação pode constituir-se como o espaço destinado a instrumentalizar a nova geração de analistas à altura dos desafios que terá de enfrentar. Desafios que, como vemos, revestem alta complexidade. Apesar de o clássico tripé ter mostrado sua fecundidade ao longo de gerações, acho que a atual complexidade coloca novos desafios. Assim, trata-se de revisar aquilo que consideramos como formação-padrão.

Apresento a seguir alguns pontos para reflexão. Não pretendo ser exaustivo, trata-se a meu ver da criação de um debate coletivo em que nossa geração vê-se convocada a refletir.

1. Convite, desde o início da formação, para uma discussão franca com os membros sobre a complexidade atual do campo e a singularidade da psicanálise

Ao mesmo tempo que se debruçam sobre a obra de Freud e o surgimento da psicanálise, os analistas em formação são convidados a expor suas inquietações sobre a diversidade de suas práticas clínicas e o campo de possibilidades para atuação do psicanalista. A metapsicologia é introduzida progressivamente, não como um corpo teórico pronto, mas como um movimento de teorização necessário para delimitação e constituição do campo da clínica psicanalítica.

O resultado desse trabalho é uma diminuição dos aspectos persecutórios no que concerne à formação, ao mesmo tempo que emerge um pensamento crítico em face das rápidas identificações ou dos autointitulados detentores do saber.

2. Clima institucional

O clima institucional tem enorme importância no processo de formação. Já foi nomeado como quarto elemento a ser acrescentado ao clássico tripé. Ele pode ser estimulante, favorecer o diálogo no qual os diferentes membros do grupo possam encontrar seu lugar, mas pode também ser dominado por brigas escolásticas que, muitas vezes, refletem lutas de poder dentro da própria instituição. Penso que poderiam ser estimulados:

a) a possibilidade de os analistas mais jovens ouvirem apresentações clínicas de analistas mais experientes, contribuindo para desmistificar certas idealizações;

b) a organização de seminários temáticos, e não apenas por autores, o que poderá auxiliar na quebra da rigidez escolástica;

c) o convite a analistas de outras instituições e a outros profissionais da saúde mental para verdadeiros seminários de trabalho, nos quais diferenças e semelhanças sejam discutidas; isso poderá fortalecer o conhecimento e a capacidade de reflexão sobre a clínica.

3. Psicanálise e suas clínicas

Sabemos que, assim como no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos e em vários países da América latina há cada vez menos analistas exercendo psicanálise-padrão em seus consultórios. Muitos trabalham em Instituições de Saúde Pública, ambulatórios, hospitais, centros de pesquisa. Até que ponto insistir apenas na formação tradicional nega esta realidade e deixa os jovens profissionais com a ideia de que eles desenvolvem práticas menores diante da nobreza do ouro puro?

Hoje a diversidade das práticas desenvolvidas a partir de uma abordagem psicanalítica para responder às diferentes formas de sofrimento humano mostra a riqueza de uma clínica de maior complexidade em seu alcance terapêutico e suas teorias explicativas.

Na clínica, os casos-limite transformam-se nos novos quadros paradigmáticos, o que promove a exploração e a expansão dos limites da analisabilidade e das possíveis variações do método. A clínica psicossomática, as adições, as falhas no campo da representação, a clínica dos traumatismos, das compulsões, dos distúrbios alimentares, dos transtornos autísticos etc.

A diversidade das intervenções clínicas, bem como o seu design e construção que implementamos na singularidade de cada vínculo paciente-analista tem conduzido analistas em diferentes latitudes a expandir o espectro das variantes de intervenção psicanalítica.

Isso tem gerado a retomada da reflexão sobre o enquadre da situação analítica, à medida que deixa de ser um elemento constante e pode mudar conforme diferentes contextos vinculares e configurações psíquicas.

André Green nos fala de uma matriz ativa do enquadre, a sua matriz dialógica e processual, e de outra, mutante, que se adapta a diferentes circunstâncias e que, no passado, obedecia a uma configuração-padrão. A matriz dialógica é aquela em que predominam a associação livre e a atenção flutuante, lugar dos processos transferenciais e contratransferenciais a outro suporte material do processo.

Se compreendermos a psicanálise não apenas como tratamento-padrão, mas também como um método de conhecimento e transformação a partir da análise da transferência, incluir na formação do analista o estudo e a pesquisa sobre outras modalidades psicanalíticas de intervenção na Saúde Pública pode, sem dúvida, ampliar o espectro da clínica e o papel da psicanálise na sociedade. Embora essas práticas existam, carecem de maior legitimidade no próprio processo de formação.

4. Reflexão sobre os aspectos terapêuticos da psicanálise

Isso nos aproxima de um terreno pantanoso, pouco abordado pelos psicanalistas (ver Jornal de Psicanálise, v. 32, 1999, dedicado ao tema). Na maioria das vezes associado aos aspectos sugestivos da transferência, o tema da função terapêutica é apenas tangenciado, quando não evitado, repetindo a já desgastada imagem freudiana da mistura do ouro da psicanálise com o cobre da sugestão. A partir da clínica com pacientes borderline, com adições e compulsões desenfreadas, anorexias e bulimias, será que não podemos aprofundar essa discussão? Estou propondo que durante a formação seja ampliada a discussão sobre os aspectos técnicos do método sem confundir um com o outro. Os escritos técnicos de Freud são a porta de entrada para uma nova modalidade de apreensão do psiquismo, mas não a última palavra.

Cabe aqui a criação de grupos interdisciplinares para discutir a relação da psicanálise com as neurociências e a psiquiatria, deslocando a discussão dos bastidores ou do confronto superficial na mídia para uma reflexão clínica.

4. Reflexão sobre a relação com a Universidade e a Pesquisa

Assistimos neste momento do Brasil a um grande crescimento da presença da psicanálise na Universidade. Os impactos desse movimento mereceriam por si só uma pesquisa específica, e por esta razão, não gostaria de fazer uma análise superficial sobre esta inter-relação que, a meu ver, tem muitas implicações para o campo psicanalítico e produz efeitos na formação da atual geração de analistas. Farei apenas alguns assinalamentos. Três pontos contribuem para este desenvolvimento:

a) por parte da universidade: o interesse de muitos campos do saber universitário e de programas de pós-graduação em manter um diálogo com a psicanálise (filosofia, sociologia, antropologia linguística etc.);

b) por parte dos psicanalistas:

i) aprofundar o estudo teórico da psicanálise numa perspectiva epistemológica e crítica, assim como desenvolver o diálogo com outras disciplinas;

ii) realizar pesquisa basicamente teórica, longe das pressões e transferências diretas dos grupos psicanalíticos.

c) pela natureza do debate universitário, a Universidade sempre se caracterizou por ser um espaço no qual o debate de ideias e a diversidade de opiniões são aceitos e legitimados.

Sem lugar para dúvidas, esse movimento teve um efeito revigorante para o estudo e a reflexão sobre as teorias psicanalíticas e a aplicação da psicanálise como método heurístico para compreender Cultura (Mezan, 2002). No entanto, muitos profissionais buscam hoje a pós-graduação não como lugar de aprimoramento e desenvolvimento como pesquisadores, mas como via de atalho ou substituição para a formação. Em muitos programas de pós-graduação, constituíram-se feudos semelhantes aos que existem em outros grupos psicanalíticos, reproduzindo o mal que supostamente pretendiam combater.

A proliferação indiscriminada de cursos de especialização na universidade nos conduz a refletir sobre a influência desse movimento na formação. Como espécie de bumerangue, a universidade passa a afetar burocraticamente os espaços de formação: especialização via cfp, regulamentação via mec etc. Silva (2004) analisa essa relação, assim como a própria transformação da universidade, seguindo a direção assinalada por Marilena Chauí: burocratização, tecnicização e mercadorização, pondo em questão o lugar da psicanálise nesse contexto.

Os espaços de formação psicanalítica, embora não alheios a esse movimento, nem sempre incluem debates sobre essas relações, assim como sobre a natureza da especificidade da pesquisa em psicanálise, assunto que merece cada vez mais atenção.

 

A modo de conclusão

Minha hipótese é a de que a ampliação da experiência de formação psicanalítica, sem perder a especificidade, mas lidando diretamente com as fronteiras, evitando posturas arrogantes ou defensivas, poderá ter um efeito catalisador e potencializador. Ainda mais contribuir para diluir os aspectos de uma submissão identificatória a mestres ou grupos, nem sempre dissolvidos na análise daqueles que visam a uma formação. Quero dizer que, embora a análise pessoal seja considerada a principal garantia da qualidade da formação, sabemos os riscos que ela comporta. Assim, essa formação ampliada não viria para diluir ou empobrecer a qualificação de analistas. Pelo contrário, acho que dela emana o potencial de aprimorar os clássicos espaços da supervisão, do estudo teórico e da análise pessoal, assim como de instrumentalizar o analista para novos desafios.

A psicanálise nasce como crítica da cultura. A mesma cultura se apropria das suas produções e procura neutralizá-la, como o fizera com muitos movimentos de contracultura. O desafio para a atual geração de analistas reside na possibilidade de ouvir aquilo que pede para não ser silenciado nos diferentes espaços onde o psicanalista é chamado a intervir. Estarão prontos para esses desafios os analistas que formamos?

 

Referências

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Recebido em: 5/11/2018
Aceito em: 7/11/2018

 

 

1 Este trabalho é uma elaboração com base em outro artigo de minha autoria "Considerações sobre a formação psicanalítica: desafios atuais" publicado em 2005 na revista Percurso, 35, pp. 29-36.

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