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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

PSICANÁLISE HOJE: CLÍNICA E FORMAÇÃO

 

Apontamentos sobre a análise de uma paciente esquizoide, de uma perspectiva winnicottiana1

 

Notes on the analysis of a schizoid patient, from Winnicott's perspective

 

Apuntes sobre el análisis de una paciente esquizoide, de una perspectiva winnicottiana

 

Annotations sur l'analyse d'une patiente schizoïde d'une perspective winnicottiene

 

 

Alfredo Naffah Neto

Psicanalista, mestre em filosofia pela USP, doutor em psicologia clínica pela PUC-SP, professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Núcleo Método Psicanalítico e Formações da Cultura. Além disso, pratica psicanálise, psicoterapia de casal e família, em consultório particular. São Paulo. naffahneto@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo reúne alguns apontamentos sobre a análise de uma paciente esquizoide, numa perspectiva winnicottiana. Primeiramente, descreve o início da análise; em seguida, procura definir a patologia esquizoide, da perspectiva winnicottiana, para, finalmente, concluir a descrição do processo psicanalítico em questão, caracterizando, ao mesmo tempo, esse tipo de análise que Winnicott denominava "análise modificada".

Palavras-chave: esquizoidia, análise modificada, Winnicott


ABSTRACT

This article collects some notes on a schizoid patient's analysis, from Winnicott's perspective. First of all, it describes the beginning of the analysis; then, it tries to define the schizoid pathology, from Winnicott's point of view. Finally, it concludes the description of the implied psychoanalytical process, characterizing, at the same time, this kind of analysis, which Winnicott called "modified analysis".

Keywords: schizoid pathology, modified analysis, Winnicott


RESUMEN

Este artículo reúne algunos apuntes sobre el análisis de una paciente esquizoide, de una perspectiva winnicottiana. Primeramente, describe el inicio del análisis; entonces, intenta a definir la patología esquizoide, de una perspectiva winnicottiana. Finalmente, concluye la descripción del proceso psicoanalítico implicado, caracterizando, al mismo tiempo, ese tipo de análisis, que Winnicott denominaba "análisis modificada".

Palabras clave: patología esquizoide, análisis modificada, Winnicott


RÉSUMÉ

Cet article rassemble des annotations sur l'analyse d'une patiente schizoïde, d'une perspective winnicottiene. Premièrement, il décrit le commencement de l'analyse; ensuite, il cherche a définir la pathologie schizoïde, de la perspective winnicottiene pour, finalement, conclure la description du procès psychanalitique en question, caractérizant, au même temps, cette type d'analyse, que Winnicott appelait "analyse modifiée".

Mots-clés: pathologie schizoïde, analyse modifiée, Winnicott


 

 

1. Primeira etapa da análise: um silêncio a ser respeitado

Inicio, aqui, o meu percurso, descrevendo a paciente e as suas motivações para procurar análise.

Trata-se de uma jovem esquizoide que recebi numa época em que ainda tinha pouca experiência com esse tipo de patologia. Era uma moça de seus 20 e poucos anos, universitária (estudante de línguas), que vou chamar, aqui, de Maria.2 Suas queixas eram diversas: a primeira delas era sua dificuldade de sair de casa - a claridade do sol a incomodava muito -; então, passava o dia inteiro deitada na cama ou em frente da televisão, geralmente com um dedo na boca. Prestava pouca ou nenhuma atenção aos programas que se desenrolavam diante dela; eles iam rodando, uns após os outros, de forma meio indiscriminada. Levantava-se para ir ao banheiro ou para comer alguma coisa, quando sentia fome, mas logo voltava à mesma posição.

Quando conseguia - ou seja, quase nunca -, ia à faculdade; estava estourando em faltas em várias matérias, bem como já perdera provas importantes, não recuperáveis. Assim, seus estudos caminhavam aos trancos e barrancos.

À noite, no escuro, conseguia sair à rua, sem se sentir tão angustiada; então, ia a baladas, nas quais, geralmente, consumia bebidas alcoólicas e alguma cocaína. Seus namoros eram recheados de desencontros, brigas e rupturas, pois logo percebi que ela tinha grande dificuldade de se discriminar do outro, misturando-se o tempo todo e exigindo cuidados que o outro não podia lhe propiciar.

Nessa época, seus pais, que a sustentavam, pagando até mesmo o aluguel do apartamento onde morava, estavam já desacorçoados e sem saber o que fazer: a moça já tentara algumas análises, que interrompera por não conseguir ir às sessões. Ela disse-me que essa seria a última chance a ser-lhe dada pelos pais. Percebi, pois, que o que esperava de mim, analista, não era pouca coisa. O que fazer?

Essa era a época em que eu fazia, justamente, uma transição na minha profissão de analista, caminhando de uma postura apoiada em Klein e Bion - produto do meu processo analítico pessoal - para começar a trabalhar com as ferramentas winnicottianas.3 Resolvi aceitar o desafio. Percebendo tratar-se de um caso com características esquizoides, propus-lhe um contrato de quatro sessões semanais, que foi aceito sem titubeios.

Mas, logo nas primeiras semanas, percebi que as coisas não iam funcionar: como era de se esperar, ela vinha numa sessão e faltava em duas seguidas, ou vinha em duas e faltava nas duas seguintes, de forma totalmente irregular. Quando questionada, dizia que não conseguia sair de casa, de frente da televisão. Então, fiz a minha primeira intervenção, dizendo-lhe que assim não poderíamos caminhar, que o nosso trabalho só teria alguma chance de funcionar com a sua presença regular. Depois de alguma conversa, combinamos que ela procuraria um psiquiatra amigo meu, para ver se havia alguma medicação capaz de ajudá-la, pelo menos, a vir às sessões.

Questiono-me se, hoje, teria essa mesma postura; provavelmente, não. Penso que, pelo menos, esperaria um tempo maior. Anos depois, entretanto, Maria disse-me que aquela "chamada às falas", naquele momento, tinha sido "providencial"; que os outros analistas tinham sido todos muito passivos, meramente interpretando, em vez de tomar alguma providência.

O psiquiatra receitou-lhe um antidepressivo leve, mas me disse em off que a dose era tão pequena, que funcionava quase como um placebo. Mas, de fato, funcionou: suas vindas tornaram-se mais regulares, e a análise se iniciou.

Convivíamos, entretanto, no mais completo silêncio: a cada sessão, Maria chegava, deitava-se no divã e passava os 50 minutos completamente calada. No final da primeira sessão de silêncio, disse-lhe apenas que vir e ficar em silêncio era melhor do que não vir e permanecer em frente da televisão; que, simplesmente, conseguir vir já significava algum progresso.

O que eu entendia é que ela reeditava na própria sessão o seu retraimento esquizoide, ou seja, que essa era uma forma de trazer para a análise, em ato, a sua esquizoidia.4

E assim se passaram várias sessões, não me lembro por quanto tempo. Para mim, era extremamente difícil permanecer presente na sessão, mantendo-me calado e respeitando o seu silêncio; dava-me sono e tinha de fazer um grande esforço para não cochilar ou não me ausentar completamente. Mas, pensava eu: "Pelo menos, o fato de ela ter escolhido, espontaneamente, o divã e não estar frente a frente comigo, já é um alívio". Caso contrário, não sei se teria aguentado tanto tempo. Mas tinha completa convicção de que essa era a postura a ser sustentada e que, se eu tinha alguma intenção de vir a analisar aquela moça, tinha de começar por respeitar o seu recolhimento.

Conforme as sessões foram acontecendo, entretanto, o silêncio de Maria foi perdendo, aos poucos, o seu caráter mais ensimesmado e autoprotetor e adquirindo um ar de maior relaxamento e tranquilidade. Parecia que ganhava alguma confiança na análise e no analista.

Então, depois de várias sessões do mais completo silêncio, começaram a surgir, espaçadamente, em algumas sessões, uma fala ou outra, que eu simplesmente escutava ou à qual dava alguma resposta breve, simplesmente para sinalizar que eu a estava escutando. Não tinha, aí, nenhuma intenção interpretativa, ou, quando esta existia, a interpretação era feita de forma muito cuidadosa.

E, aos poucos, no seu ritmo próprio, ela começou a falar da sua vida e das suas dificuldades: do sol que a ofuscava e da noite mais convidativa e festeira; das brigas com o namorado e com os pais; da faculdade, que ia ficando quase impossível de ser concluída. E de como tudo na vida lhe era extremamente difícil, até mesmo porque as pessoas não entendiam o que se passava com ela e relacionavam-se com ela somente fazendo cobranças, cobranças e mais cobranças. Cobranças intermináveis, das quais nunca conseguia dar conta. Então, sentia-se péssima, imprestável, uma inútil.

Cito, aqui, um fragmento de sessão dessa época, para dar uma ideia mais clara de como o processo psicanalítico ocorria:

M - No sábado eu e o João fomos a uma rave onde corria muita bebida e droga, e já começamos brigando feio! ...

A - O que houve?

M - O meu ciúme, como sempre; achei que ele estava olhando muito para uma menina, e caí em cima dele. Daí, brigamos bastante, até que a gente se encheu de brigar, e fomos cheirar coca - Daí fomos dançar no meio da multidão, e foi supergostoso!

A - É possível que você faça uso da coca para sentir mais coragem de enfrentar o mundo de fora, e daí poder dançar no meio da multidão.

M - É, pode ser...

Mas ainda havia sessões em que o retraimento reaparecia, e Maria permanecia recolhida no seu mundo subjetivo, por um longo tempo, no início da sessão, e então, quando esta ganhava fôlego, estava na hora de terminá-la. Resolvi, então, condensar as quatro sessões de 50 minutos em duas sessões de 1 hora e meia. Era uma forma de facilitar a sua vida - ela só teria de sair de casa duas vezes, em vez de quatro - e de dar mais tempo às sessões, para permitir que o retraimento acontecesse sem ser impeditivo do que vinha em seguida. Pensava que, se estávamos numa análise modificada, podíamos experimentar coisas novas. Nessa época, eu ainda não tinha lido o relato de Margareth Little de sua análise com Winnicott, nem sabia que ele tinha feito a mesma coisa com ela, ou seja, aumentado o tempo das suas sessões, em função do seu retraimento esquizoide (Little, 1990, p. 44). Às vezes, uma intuição no momento certo, dá a chave da charada. A partir de então, as sessões tornaram-se muito mais produtivas.

Mas voltemos um pouco à problemática do silêncio e àquelas sessões tão difíceis de sustentar, que, no entanto, ao mesmo tempo, foram tão fundamentais para que o processo analítico viesse a acontecer. O que elas significaram para Maria?

Penso, talvez, que elas possam ter representado uma das primeiras vezes em que ela conseguia estar consigo própria, na presença de um outro, sem ser cobrada de nada, sem qualquer tipo de exigência ou de expectativa. Na mais pura aceitação de que as coisas acontecessem como tinham de acontecer.

Assim, é preciso sublinhar que silêncio nem sempre significa resistência ao processo de análise. Quando trabalhamos como pacientes-limite, temos de nos desembaraçar dos nossos critérios, já consolidados, de avaliação dos neuróticos, pois estes - conforme Winnicott assinalou - são pessoas inteiras, com discriminação de mundo interno e mundo externo, portanto, capazes de vivenciar conflitos e até mesmo de recalcá-los e torná-los inconscientes. Isso, comparado ao estado dos pacientes-limite, é quase um luxo, já que estes ainda estão lutando para vir a existir verdadeiramente, ou seja, para se sentirem reais.5

Muitos psicanalistas não entendem o uso eminentemente clínico dos termos "verdadeiro" e "falso", no vocabulário winnicottiano. Essa adjetivação retrata, diretamente, essa experiência de se sentir vivo e real, ou, pelo contrário, de perceber o mundo e a vida como irreais, vazios e sem sentido. Os pacientes-limite geralmente vivem nessa irrealidade, nesse mundo às escuras, como era o universo de Maria, nas noites de balada. No qual o álcool e a cocaína podem funcionar como falsas tentativas de dar vida ao inerte, ressuscitar o morto-vivo.

"Verdadeiro" e "falso" não são, pois, noções metafísicas ou epistemológicas, mas conceitos clínicos, descritivos do tipo de experiência de dois tipos de pacientes: aqueles que experimentam a vida como verdadeira e aqueles que a sentem e a avaliam como falsa. Nesse sentido, um silêncio pode ser mais verdadeiro do que um discurso realizado somente para fazer sala para o analista, ou para tentar seduzi-lo.

Winnicott usa esses adjetivos, por exemplo, quando descreve o falso e o verdadeiro selves, que, nos indivíduos saudáveis, formam uma única estrutura, o self verdadeiro descrevendo o núcleo isolado e incomunicável do self e o falso self abarcando a faceta social do indivíduo, envolvendo um tanto de concessão que todos somos obrigados a fazer para poder viver em sociedade. Mas, caminhando em direção às psicoses, esse falso self pode se tornar uma formação patológica, totalmente cindida do restante da personalidade e numa condição de total sujeição às demandas ambientais, condição essa em que o termo "falso" ganha um estatuto maior (Winnicott, 1965 [1960]/1990, pp. 144-152).

Antes de Winnicott, Nietzsche já dizia:

O conceito "real, verdadeiramente existente" nós o tiramos primeiramente desse "nos dizer respeito"; quanto mais somos tocados em nossos interesses, mais acreditamos na "realidade" de uma coisa ou de um ser. "Isso existe" significa: eu me sinto existindo no contato com isso. (Nietzsche, 1886-1887/1978, p. 193)

A frase é exemplar, no sentido de apontar o significado de uma análise, quando tratamos de pacientes-limite. Podemos afirmar que ela será uma análise bem-sucedida se conseguir tocar as necessidades verdadeiras do paciente em questão para vir a favorecer-lhe, lentamente, a conquista de uma existência própria. Para que, um dia, ele possa dizer: "Eu me sinto existindo no contato com você" ou "Eu, finalmente, me sinto real junto a você". E que, a partir daí, possa ampliar esse sentimento de existência e de realidade para o restante da vida.

Antes de retomarmos a análise de Maria, convém descrever rapidamente, como Winnicott entende a dinâmica psíquica do esquizoide.

 

2. A dinâmica esquizoide

Conforme já disse, num artigo anterior (Naffah Neto, 2010/2017, pp. 173-4), Winnicott define a esquizoidia,

num texto de 1953 (Winnicott, 1953 [1952]/1992 [1958a], pp. 222-227), como uma forma de retraimento, usado como única defesa possível diante de um ambiente invasivo. Nesse mesmo texto, Winnicott explica que a atividade de integração do self do bebê leva comumente a uma paranoia potencial, geralmente neutralizada pelo amor e pelos cuidados maternos. Quando, entretanto, o ambiente falha, isso pode levar a uma "introversão patológica defensiva". Nesse caso, a criança passa a viver permanentemente no seu mundo íntimo, que não se torna, no entanto, firmemente organizado. Ou seja, a perseguição externa é neutralizada à custa de uma não integração. Nesse caso, a criança flutua para dentro e fora desse mundo íntimo, que está sujeito, mais ou menos, ao seu controle onipotente, embora - Winnicott adverte - não seja um controle forte. E diz: "É um mundo de magia, e quem está nele se sente louco". (Winnicott, 1953 [1952]/1992 [1958a], p. 227)

É importante sinalizar, aqui, as diferenças marcantes entre essa concepção de esquizoidia e a kleiniana: para Winnicott, não existe, no desenvolvimento saudável, uma posição esquizoparanoide. Se o bebê for devotadamente sustentado por uma mãe suficientemente boa, as cisões originárias da personalidade - que são consequência do estado de não integração do bebê recém-nascido, ou seja, da sua imaturidade, e não das lutas internas entre pulsão de vida e pulsão de morte,6 como propõe Klein - tendem a se fechar. Nesse caso, restarão na personalidade saudável apenas algumas poucas dissociações, que ocorrem entre o estado de sono e o de vigília, entre o falso e o verdadeiro self etc. (Winnicott, 1988, pp. 136-7).

Mas, quando ocorrem falhas ambientais severas, o self verdadeiro do bebê não se integra e as cisões originárias não se fecham. A manutenção da fragmentação subjetiva constitui uma defesa contra a paranoia ameaçadora, na medida em que as cisões múltiplas do self podem funcionar como bloqueios diante do perigo externo temido. Daí deriva, etimologicamente, a palavra esquizoide, do prefixo grego schizo, que significa divisão, fenda.

Assim, para Winnicott, a esquizoidia descreve uma patologia - produzida por falhas ambientais -, e não simplesmente uma mera fixação numa posição do desenvolvimento normal, como a define Melanie Klein (Klein, 1946/1991, pp. 20-1).

O esquizoide procura, sempre que possível, incorporar a realidade exterior - e, portanto, o outro - ao seu mundo subjetivo, já que, ao ser incorporado, o outro se torna objeto do seu controle onipotente. E isso, obviamente, se repetirá na relação transferencial com o analista. Nesse tipo de dinâmica, o esquizoide geralmente se funde com o outro, que é, então, visado como uma espécie de prolongamento seu ou, no melhor dos casos, como um objeto subjetivo, sob o seu controle onipotente.

Quando não consegue incorporar o outro ao seu mundo subjetivo - ou seja, quando depara com um outro que resiste a esse processo defensivo e se impõe como uma alteridade - o esquizoide é obrigado a se relacionar com o mundo exterior e, para isso, lança mão de um falso self, nesse caso um falso self patológico, cindido do restante da personalidade - dadas as suas finalidades defensivas, de proteger o self verdadeiro do paciente do ambiente tão temido. Esse falso self - que funciona como um escudo protetor - tem, entretanto, uma estrutura frágil, formada por mimetizações ambientais e, assim, diante das demandas do mundo exterior, facilmente sofre desintegrações.

Quando isso acontece, o esquizoide pode sentir-se exposto às demandas ambientais, insuportáveis para ele, e pode eclodir um surto esquizofrênico, com delírios e alucinações, já que a esquizoidia encarna, simplesmente, uma espécie de esquizofrenia latente que pode, em qualquer período, tornar-se uma esquizofrenia manifesta. Basta, para tanto, que o falso self se desintegre e deixe de funcionar como um escudo protetor.

Nesse caso, o esquizoide pode lançar mão de um outro processo defensivo, que Winnicott denomina desintegração ativa e que, em poucas palavras, descreve um processo de multiplicação e rearranjo subjetivo das cisões do self verdadeiro, para melhor se defender do ambiente persecutório.

As alucinações e delírios constituem, também, construções defensivas, quando o processo de fragmentação falha. Um exemplo disso é deslocar o perigo, delirantemente, para uma pessoa qualquer, o que permite que o paciente a ataque e se livre, momentaneamente, da paranoia.

É preciso, entretanto, salientar que essa descrição, aqui exposta, da esquizoidia não chegou a ser realizada, desta forma mais completa, por Winnicott (que faleceu antes de completar a tarefa), mas foi completada por alguns intérpretes da sua obra, eu entre eles. Assim, em dois artigos anteriormente publicados (Naffah Neto, 2007/2017; Naffah Neto, 2010/2017), procurei desenvolver a descrição das psicopatologias de tipo borderline por ele propostas, descrevendo dois tipos principais: o primeiro denominei personalidade "como se", tomando o termo emprestado a Hélène Deutsch (1942), e, para o segundo tipo, mantive o nome de personalidade esquizoide, proposto por Winnicott. Mas, por razões de tempo e de espaço, não pretendo me alongar, aqui, nessas questões.7

Após essa breve exposição, voltemos ao caso de Maria.

 

3. Análise da esquizoidia

A segunda etapa da análise de Maria, após o período de silêncio, consistiu na minha tentativa de ficar o mais disponível e o menos invasivo possível, para permitir que ela pudesse me incorporar ao seu mundo subjetivo. Evidentemente, naquela época, eu ainda não dispunha de todas essas ferramentas teóricas de que disponho hoje, para fundamentar a minha postura clínica, mas vejo que, de uma forma eminentemente intuitiva, calcado fundamentalmente nas vivências transferenciais e contratransferenciais, foi isso que fiz.

Nesse período, é preciso, ainda, muito cuidado com interpretações, pois qualquer intervenção mais afoita pode ser vivida pelo esquizoide como invasão de privacidade e provocar um acirramento do retraimento defensivo. Eu sentia isso de uma forma quase física, no meu corpo, como se eu quisesse me afundar na poltrona e, quem sabe, sumir dali. Nesse sentido, eu me identificava fortemente com o estado psíquico da paciente e guiava a minha conduta clínica pelas informações que essa identificação contratransferencial me propiciava. Mas procurava, ao mesmo tempo, criar um distanciamento, necessário à função analítica que desempenhava.

O que o esquizoide necessita, nesse período da análise, é de um ambiente constante, tranquilo e confiável, e era isso que eu tentava lhe proporcionar.

Essa segunda etapa durou bastante tempo, talvez meses ou, quiçá, anos; não sei precisar exatamente quanto tempo, pois frequentemente perco a noção do tempo cronológico nos processos de análise. A única coisa que posso garantir é que demorou muito tempo. O que foi acontecendo, ao longo desse período, é que, gradativamente, a confiança de Maria foi aumentando e a sua sensação de persecutoriedade diminuindo. E, também, ela foi saindo do estado de regressão em que se encontrava, para, lentamente, ir assumindo a sua idade cronológica real, de uma moça de 20 e poucos anos.

A terceira etapa da análise foi advindo aos poucos, aí sim, com algumas interpretações (mas muito cuidadosas) e, principalmente, análises de sonhos, que irromperam, no processo analítico, como uma forma de cooperação inconsciente.

É importante salientar que as interpretações, nesse tipo de análise, constituem, na sua maior parte, reconstruções do ambiente traumatogênico da infância do paciente, recriados com base na dinâmica transferencial ou do relato de sonhos. Isso é fundamental, como forma de diminuir o sentimento de culpa reinante, pois, como as falhas ambientais aconteceram muito precocemente, o paciente não discriminava mundo subjetivo de mundo objetivo, portanto, vivia o meio ambiente como um prolongamento do mundo subjetivo, dinâmica essa que persiste, em grande parte, congelada na dinâmica esquizoide. Isso o leva a não discriminar o agente responsável pela produção da sua doença, geralmente assumindo a culpa de tudo. As reconstruções servem, pois, fundamentalmente, para separar o joio do trigo, ajudando a discriminar o que veio das características do paciente ou de conjunções do acaso (por exemplo, uma sensibilidade maior por parte dele ou a ocorrência de uma doença infantil que o afastou da família etc.) e o que veio do ambiente, como falha e ação traumatizante.

As interpretações, na análise de Maria, tinham, pois, essa característica principal: de serem, mais frequentemente, reconstruções ambientais e, menos frequentemente, interpretações transferenciais (que também ocorriam, mas de forma mais rara). À guisa de exemplo, retomo, aqui, uma reconstrução realizada com base em um sonho recorrente.

Maria apresentou, nessa fase da análise, um sonho de angústia, de cunho claramente traumático, desses que parecem tirados dos livros de psicanálise. Trata-se de um sonho que retornou várias vezes e que retratava a seguinte cena: Maria, criança pequena, está deitada no seu berço (mas já consegue segurar nas grades do mesmo e ficar em pé), quando se aproxima um vulto nebuloso, sem feições claras e uma angústia começa a se apossar dela, tanto assim que segura nas grades do berço e fica em pé no mesmo. Quanto mais o vulto se aproxima, maior a angústia se torna, e, quando ela atinge um nível insuportável, o sonho se interrompe.

Todas as vezes em que o sonho foi trazido, procuramos formas de elaborá-lo, para tentar aclarar de quem era o vulto nebuloso que nele aparecia e o que o levava ao berço de Maria, mas nunca conseguimos sair muito da estaca zero, provavelmente pelo nível de angústia que o sonho despertava nela. Mas lembro-me de uma reconstrução que fiz e que lhe foi muito útil. Eu lhe disse: "Na verdade, não importa muito nem quem era, nem o que buscava. Importa que você deve ter sentido a situação como muito perigosa, senão o sonho não lhe traria tanta angústia, nem tampouco você teria se voltado quase que completamente para o mundo de dentro, procurando evitar, sempre que possível, o mundo de fora".

Mas interpretações de tipo transferencial (que eram mais raras) também aconteciam algumas vezes. Lembro-me de uma vez em que lhe disse (não me lembro a respeito de qual assunto, por ela trazido): "Parece que você está querendo me impressionar, com a ênfase que imprime ao seu relato. Será que ainda não tem confiança suficiente de que vou sempre levar a sério as coisas que me diz?"

A análise durou, ao todo, cerca de 10 anos, na maior parte do tempo com duas sessões duplas semanais (com duração de 1 hora e meia), e nos últimos anos com duas sessões semanais (com duração de 50 minutos).

Revendo o processo hoje, entendo que a maior ferramenta terapêutica, nesse caso, foi o holding silencioso e acolhedor do analista, na maior parte do tempo, especialmente nos períodos de maior regressão de Maria. Somente num período posterior, em que a transferência já tinha se consolidado - e, junto com ela, a confiança na análise aumentado e a regressão diminuído consideravelmente -, a interpretação pôde ser usada, e sempre de forma muito cuidadosa, para não produzir um retorno das defesas esquizoides.

Essas questões técnicas talvez descrevam sucintamente esse tipo de análise, de uma perspectiva winnicottiana, diferenciando-a da análise clássica, centrada na interpretação transferencial, e comumente praticada com pacientes neuróticos. Pois a principal tarefa na análise de um paciente esquizoide é ajudá-lo a ir, gradativamente, amadurecendo o seu self verdadeiro, retraído, diante do meio ambiente mais acolhedor e menos persecutório da análise. Ou seja, favorecer o seu processo de integração, para que possa sair da fragmentação esquizoide e conquistar uma unidade viva e real, capaz de se relacionar com o mundo exterior, sem mais necessidade do retraimento defensivo, nem do falso self patológico. Um amadurecimento que se processe com base no mundo subjetivo do paciente em direção ao mundo objetivo, do seu self verdadeiro, em direção à construção de uma relação criativa com o mundo exterior. Percurso esse em que o falso self patológico se dissolve e se reconstrói com base no self verdadeiro, em sintonia e articulação harmônica com ele.

Somente depois dessa longa etapa, é que o paciente se torna capaz de experimentar conflitos edipianos, realizar recalques e que a análise pode ganhar o estatuto de tornar o inconsciente consciente, tal qual a entendemos, na análise dos neuróticos.

Convém, pois, salientar que o inconsciente dos pacientes-limite, cuja dinâmica psíquica ficou congelada nos primeiros estágios de vida, não se confunde, de forma alguma, com o inconscienterecalcado dos neuróticos, mas consiste num inconsciente cuja principal característica é não ter podido atingir o estado de consciência, já que esta não pôde abarcar essas memórias primitivas, que existem, em sua maior parte, como marcas corporais sem qualquer conteúdo imagético consistente, dada a falta de integração no espaço e no tempo, característica dos pacientes-limite (cf. nesse sentido, Naffah Neto, 2014/2017, p. 37, nota 14). Pois são as coordenadas espaçotemporais que promovem a articulação entre as memórias, na forma de marcas corporais, e qualquer conteúdo imagético de teor psíquico, que possa articular-se a elas, imprimindo-lhes algum sentido. Desprovidas de tempo e de espaço, essas experiências arcaicas não podem ganhar um lugar e um sentido, integrando-se numa história de vida. Permanecem como espectros amorfos, testemunhas mudas de que algo extremamente traumático aconteceu e deixou marcas.

Nesse sentido, pode-se dizer que a análise de um esquizoide consiste fundamentalmente em poder criar algum sentido para esse inconsciente amorfo - a partir do amadurecimento do paciente em direção aos processos de espacialização e temporalização -, e não em revelar qualquer sentido latente, encoberto por um sentido manifesto.

O que de mais congênere encontramos na metapsicologia freudiana é a ideia de criar representação para o que permaneceu irrepresentável no psiquismo. Freud desenvolveu essas formulações com base no texto "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/2016). Seu argumento principal é que alguns sonhos repetem traumas primitivos, de forma compulsiva e com uma dupla finalidade: 1) escoar o montante de energia livre, presente sob a forma de angústia; 2) tentar criar alguma representação possível para o que permaneceu irrepresentável no psiquismo (dada a virulência do trauma), transformando, assim, a energia livre em energia ligada (cf., a esse respeito, Viana Campos, 2011). Essa compulsão à repetição reaparece na relação transferencial analítica e é, justamente, com base nela que Freud deduz o conceito de pulsão de morte.

Nesse sentido, o que poderia parecer, à primeira vista, similar à proposta winnicottiana, comporta, também, as suas diferenças, já que Winnicott não trabalhava com a noção de "pulsão de morte" e tampouco com a de "representação". Assim, na perspectiva winnicottina, a compreensão mais fiel do processo seria dizer que as falhas ambientais precoces reaparecem na relação transferencial para produzir, pela primeira vez, uma experiência que não pôde acontecer na história original, devido à imaturidade do bebê (e à sua falta de integração espaçotemporal) e à consequente formação defensiva de um falso self patológico, posto como um escudo protetor entre a falha ambiental e o self verdadeiro do bebê. Ou seja, a imaturidade do bebê, juntamente com a formação dessa função defensiva e protetora do falso self, impediu que essas falhas ambientais viessem a ser experienciadas8 pelo bebê, na história original, devido à sua impossibilidade de elaborá-las.

Portanto, o que está em jogo, aí - e esse é, talvez, o maior diferencial da formulação freudiana -, é a imaturidade do bebê. Além do que, obviamente, representar não é equivalente a experienciar. O bebê winnicottiano - e, de forma análoga, o paciente winnicottiano - não representa os acontecimentos, ele os experiencia e os elabora imaginativamente, com base nas afetações que eles produzem no seu psicossoma.9

Ao serem experienciadas, pela primeira vez, no contexto analítico e por meio da relação transferencial, as falhas ambientais podem, finalmente, ser elaboradas e ultrapassadas.

Winnicott deu a esse processo psicanalítico complexo o nome de análise modificada.

 

Referências

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Recebido em: 10/4/2018
Aceito em: 19/9/2018

 

 

1 Este artigo, com algumas modificações, foi originalmente apresentado como uma conferência, promovida pela Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica e realizada em Lisboa, em março de 2018.
2 A paciente que refiro aqui é, na verdade, um caso verdadeiro, ao qual acrescentei caracteres fictícios, a fim de não permitir qualquer reconhecimento da pessoa real envolvida. Conservaram-se, entretanto, as características principais da psicopatologia do caso e do processo psicanalítico decorrente, com a finalidade de poder desenvolver os argumentos aqui expostos.
3 Na verdade, essa passagem ocorrera com uma paciente anterior, de 40 anos - minha primeira paciente difícil -, e fora motivada por razões clínicas. Era uma paciente que rejeitava todas a minhas intervenções, sem distinção, e quando eu interpretava o que, na época, me aparecia como "ataques ao vínculo analítico", ela se sentia terrivelmente ofendida e incompreendida. Por outro lado, suas poucas associações livres nos levavam para temas da primeira infância, já descritos por Winnicott, o que me levou à necessidade de mudar meu referencial teórico e técnico, para poder tratá-la. Esse processo foi descrito, com mais detalhes, em dois artigos anteriormente publicados (Naffah Neto, 2005; Naffah Neto, 2009).
4 Penso que, se ainda estivesse me referenciando na psicanálise bioniana, provavelmente teria interpretado esses silêncios como uma forma de resistência à análise ou de ataque ao vínculo analítico, em função daquilo que Bion denominava um "dote", característico da personalidade esquizofrênica (portanto, pressuponho que - num nível menos intenso - da personalidade esquizoide, também), formado por quatro traços essenciais: uma preponderância dos impulsos destrutivos tão grande, que faz com que mesmo o amor seja transformado em sadismo; um ódio à realidade interna e externa; um terror de aniquilação eminente e uma formação prematura de relações de objeto, mantidas com tenacidade (Bion, 1957/1991, p. 70). Nesse mesmo artigo, ele sugere que esse dote não provém de traumas ambientais, mas tem origem constitucional, surgido de conflitos entre pulsões de vida e de morte, característicos do esquizofrênico (Bion, 1957/1991, p. 70).
5 No entanto, alguns analistas da tradição kleiniana costumam postular que tratam os esquizofrênicos por meio da mesma técnica clássica com que tratam os neuróticos. Hanna Segal, por exemplo, numa reunião científica da British Society, afirmou que não há diferença entre as necessidades de manejo de um neurótico e as de um psicótico, e isso lhe valeu uma reprimenda de Winnicott, numa carta a ela endereçada. Winnicott disse a ela: "Se a senhora realmente acredita, como muitos de nós, que o paciente psicótico se encontra num estado infantil na situação de transferência, então o que está dizendo realmente é que não existe nenhuma diferença entre as necessidades de manejo de um bebê e as de um adulto. No entanto, tenho certeza de que, numa conversa, a senhora admitiria que, ao passo que uma pessoa madura pode participar de seu próprio manejo, uma criança só pode tomar parte até certo ponto, e um bebê no início depende absolutamente de um ambiente que pode escolher adaptar-se às suas necessidades ou então não se adaptar e ignorá-las ... Eu diria que os problemas de manejo são essencialmente diferentes, de acordo com o nível de desenvolvimento. Se for esse o caso, então os problemas de manejo devem ser diferentes na análise de psicóticos e neuróticos (Winnicott, 1953/1990, p. 41).
6 Convém lembrar aqui que Winnicott não trabalhava com a noção de pulsão de morte, considerando-a como pouco útil para a psicanálise (Winnicott, 1988, pp. 131-134).
7 Resumo, então, brevemente, a minha trajetória. Winnicott descreve dois tipos de personalidade borderline (entendendo borderline no sentido mais amplo: de pacientes fronteiriços, cujas defesas oscilam entre a neurose e a psicose): um que ele denomina tipo extrovertido, cujo eixo vital é um falso self patológico (portanto, cindido do restante da personalidade), mas que, vivendo primordialmente nesse falso self em contato com o mundo objetivo, tem pouquíssimo ou nenhum contato com o seu mundo subjetivo; e outro que ele denomina introvertido, cujo eixo vital é o mundo subjetivo, mas que procura fugir de qualquer contato com o mundo objetivo, sentido como persecutório. Esse segundo tipo ele denomina, claramente, personalidade esquizoide; quanto ao primeiro tipo, ele aparece, em alguns textos, denominado como borderline (fronteiriço), o que o confunde conceitualmente com o sentido mais amplo do termo borderline, proposto por Winnicott. Por essa razão, tomei o conceito de "personalidade como se" emprestado de Deutsch para nomear esse tipo extrovertido, já que a descrição de Deutsch corresponde, quase ipsis litteris, à descrição winnicottiana. Procurei, entretanto, redefinir esse conceito no interior do universo conceitual winnicottiano. Mas, para maiores detalhes, convido os leitores à leitura dos dois artigos referidos.
8 Estou propondo, aqui, o neologismo "experienciar", dada a falta de outro termo na língua portuguesa que exprima melhor a ideia de vivenciar um acontecimento e elaborá-lo.
9 A noção de "representação" comporta uma ideia de duplicação do acontecimento, no nível mental, com base na sua percepção. Assim, se a percepção equivale a uma apresentação do acontecimento, a sua "representação" significa etimologicamente uma re-apresentação deste, como uma espécie de decalque mental do acontecimento percebido. Freud utiliza essa noção para explicar a formação da memória, utilizando, até mesmo, a metáfora do "bloco mágico" (Freud, 1925/1986). "Experienciar", por sua vez, não é representar, mas vivenciar o acontecimento e elaborá-lo imaginativamente, dando-lhe um sentido. Também, esse processo envolve todo o psicossoma, não tendo a característica de um processo puramente mental.

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