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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo July/Dec. 2018

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

Eitingon ex machina1

 

Eitingon ex machina

 

Eitingon ex machina

 

Eitingon ex machina

 

 

Eduardo de São Thiago Martins

Psicanalista, membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes", da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Presidente da Associação dos Membros Filiados (AMF) na gestão 2017-2019, e supervisor no Núcleo de Psicanálise do Serviço de Psicoterapia do IPQ-HCFMUSP. São Paulo. dr.eduardostmartins@gmail.com

 

 


RESUMO

Com base numa retomada histórica do Movimento Psicanalítico, o autor discute a burocratização do Modelo Eitingon de formação e suas consequências institucionais.

Palavras-chave: formação psicanalítica, modelo Eitingon, burocratização


ABSTRACT

Based on historical resumption of the Psychoanalytic Movement, the author discusses the bureaucratization of the Eitingon Training Model and its institutional consequences.

Keywords: psychoanalytic training, Eitingon model, bureaucratization


RESUMEN

con base en una reanudación histórica del Movimiento Psicoanalítico, el autor discute la burocratización del modelo Eitingon de formación y sus consecuencias institucionales.

Palabras clave: formación psicoanalítica, modelo Eitingon, burocratización


RÉSUMÉ

À partir d'une reprise historique du mouvement psychanalytique, l'auteur aborde la bureaucratisation du modèle de formation selon Eitingon et ses conséquences institutionnelles.

Mots-clés: formation psychanalytique, modèle Eitingon, bureaucratisation


 

 

"Uma análise didática é, afinal, uma análise como outra qualquer", repetem as vozes da Instituição. Vozes que também dizem que "cada análise é um salto ao desconhecido" que suporta o não saber do tempo e do espaço. Aonde irá chegar? Quanto tempo vai durar?

Deus ex machina era um artifício usado no teatro grego, principalmente nas tragédias de Eurípedes, como última cartada para resolver um enredo cujas pontas se mostrassem soltas e sem solução. Basicamente, o dramaturgo pouco habilidoso e perdido em sua própria história apelava para que os deuses resolvessem a questão. Um deus era como que baixado por um guindaste até o local da encenação e explicava a história que, em si, era incapaz de se explicar. A expressão, trazida ao nosso colóquio, poderia ser traduzida como: "só Deus sabe".

As regulamentações dos processos de formação em psicanálise, ao longo da história do Movimento, nunca deixaram de aparecer dessa forma. As discussões aprofundadas acerca do que realmente forma um analista nunca tiveram muita reverberação dentro da IPA.

Jones, em uma aula inaugural do Instituto de Viena em 1936, denunciava que, apesar do entusiasmo e do idealismo de Eitingon, o real work nunca havia sido feito:

chamo de real work, não a imposição de regras ou a formatação de um padrão para os diversos países, por mais desejáveis que possam ser, mas as discussões detalhadas e aprofundadas sobre a metodologia da formação. (Jones, 1936, citado por Balint, 1948, p. 163)

Ele segue com a hipótese de que isso nunca se deu por pura falta de interesse. Balint, que estava presente naquela ocasião, considerava que o motivo era, na verdade, uma grave inibição diante da tensão que a questão gera, porque ao questionarmos o sistema de formação somos obrigados a manter acesas questões sobre todo o dispositivo psicanalítico. Ora, haveria algo mais psicanalítico do que isso?

A psicanálise não é uma profissão técnica; também não é uma teoria, nem um dogma; não é práxis com fins terapêuticos bem definidos; não é filosofia, nem arte - apesar de que, muito antes de sua inserção na Academia e na comunidade médico-científica, foram os poetas e os artistas quem melhor disseminaram as ideias freudianas na cultura. Nessa perspectiva, não há como negar a complexidade de suas vias de transmissão.

O tripé proposto por Eitingon, nos anos 1920, para formar um analista - vivenciar sua própria análise, discutir sua clínica entre seus pares e conhecer em profundidade o campo teórico de seu ofício (a metapsicologia) - surgiu, como se espera, empiricamente, e tal qual a obra aberta freudiana, continua em constante construção - fala-se hoje, por exemplo, da participação institucional como o quarto eixo da formação.

Freud, ao citar Goethe, ressalta: "O que herdaste de teus pais, conquista-o, para que o possuas" (Goethe, Fausto, cena I, vv. 682-683, citado por Freud, 1913/2012, p. 240).

Já os parâmetros burocráticos de regulamentação foram sempre ex machina. A discussão inicial era: quanto tempo devia durar a formação, dois ou três anos? A análise didática, naquela época, durava um ano, ou um ano e meio, e era o último passo do processo. Esses parâmetros jamais foram consensuais na comunidade psicanalítica e pouco puderam ser discutidos em bases sólidas do nosso campo de pensamento.

Talvez Jones tivesse razão. Assuntos numéricos não são objeto da psicanálise, mas sim do mercado. Nos anos 1920, Freud vivia seus 70 anos lutando contra um câncer. Próteses, pinos e parafusos na boca, alimentação por sonda, sua barba raspada demorando a crescer. Comentando sobre o método ativo de Ferenczi, escreve ao seu Comitê dos sete mais íntimos, os Senhores do Anel que ditavam as regras, apesar da já existência da IPA:

Em minha recente doença aprendi que uma barba raspada leva seis semanas para crescer. Três meses se passaram desde minha última operação e ainda sofro com a cicatriz. Assim, acho difícil acreditar que em quatro ou cinco meses se possa penetrar nas camadas mais profundas do inconsciente. Naturalmente, porém, curvar-me-ei à experiência. (Rodrigué, 1995, p. 89)

Mesmo cansado e saindo da cena política, o "velho selvagem" não perdia sua essência psicanalítica e esforçava-se para não abafar o movimento do Movimento, que precisava se expandir para além da Europa Central, para além da língua alemã. A Primeira Grande Guerra tornara urgente essa missão.

Ao mesmo tempo, as neuroses de guerra fizeram surgir uma série de outros tratamentos psis que concorreriam com o psicanalítico, e o mundo se aproximava de outro enorme abalo - o econômico. O mercado precisava ser expandido e, ao mesmo tempo, protegido. Eis a tensão paradoxal de qualquer instituição: conservar, mas manter vivo o movimento.

Num informe sobre a Policlínica de Berlim, Eitingon definia sua função nos seguintes termos: "Sou eu que tenho o controle nas mãos" (Rodrigué, 1995, p. 181).

Mal sabia ele que, dali a poucos anos, Carmem Miranda voltaria americanizada. A Segunda Guerra drenaria a Europa e daria aos nossos colegas norte-americanos - os donos da mídia - uma incomensurável força de influência. A cultura time is money e a revolução tecnológica diminuiriam o tamanho do mundo, e a política psicanalítica se tornaria anglo-americana. As associações norte-americanas ameaçariam deixar a IPA caso não pudessem ter seus próprios parâmetros de seleção - apenas médicos poderiam ser psicanalistas. E não há médicos mais mercantilistas do que os da medicina norte-americana, serva da grande Indústria.

Freud morre, o mundo encara os fascismos, e em 1947 as chamadas London Standing Rules determinavam que as análises didáticas teriam de durar quatro anos. Por que quatro? Só Deus sabe. "As coisas mais loucas podem ser feitas com os números, portanto seja cauteloso" (Rodrigué, 1995, p. 326), escreveu Freud a Abraham, sobre suas superstições com o número 7. O fato é que o tempo de formação dos "candidatos" continuaria aumentando, para muito além do que a barba de Freud demorava a crescer... Time is money.

Dinheiro não faltava à Fundação Max Eitingon, que, numa época, foi mantenedora das publicações psicanalíticas - essenciais para a difusão da peste -, mas seu lugar na História não se reduz a isso.

Personagem enigmático, descrito como um burocrata pouco expressivo, mas uma espécie de eminência parda onipresente nos interstícios do Movimento, Eitingon foi o primeiro contato presencial do Grupo das Quartas-Feiras com a psiquiatria goy de Zurique, tendo sido o judeu enviado ao professor como portador das questões de Bleuler e Jung, que imediatamente entraram na pauta da reunião.

O Modelo Eitingon tem, hoje, 93 anos de idade e a fragilidade de um corpo nonagenário. O famoso tripé foi um projeto-piloto da Policlínica de Berlim, primeiro Instituto de formação de analistas do mundo, no Pós-Guerra. Mas a proposta oficial de Eitingon, dentro da IPA, deu-se em 1925, no Congresso de Bad Homburg, quando da fundação do Comitê Didático da Associação (hoje chamado Comitê de Educação e Supervisão). A proposta postulava três principais pontos, que pretendiam padronizar a formação internacionalmente:

1. a formação deveria escapar de iniciativas individuais e cada país deveria ter seu Instituto, cujas regras de formação teriam de ser aprovadas pela IPA;

2. a formação deveria incluir, além da análise didática, a prática da supervisão;

3. cada Sociedade seria responsável por aceitar ou recusar seus candidatos, que só se tornariam membros da IPA após a conclusão de sua formação.

Esse era o tripé da proposta. A função analista didata já estava posta, mas ainda não tinha o status de "profissão terno e gravata" de hoje; Eitingon enfatizava a supervisão; o debate era se o analista poderia ser também o supervisor, e não quem poderia ser o analista; e, para Eitingon, a análise didática deveria ser "tecnicamente" como qualquer outra, portanto ordens numéricas de duração e frequência não constavam no projeto original.

O que na verdade estava em jogo naquele congresso era a questão das análises leigas, e Eitingon estava fazendo um meio de campo diante da pressão norte-americana para medicalizar a psicanálise. Logo, ele propõe um modelo político, não pedagógico.

A IPA foi criada, em 1910, como um órgão de combate, um aglutinador das guerrilhas esparsas para que a psicanálise fosse validada como modalidade terapêutica e para que jamais deixasse de ser psicanalítica, sendo transmitida a partir dos preceitos freudianos básicos: o Inconsciente, como um sistema operativo, e o Sexual Infantil.

Seu primeiro presidente, já numa manobra política, foi Jung. Portanto, não podemos dizer que a IPA começou muito bem, e revela-se até os dias atuais como uma Instituição de extrema fragilidade, a ponto de ser ameaçada por riscos reais de cisão caso o número mínimo de sessões semanais do atual Modelo Eitingon diminua para três.

Convenhamos que há nisso até uma certa graça, apesar de não ser piada. Como diria Fábio Herrmann, "essa coisa de análise didática só se pode levar com um mínimo de humano bom humor" (1993/2088, p. 75).

O Modelo de Eitingon parecia mais aberto a variações na época de sua proposta do que nos dias atuais. Afirmava que "as peculiaridades locais de cada Instituto deveriam ser levadas em consideração" (Eitingon, 1925/1926, p. 130) e era entusiasta da ideia de rodízios entre eles durante a formação. Mas, como diria Freud, "meus discípulos são mais ortodoxos do que eu" (Rodrigué, 1995, p. 91).

O Zeitgeist dos anos 1920 era menos yuppie, e a psicanálise ainda privilegiava o inconsciente à noção de ego, conceito freudiano de eleição entre os anglo-americanos, como meio de adaptar o sujeito a uma sociedade sem os vícios decadentes da velha Europa.

O Movimento, porém, reencontra seu curso. Lacan entra em cena trazendo à tona a noção da psicanálise como uma ética, relendo Freud como resposta à "Psicologia do Eu" e, no que tange à questão da formação, chega ao aforismo "o analista só se autoriza por si mesmo" (1967).

Anos mais tarde, acrescenta reticências à frase: o analista só se autoriza por si mesmo... e por alguns outros" (1974) - não diz quem são "os outros", mas não parecem ser grandes Outros, e sim os próprios pares que legitimam a autorização que é, sim, do próprio analista. Espera-se, porém, que esta não seja tão somente baseada em idealizações institucionais, nomes messiânicos ou números cabalísticos.

A partir daí os meios para se formar um analista transbordaram do continente IPA, provocando situações institucionais dramáticas nos dias atuais, quando candidatos de alguns países pararam de bater às portas da Associação e passaram a procurar outras formações.

Cambia, todo cambia. Nos últimos 93 anos, o mundo mudou drasticamente - as fronteiras nunca estiveram tão borradas e as diversidades em tamanha evidência. O Modelo Eitingon, como vimos, já sofreu muitas variações desde seu surgimento. As vicissitudes históricas e mercadológicas foram aumentando paulatinamente as cifras dos regulamentos e os cifrões da formação.

No início do século XXI, dois outros modelos acabaram sendo aceitos pela IPA: o Modelo Francês e o Modelo Uruguaio, considerados variantes do Modelo Eitingon, uma vez que também se baseiam no tripé de formação. Seriam "outros do mesmo"? Surgiram a partir de discussões aprofundadas e ancoradas na metapsicologia, ou seriam também modelos ex machina?

Sabemos que, em condições ideais, um sujeito se forma, de maneira autêntica, a partir dos estímulos que lhe são transmitidos e de um precipitado dinâmico de identificações (plurais), para poder se tornar um autor-transformador em seu ofício. O maior dos nossos desafios talvez esteja no fato de que uma das principais especificidades do campo psicanalítico se relaciona diretamente com algo que nos é desconhecido, e assim tende a permanecer.

Há um certo mistério nesse ofício, gerador de resistências formatadoras que podem contradizer o que há de mais nuclear em nosso modo de trabalhar. Devemos transmitir o que nos é estranho, o que habita os hiatos, os lapsos, as fissuras; e transmitir o que falha, o que nos escapa é, no mínimo, um enorme paradoxo.

O objetivo da AMF ao propor esta mesa, na perspectiva do tema deste Simpósio - "O mesmo, o outro: psicanálise em movimento" - é fomentar o real work metapsicológico, ou seja, um aprofundamento das discussões acerca do que realmente forma um analista, na esperança de mobilizarmos essa problemática para além das numerologias e do apelo aos deuses. Afinal, Eitingon ex machina não soa muito bem.

 

Referências

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Recebido em: 20/11/2018
Aceito em: 23/11/2018

 

 

1 Trabalho apresentado na ocasião do 1.º Simpósio Bienal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), na mesa-redonda "O mesmo e o outro na formação em psicanálise", organizada pela Associação dos Membros Filiados (AMF), em agosto de 2018.

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