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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

A APF e a formação sem análise didática1

 

APF and training without didactic analysis

 

La APF y la formación sin análisis didáctico

 

L'APF et la formation sans analyse didactique

 

 

Luís Carlos Menezes

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. luismzes@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo descreve o modelo de formação adotado pela IPA sob o nome de modelo francês. Evoca também alguns elementos referentes ao contexto institucional em que foi elaborado, décadas antes, na Associação Psicanalítica da França (APF), para dar conta da relação conflitiva de ex-analisandos de Lacan com o mestre.

Palavras-chave: análise didática, formação analítica


ABSTRACT

This article describes the training model adopted by IPA under the French model name. It also evokes some elements referring to the institutional context in which it was elaborated, decades before, in the Psychoanalytic Association of France (APF), to account for the conflicting relationship of ex-analysands of Lacan with the master.

Key words: didactic analysis, analytical training


RESUMEN

Este artículo describe el modelo de formación adoptado por IPA bajo el nombre de modelo francés. También evoca algunos elementos referentes al contexto institucional en que fue elaborado, décadas antes, en la Asociación Psicoanalítica de Francia (APF), para dar cuenta de la relación conflictiva de ex-analisandos de Lacan con el maestro.

Palabras clave: análisis didáctico, formación analítica


RESUMÉ

Cet article décrit le modèle de formation adopté par l'ipa, sous le nom de modèle français. Il se rapporte aussi à quelques éléments du contexte institucionnel dans lesquel il a été élaboré, quelques décennies auparavant, dans la Association Psychanalytique de France (APF), comme une issue du rapport conflitif de ex-analysands de Lacan avec le maître.

Mots-clés: analyse didactique; formation analytique


 

 

Já tive outras ocasiões de intervir sobre a análise didática, mas o tema de hoje me convoca muito pessoalmente, pois me remete ao modelo no qual fiz a minha própria formação (Menezes, 2015).

Esse modelo foi adotado em 2005 pela International Psychoanalytical Association (IPA) com o nome de "modelo francês", passando a ser uma alternativa possível para a formação nas Sociedades que a integram. Tinha sido instaurado em 1972, mais de trinta anos antes, na Associação Psicanalítica da França (APF), contrariando os padrões vigentes na IPA quanto à exigência da análise didática na formação analítica. Vou evocar alguns elementos do contexto, dos conflitos e das questões que levaram à sua instauração.

O propósito em 1972 era, evidentemente, dissociar a análise do pretendente à formação na APF de qualquer interferência da instituição. E, também, dissociá-la da proposta formativa, sob o argumento de que não é sustentável que uma análise tenha uma finalidade estabelecida a priori, neste caso, a formação de um analista.

A instituição da análise didática no movimento analítico de modo geral é fruto da organização do ensino da psicanálise à medida que esta se difundia, tendo passado a ser uma prática regular, obrigatória, a partir do início dos anos 1920.

Essa prática contém uma contradição, a de uma análise que, ao ser feita no âmbito e por exigência de uma instituição, fica exposta a ser parasitada por ela, misturando-se com questões de áreas de influência e de poder na associação.

Além disso, há que se levar conta o fato de que, sendo uma análise voltada para a formação de um analista para aquela Sociedade, esta terá a particularidade de, uma vez terminada a análise, os analisandos passarem a integrar a mesma Sociedade de seus analistas, na qual conviverão pelo resto de suas vidas. Um destino terá de ser dado aos restos transferenciais da análise.

O propósito da análise didática, ao ser instituída, foi o de assegurar a qualidade da transmissão, de maneira que a prática clínica e o horizonte de pensamento do novo analista estivessem em consonância com seus pressupostos, ao dar conta da necessidade incontornável da análise do próprio analista como condição para a escuta analítica, enfatizada pela ênfase crescente da importância da contratransferência nesse processo.

Com os desdobramentos das concepções e modalidades da prática clínica, um analista precisa, no interior de cada associação, ser reconhecido como tal pelos colegas do mesmo clã, mostrando-se como alguém cuja prática seja aceitável para o grupo.

Nesse ponto, contudo, há margem para questionamentos ao mesmo tempo sutis e fundamentais e que desde sempre foram objeto de divergências e de debates entre os analistas. As cisões na França no Pós-Guerra ilustram de forma exemplar essas questões. Para o que nos interessa agora, vou apenas procurar retomar alguns elementos do contexto histórico em que se deu a abolição da análise didática na APF.

Fundada poucos anos antes de instituir o seu modelo de formação sem didática e sem didatas, a APF foi criada como saída para uma crise no interior da Société Française de Psychanalyse (SFP).

No centro da crise estava em questão a prática formativa de Lacan que, com sua técnica de sessões breves, mantinha um número desmedido de candidatos em análise didática; estes o procuravam atraídos pelo grande alcance de seu ensino, de maneira que Lacan se tornava, ele mesmo, a instituição formativa. A forte influência de um grande pensamento em desenvolvimento sobrepujava a reserva necessária para a análise individual.

A crise girava em torno da busca da reintegração da SFP à IPA: a SFP estava fora da IPA desde a cisão com a Société Psychanalytique de Paris (SPP) em 1953, também por divergências entre, de um lado, Lagache, Lacan e outros, os quais tinham uma concepção mais humanista da psicanálise e, portanto, da formação analítica; e de outro, Nacht e seu projeto de formação escolar, "científico" e "médico" defendido e, de certa forma, imposto por ele.

Nacht tentava ocupar simultaneamente a direção do Instituto e a presidência da Sociedade (SPP) para levar adiante a implantação do sistema de formação mais "médico".

As negociações com as comissões da IPA para a readmissão dos integrantes da SFP - cisão, pois, da SSP - estenderam-se por anos a fio (desde 1953), esbarrando sempre em tentativas de delimitar a prática formativa de Lacan como analista didata. O desfecho se deu em 1963, dez anos depois, com a recusa final da IPA a aceitar as análises didáticas de Lacan, enquanto ele mesmo se mostrava-se inflexível quanto às exigências que lhe eram feitas de fazer sessões longas e de limitar-se à análise de um número menor de candidatos.

Com esse impasse, Lacan teve as suas análises didáticas desautorizadas, renunciou definitivamente à reintegração na IPA e fundou a Escola Freudiana de Paris. Com ele saiu da SFP um grupo importante de analistas. O grupo remanescente, entre os quais muitos ex-analisandos e ex-alunos de Lacan, fundou a APF (Association Psychanalytique de France) em 1964, a qual passou a fazer parte da IPA. A SFP deixava de existir.

Para o nosso tema, não é o lado centralizador, pesadamente burocrático-administrativo da IPA e que há décadas sofria da hegemonia anglo-americana que mais interessa, e sim as dificuldades, amplificadas ao máximo nesse caso, em conviver no interior de uma Sociedade com um analista cuja capacidade excepcional em dar uma nova vitalidade à obra e à invenção freudiana ia de par com a necessidade em ocupar uma posição de mestre para seus analisandos e ex-analisandos, reduzidos, junto a ele, de maneira incontornável, à condição de eternos discípulos.

Um deles, e um dos principais na abolição da análise didática em 1972, Pontalis afirma:

É claro que Lacan fazia tudo para manter este assujeitamento [refere-se ao assujeitamento inerente à transferência e que a análise deve visar desfazer]. Ele dizia sempre, falando de seus analisandos, "meus alunos" [que confusão!], nós o chamávamos "doutor Lacan". (Pontalis, 1998, p. 519)

Em outro texto, parafraseando a conhecida expressão de Searles, Pontalis (1979) inclui entre os ingredientes do "esforço para tornar, a qualquer preço, o outro... lacaniano, para fazê-lo falar em sua língua estrangeira" (p. 9), coisas como "uma cultura incomparável" (p. 9), "a arte de utilizar as molas da transferência e do amor para assegurar a sua posição de Mestre..." (p. 9). Afirmando, pouco adiante, que "a palavra de ordem do 'retorno a Freud' devia quase necessariamente conduzir a uma ida, na maioria das vezes sem volta, para Lacan" (p. 9).

O desafio diante da atração para perder-se no outro se joga para Pontalis no terreno da linguagem:

vejo bem o que me animava então: a recusa, não de reconhecer minha dívida, que continua imensa, para com sua pessoa e seu pensamento, mas de ser apanhado por sua língua...eu via pouco a pouco Lacan forjar sua língua... Acabei pensando que apenas a língua comum - comum, não universal - deixava alguma chance para a fala, naquilo que ela sempre tem de único. Tirânica ela também, mas aberta a todos os sentidos. É que ela ignora de onde vem e para onde vai. Ela é sem deus nem mestre. (Pontalis, 1986/1988, p. 124)

Em um artigo publicado em Documents et Débats, boletim interno da APF, Laplanche traça um breve quadro do período que precedeu a ruptura com Lacan e a reintegração deles na IPA, como APF.

Durante as negociações, foram tomando consciência de que a análise didática com Lacan, com sessões curtas ou ultracurtas, misturadas sistematicamente com o ensino (o Seminário) e "a manipulação de cada um, segundo a sua idiossincrasia" (1987, p. 46), não era acessória - particularidade de um homem e de uma prática clínica -, mas tocava em algo essencial, que dizia respeito à própria concepção do processo analítico ao subordinar a análise a uma finalidade.

Na origem, a finalidade implícita na análise didática era a "propagação da Causa", a psicanálise, e, na situação de uma escola de pensamento em constituição - no caso, o lacanismo coincidindo com a pessoa de Lacan -, tornava-se ela essa finalidade. (Laplanche, 1987)

A IPA, diz Laplanche (1987), serviu "para nos liberar de um certo enfeitiçamento lacaniano"2 (p. 46) e nos levou a uma "discussão sobre os próprios fundamentos de nossa prática resultando em uma reforma radical na formação dos analistas" (p. 46). Esta visava "subtrair ao máximo a análise pessoal de qualquer interferência institucional e de qualquer subordinação a uma finalidade extrínseca, seja ela, a de formar um analista" (p. 47).

No breve apanhado feito por Laplanche no encontro que teve conosco em São Paulo, em 1993, e cujo tema era o sistema de formação da APF, ele voltou a mencionar a tomada de consciência "do domínio que um analista eminente poderia ter sobre um grupo de alunos" (1994/2016, p. 84), acompanhada de outra disposição deles na época, qual seja, a de não sair "de um grupo de influência para entrar num outro" (p. 84).

Em outras palavras, não estavam saindo da pressão hegemonista de Lacan e do lacanismo emergente para cair na modalidade de formação estabelecida pela IPA. A análise não podia deixar de ser iniciada "sob demanda" para se tornar "sob encomenda". (Laplanche, 1994/2016, p. 84).

Sob a liderança desses dois ex-analisandos de Lacan e depois de anos de discussões e de tentativas, uma assembleia com 23 integrantes aprovou por larga maioria (18 a favor, 3 contra e 2 abstenções), em 12 de junho de 1972, um sistema de formação condizente com uma concepção e uma ética da análise, no que se pode considerar, como afirma Gantheret (1992) no boletim mencionado, um ato fundador da APF, no après coup.

A APF podia reconhecer-se, assim, como um projeto que contemplava e dava sentido tanto para as dificuldades irredutíveis da análise e da relação com um analista-mestre quanto para as prescrições quase operatórias da análise de encomenda requerida pelas instâncias dirigentes da IPA, naquela época. Como se tivessem encontrado, finalmente, uma formação coerente com o que buscavam desde a cisão de 1953 com a SSP de Sacha Nacht.

A pessoa que buscasse formação na APF teria já vivido um processo de análise que poderia estar ainda em andamento. Passaria por três entrevistas, nas quais poderia ser levada a falar de sua experiência como analisando. Talvez a melhor maneira de ilustrar isso na prática seja recorrer a um depoimento pessoal.

Durante a minha primeira entrevista, justamente com Pontalis, e que transcorria num clima simpático, em seu consultório, ele me pediu para lhe falar sobre alguma inflexão transferencial mais significativa que eu percebesse em minha análise, então em seu sétimo ou oitavo ano.

Essa pergunta requeria, na verdade, falar ali do que há de mais sensível e delicado de si, tal como isso se mobiliza no interior de uma análise. À medida que eu me embrenhava nas evocações de minha análise, fui me angustiando e me desorganizando; Pontalis, depois de ter suscitado isso, mostrou-se cuidadoso e me propôs para voltar dali a uma semana.

Foi uma semana em que a angústia esteve presente, sobretudo em minhas sessões de análise, mas ao voltar foi possível retomar com um certo recuo. Talvez, em razão dessa difícil experiência, eu tenha sempre imaginado o sistema lacaniano de "passe", em que se fala da própria análise para um grupo de colegas, os "passantes" (passeurs), como uma situação extrema, intolerável.

Esclareço que essas entrevistas eram da iniciativa do pretendente, que, de uma lista de nove analistas (titulares), escolhia seus entrevistadores dentro de seu próprio "tempo". Depois dessa difícil, emocionalmente, primeira entrevista, deixei passar uns dois meses até ligar para o segundo entrevistador. Felizmente, nas duas seguintes, nenhum dos entrevistadores foi tão longe. Claro que havia a possibilidade de desistir depois de qualquer entrevista sem dar explicações a ninguém: bastaria não ligar para marcá-las.

Voltando ao modelo da APF, a não interferência da instituição foi levada a sério a ponto de se entender que qualquer norma sobre o analista do pretendente, por exemplo, que ele fosse da APF, ou da IPA, ou que tivesse esse ou aquele título etc., teria o efeito de uma prescrição retroativa. Isso incluía, evidentemente, qualquer prescrição relativa à frequência semanal de sessões, o que não poderia depender senão de considerações internas à análise.

Em outras palavras, se houvesse prescrições de qualquer ordem sobre a análise pessoal, ao buscar um analista para fazer a própria análise, mesmo anos antes, a pessoa teria de incluir aí a condição exigida pela APF caso tivesse um projeto futuro de fazer ali a sua formação.

O que devia estar em jogo, como em qualquer análise, era apenas o sofrimento da pessoa e sua demanda dirigida ao analista que lhe conviesse. Por isso não havia nenhuma condição sobre o analista: poderia ser alguém de qualquer instituição ligada à IPA ou não, poderia ser lacaniano, poderia ser alguém já em formação na própria APF etc.

A aceitação para a formação é aceitação para a primeira supervisão e para as atividades de ensino, como seminários e atividades científicas da APF. A supervisão não tem limite de tempo. É da iniciativa do supervisando, em acordo com o supervisor, apresentar-se para a validação dela; a não aceitação não é rara. A validação da primeira supervisão possibilita o início da segunda, como entre nós.

Não há seminários obrigatórios. O acesso a estes é uma possiblidade, um direito, não uma obrigação. O candidato tem, também, acesso a todas as atividades científicas da APF. Cada um deve cuidar de seus interesses de interlocução e de estudos. Validada a segunda supervisão, o candidato é ouvido por uma comissão sobre o seu percurso intelectual e as suas orientações. Depois de apresentar um trabalho, é admitido como membro, por votação, creio eu, apenas dos membros titulares.

Termino dizendo que uma vez admitido à primeira supervisão, continuei normalmente a minha análise, por vários anos ainda, com o meu analista que não era da APF. Nunca mais nada me foi perguntado por ninguém, na Associação, referente à minha análise. Isso foi bom.

 

Referências

Gantheret, F. (1992). Vingt ans après. Documents et Débats, 39,93-98.         [ Links ]

Laplanche, J. (1987). L'ipa pourquoi faire? Documents et Débats, 29,45-50.         [ Links ]

Laplanche, J. (1994/2016). Encontro da Diretoria da SBPSP com o Prof. Jean Laplanche. Jornal de Psicanálise, 49(90)79-95. (Trabalho original publicado em 1994. In Jornal de Psicanálise, 27(51),93-107)        [ Links ]

Menezes, L.C. (2015). A análise didática? Jornal de Psicanálise, 48(89),35-42.         [ Links ]

Pontalis, J. B. (1979). Le métier à tisser. Nouvelle Revue de Psychanalyse, 20,9-10.         [ Links ]

Pontalis, J. B. (1986/1988). O amor dos começos (S. Senra, Trad., p. 124). Rio de Janeiro: Globo. (Trabalho original publicado em 1986)        [ Links ]

Pontalis, J. B. (1998). Sur "l'état de santé" de la psychanalyse aujourd'hui et La psychanalyse est-elle mortelle? In J. B. Pontalis, Cent ans après. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Roudinesco, E (1986). Histoire de la psychanalyse en France (T. 2). Paris: Seuil.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/11/2018
Aceito em: 23/11/2018

 

 

1 Trabalho apresentado na ocasião do 1.º Simpósio Bienal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), na mesa-redonda "O mesmo e o outro na formação em psicanálise", organizada pela Associação dos Membros Filiados (AMF), em agosto de 2018.
2 Lacan foi seu analista por muitos anos. Em uma entrevista para Elizabeth Roudinesco, ele disse: "Eu me beneficiei muito de uma longa análise com Lacan e lhe sou muito grato, ainda que eu tenha percebido, depois, as limitações. Apesar de todas as críticas, das quais muitas têm fundamento, a sua lembrança me é muito querida" (Roudinesco, 1986, p. 299).

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