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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

ASSOCIAÇÃO DOS MEMBROS FILIADOS

 

A transmissão da psicanálise: no caminho da participação1

 

The transmission of psychoanalysis in the path of participation

 

La transmisión del psicoanálisis en el camino de la participación

 

La transmission de la psychanalyse dans la voie de la participation

 

 

María Alejandra VázquezI; Maria Noel MauttoniII; Gabriela IrrazabalIII; Ximena MendezIV; Mariana MantiñánV

IPsicóloga. Analista em formação pelo Instituto de Pós-Graduação em Psicanálise da APU. Montevidéu. avazquez1267@gmail.com
IIPsicóloga. Analista em formação pelo Instituto de Pós-Graduação em Psicanálise da APU. Montevidéu. mariamaut@gmail.com
IIIPsicóloga. Analista em formação pelo Instituto de Pós-Graduação em Psicanálise da APU. Montevidéu. gruizirrasabal@gmail.com
IVPsicóloga. Analista em formação pelo Instituto de Pós-Graduação em Psicanálise da APU. Montevidéu. ximemendez98@gmail.com
VPsicóloga. Analista em formação pelo Instituto de Pós-Graduação em Psicanálise da APU. Montevidéu. marumanti@gmail.com

 

 


RESUMO

As autoras refletem sobre a incidência da participação na transmissão da psicanálise. Recorrem à história desde o início da instituição até os dias atuais, enunciando atividades culturais, acadêmicas e científicas que ocorrem tanto na comunidade quanto nos âmbitos hospitalar e universitário. O modelo uruguaio e suas particularidades são descritos, destacando os momentos que marcam mudanças significativas na organização e no funcionamento institucional, bem como no "tornar-se analista". A descentralização do poder do didata e a possibilidade dos analistas em formação terem uma participação ativa no desenho de seu próprio percurso são aspectos considerados notáveis e caracterizam o modelo. Refletem sobre as "transferências institucionais", laços fraternos, rivalidades e a necessária proximidade implicada no trabalho conjunto. Elas apresentam a participação como elemento promotor de mudança.

Palavras-chave: participação, psicanálise, transmissão


ABSTRACT

The authors reflect on the incidence of participation in the transmission of psychoanalysis. They go through history from the beginning of the institution to the present day, enunciating cultural, academic and scientific activities that take place both in the community and in the hospital and university environment. The Uruguayan model and its particularities are described, highlighting the moments that mark significant changes in the organization and institutional functioning, as well as in "becoming an analyst". The decentering of the power of the training analyst, and the possibility of the analysts in training to have an active participation in the design of their own journey are aspects that are considered remarkable and characterize the model. They reflect on "institutional transference", fraternal ties, rivalries and the necessary proximity implied by joint work. They present participation as a promoter of change.

Keywords: participation, Psychoanalysis, transmission


RESUMEN

Las autoras reflexionan sobre la incidencia de la participación en la transmisión del psicoanálisis. Recorren la historia desde los inicios de la institución hasta nuestros días, enunciando actividades culturales, académicas y científicas que se realizan tanto en la comunidad como en el ámbito hospitalario y universitario. Se describe el modelo uruguayo y sus particularidades, destacándose los momentos que marcan cambios significativos en la organización y el funcionamiento institucional, así como en el "devenir analistas". La descentración del poder del didacta, y la posibilidad de los analistas en formación de tener una participación activa en el diseño de su propio recorrido, son aspectos que se consideran destacables y caracterizan al modelo. Reflexionan sobre "las transferencias institucionales", lazos fraternos, rivalidades y la necesaria proximidad que implica el trabajo conjunto. Presentan la participación como elemento promotor de cambio.

Palabras clave: participación, psicoanálisis, transmisión


RÉSUMÉ

Les auteurs s'interrogent sur l'incidence de la participation dans la transmission de la psychanalyse. Ils parcourent l'histoire depuis le début de l'institution jusqu'à nos jours, en énonçant les activités culturelles, universitaires et scientifiques qui se déroulent dans la communauté, et dans les hôpitaux et les universités. Le modèle uruguayen et ses particularités sont décrits, soulignant les moments qui marquent des changements significatifs dans l'organisation et le fonctionnement institutionnel, ainsi que dans le "devenir analyste". Le décentrement du pouvoir du didact et la possibilité pour les analystes en formation de participer activement à la conception de leur propre parcours sont des aspects considérés remarquables et caractérisant le modèle. Ils réfléchissent aux "transferences institutionnels", aux liens de fraternité, aux rivalités et à la proximité nécessaire qu'un travail en commun implique. Ils présentent la participation en tant que promoteur du changement.

Mots-clés: participation, psychanalyse, transmission


 

 

Um pouco de história

Poderíamos dizer, se há um começo, que no final dos anos 1940 um grupo de profissionais começou a busca. Caminho longo e não pouco árduo, com base no desejo de analisar-se e tornar-se analistas. Desde então, a busca da transmissão da psicanálise levou-os (e ainda nos leva) por diferentes caminhos pelos quais nossos antecessores passaram buscando a transmissão da psicanálise. O grupo de interessados em passar por essa experiência crescia, de modo que, nos anos 1950, Willy e Madeleine Baranger se estabelecem no Uruguai, a fim de possibilitar a formação teórica e a análise didática de quem os chamava. Durante este processo que Mercedes Garbarino Freire chamou de "pré-história da APU"2 o apoio dado pelos nossos colegas argentinos foi fundamental, para que, dali por diante, pudéssemos trilhar nossos próprios caminhos.

Na década de 1960 fomos reconhecidos pela IPA. Mas foi a partir do 12.º Congresso Latino-Americano realizado no Uruguai em 1966 que, por meio de um árduo trabalho de equipe, nas palavras de Mercedes F. Garbarino, "adquirimos nossa maioridade" (1988, p. 10).

Aqui já podemos ver como se desenha a história da APU, a partir do desejo de passar por experiência analítica, transmissão da psicanálise, formação teórica e prática supervisionada, e essa participação que desde o início da associação é um pilar básico e fundamental.

Entre 1972 e 1974 foram feitas mudanças, entre as quais se destaca a desconcentração do poder do "didata". Até esse momento o analista didata centralizava todas as funções: análise, supervisão, ensino e era quem autorizava ou não seus alunos ao ingresso no Instituto. A partir de então, a análise pessoal foi separada de qualquer influência institucional no que diz respeito à formação. Além disso, criam-se os chamados grupos de funções,3 que buscavam maior democratização, tendo como objetivo fundamental o apoio institucional ao exercício da função. Da mesma forma, a Comissão de Ensino também era composta por candidatos. Nas palavras de Javier García

Foi democratizador, seguindo um modelo de nossa universidade, incluindo os candidatos na comissão de ensino e formando grupos de funções didáticas que descentralizavam o poder da pessoa do didata para distribuí-lo em nível de grupo. Essas foram mudanças importantes e constituíram em uma característica particular do Instituto Uruguaio. (2015, p. 157)

Desde a década de 1990, a comissão que estudava o plano de formação trabalhou na construção de mudanças que visavam a que os candidatos participassem do projeto de sua jornada pelo Instituto. Assim, nos seminários, as diferentes gerações se integram, com as diferentes trajetórias e experiências. Tanto a livre escolha quanto a decisão sobre o número de seminários a cursar (sempre dentro do currículo) envolvem o candidato de maneira ativa. Os professores também têm liberdade para apresentar, de forma criativa e com base em seus interesses, propostas de seminários, grupos de estudo etc.

O interesse em ser reconhecido como um Instituto de Pós-Graduação em Psicanálise surge de diferentes setores da APU. Cria-se uma comissão que representa a APU no Ministério de Educação e Cultura, conseguindo o reconhecimento do Instituto de Psicanálise da APU como Instituto Universitário de Pós-Graduação em Psicanálise.4

Outro aspecto que consideramos importante destacar como característico do modelo uruguaio são algumas das condições e exigências sob as quais se dá o ingresso no Instituto. Quanto aos requisitos para a candidatura, são: estar em uma análise pessoal de alta frequência (mínimo de três sessões semanais) com um analista habilitador do Instituto, ter diploma universitário de psicólogo ou psiquiatra e apresentar um currículo que, de acordo com o interessado, apresente a pessoa e sua jornada até o momento da candidatura. O candidato deverá apresentar sua solicitação por carta à Comissão de Ensino, que a encaminhará à Comissão de Admissão do Instituto para dar continuidade ao processo. Cada candidato será entrevistado por dois analistas que são membros da referida comissão, individual e consecutivamente. O objetivo das entrevistas é que o candidato possa apresentar seu desejo, suas razões, seu projeto de formação como analista conjugado com sua história e seu processo de análise (informação confidencial). Emitido o parecer da referida comissão, será a Comissão de Ensino que informará ao interessado se o pedido de admissão no Instituto foi aceito ou não.

 

Portas abertas

Um aspecto trabalhado intensamente, com receptividade muito boa, é o diálogo com a comunidade, "apu portas abertas para a comunidade", transitando e fazendo transitar por diferentes cenários em psicanálise. Espaços culturais, sociais, científicos e artísticos. Exemplos destas atividades são: "O Bar de Freud", Ciclo de Cinema e Teatro seguido de debate e intercâmbio, Encontros com o Autor, Exposições de Pintura, Ciclos de Entrevistas na Televisão Nacional do Uruguai, onde se conversa com o público. Também se realizam Atividades Científicas e cursos abertos tanto presenciais quanto online. É evidente a necessidade de ter à mão os elementos que surgem da cultura; cinema, teatro, literatura, música, pintura são cenários a que temos recorrido desde Freud e até hoje, usando-os como pontes, como andaimes na transmissão da psicanálise.

Nesse sentido, o trabalho da APU na Universidade é fundamental. Vale ressaltar que o Instituto Universitário de Pós-Graduação em Psicanálise (IUPP) da APU conta há três anos com um Seminário da Área Livre sobre Freud (área V) que se realiza no Hospital Maciel no âmbito da Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina, sob a forma de Ateneu Psicanalítico Interdisciplinar, coordenado por professores do IUPP; em que participam psiquiatras, residentes, candidatos, psicólogos e estudantes de psicologia, assistentes sociais e estudantes da referida carreira, enumeração que não pretende ser exaustiva, mas que dá uma ideia do interesse que desperta o trabalho interdisciplinar e da receptividade que vem tendo a participação da APU no campo universitário.

Desde o início (permeados e permeando diferentes cenários culturais, a pré-história, a história e o presente da APU), a busca tem sido no caminho da transmissão da psicanálise e de seus pilares inegociáveis: o inconsciente, a sexualidade e a transferência. De um lado, a intensa experiência em transferência da análise pessoal; de outro, a formação teórica e a prática supervisionada; e, finalmente, a articulação dos três, permeada pela participação.

 

Nos interrogamos

Como candidatos, nossa participação influencia a evolução institucional? Se sim, como? Que efeitos teria a convivência que implica a participação, o trabalho conjunto, se é que realmente existem? (Pensemos nas transferências cruzadas, nos riscos do endogâmico, por exemplo.) O que está acontecendo entre como chegamos e o que conseguimos uma vez feita a passagem pela instituição?

Tomaremos, para o início deste trabalho que compartilhamos com você hoje, um dos muitos aspectos, o de ser recebidos na Instituição por candidatos de outras gerações, que marca deixa e a importância de pensar sobre isso. O porquê da dimensão, para algumas pessoas, desse momento quase inaugural que, por estar inscrito no tempo, irá dando lugar a outros momentos. Sem dúvida, não se poderia dar conta dele sem respeitar a singularidade de cada trajetória. Apesar da dificuldade de expressar em palavras tal experiência, tentaremos, com as limitações inevitáveis.

Consideramos que o tempo que antecede a entrada no Instituto - análise, desejo de ser um analista, decisão de apresentar-se, entrevistas de admissão e finalmente a admissão, coroada com a carta que de que cada um de nós recebe: "Prezado Senhor, comunicamos que, de acordo com informações fornecidas pela Comissão de Admissão, seu pedido de ingresso no Instituto de Psicanálise foi aceito" (Atenciosamente e assinatura do Diretor do Instituto) dá lugar a outra entrada, na Instituição, e isso é marcado, entre outras coisas (pelo menos para nós), pela recepção pelos colegas que já vêm fazendo os seminários e que vamos nos informando rapidamente de que estão agrupados na Organização de Candidatos da Associação Psicanalítica do Uruguai (ocapu); recepção que só mais tarde se ressignificará e dará lugar, entre outras coisas, a esta reflexão.

Pensamos: esta forma de nos dar as boas-vindas terá, na geração que entra, o efeito de acalmar (dissipar) fantasias persecutórias, multiplicidade de afetos, medos que trazemos há algum tempo, mais ou menos extenso, de acordo com a vicissitude de cada um, mas sempre mobilizador? Clima antes do ingresso que seria definido por múltiplos questionamentos: estaremos à altura? Vamos nos transformar em alguém na medida da Instituição? Entramos sim; eles nos admitem, sim. Para o quê? Ou: para quê? Sairemos formatados? No sentido de organizados de acordo com um formato para ser operativos? Temores que, por um instante, quase de júbilo, são absorvidos pelo alívio de uma recepção que alimenta fantasias de unificação, que acalma as experiências de exclusão, desagregação etc.

Nossos anfitriões vão nos contando suas experiências na rota pela formação, a trajetória por diversos seminários, a preparação de notas, trabalhos, as incertezas, e nos oferecem o seu apoio tanto em questões administrativas quanto institucionais e acadêmicas (brincando com a palavra "anfitrião", nós a usamos no sentido de receber e compartilhar o que é seu, sem esquecer o deslize para a acepção de anfitrião como aquele que trata de eliminar qualquer tensão que possa surgir entre os convidados); começando assim a ressignificar e estabelecer laços que fazem a fraternidade. Enfatiza-se, em todos, o fundamental da existência e do vigor, chamado entre nós de "o quarto pé da formação"; entendendo essa expressão como a trajetória institucional que os membros da ocapu realizam à medida que participam do decurso institucional.

A partir daí, e no meio do calor e do entusiasmo em nos receber no que será transformado em nossa casa, nosso lugar de pertença; recepção destacamos e que nos motiva a oferecê-la às gerações que vêm; mas também o calor que poderia nos queimar se negássemos o que pulsa em todo grupo humano, em que a pertença traz em si o medo do desconhecido, do que vem de fora, os narcisismos postos em jogo, atritos, rivalidades fraternas, experiências de exclusão, aspectos que, se não levados em conta, poderiam nos fazer cair no terreno da ilusão do desejo satisfeito, sensações de completude, reminiscências de infância ressuscitadas sempre que se forma a angústia diante do que não sabemos. Experiências de desamparo?

Percebemos o compromisso, o envolvimento com a Instituição. Uma Instituição que nos recebe (e da qual esperamos fazer parte), um ser que deve se construir ao longo do caminho. A participação do analista em formação nos diferentes espaços do Instituto tem um grande valor formativo, permitindo lugares de inserção, ação e reflexão. Somos chamados à participação, ao envolvimento ativo, que nos permite ir ocupando lugares, mas temos de conquistar e povoar a partir da nossa singularidade; nos tempos de cada um, no ritmo de cada um, em um design personalizado, mas também conjugando um compromisso com o institucional que nos solicita; solicitação à qual podemos aceder ou não, mas no caso de responder ao chamado, vai-se gerando uma pertença conjugada em gerúndio, portanto inacabada, mas sustentada em processo. Passagens diversas, cada uma com aventuras distintas que fazem as diferenças, que precisamos saber apreciar e incentivar, a fim de propiciar o enriquecimento de diversas posturas, a emergência dos possíveis debates e intercâmbios que vão alcatifando o caminho pela instituição. Trabalhar na prioridade de, como candidatos, sermos os motores de um pensamento reflexivo, de nos questionarmos sobre a Instituição, a que é e a que queremos; que as discussões deem lugar a ações promotoras de a mudança, e estarmos advertidos de não ficar encurralados no silêncio próprio de toda instituição que tenda à inércia; Instituição-Institucionalidade que, por ser necessária (como um terceiro que ajuda a desencadear intrincados atravessamentos transferenciais), não apague a vocação, por questionar-nos, de refletir sobre a nossa formação. Que o entusiasmo de participar e a aceitação de desafios, a tolerância ao não saber e a frustração característica do pensamento freudiano sejam nossa bússola.

Susana García diz, nas palavras de abertura ao primeiro congresso de analistas em formação, de agosto de 2010: "acho que isso [o esforço de participar] tenha a ver com a análise e nossa formação como analistas: nossa tarefa sempre implica um grande compromisso pessoal e, na melhor das hipóteses, uma gratificação diferenciada" (2010, p. 9).

Logo estamos na lista de discussão que reúne os candidatos, aqueles que entram, aqueles que são, todos, e ali é um dos lugares onde se percebem a atividade, os interesses, os questionamentos, a organização e a participação em jornadas, encontros, respostas a outras organizações de candidatos de outros países. Instâncias que convocam reuniões regulares, nas quais notamos, pouco a pouco, como a assistência vai dando lugar à participação, e assim, nesse âmbito, vai-se entrando no Institucional. Muitas vezes temos a sensação de que a instituição vai nos exigir, em alguns momentos, um ritmo difícil de seguir, sentimos o lado bom de ser convocados, mas ao mesmo tempo se vive a frustração de não poder administrar tudo - experiências de ser requerido e não poder dar resposta a tudo o que a Instituição nos apresenta, gerando ansiedade em muitos de nós por não cumprir os requisitos da APU. O que nos leva, também, a pensar sobre nossos próprios limites, aceitar a castração.5 Por deslocamento, surge o mesmo sentimento com o grupo de candidatos que nos abriga, e assim APU/ocapu permaneceriam no lugar daquele que detém um ideal e, portanto, nos sentimos compelidos à adesão para não perder os privilégios que a Instituição nos dá, em uma espécie de acordo implícito (proteção, inclusão, identidade). Acreditamos que esses itinerários, ao serem compartilhados em diversos âmbitos (este é um deles), ajudam-nos a estar advertidos dos riscos de não refletir sobre nosso caminho na formação e na transmissão da psicanálise, dado que esses ideais circulam também de uma forma inconsciente (referimo-nos aos ideais postos na Instituição, que poderiam substituir nosso narcisismo perdido da infância, em que nós mesmos éramos nosso próprio ideal).

A partir daquele lugar inicial de sermos recebidos, espectadores - esperando ver como trabalham nossos colegas que já têm um percurso na Instituição, vamos nos apropriando de um lugar que se nos dá e que teríamos a oportunidade de ocupar. Fazendo uma jornada, uma pertença, vamos assumindo responsabilidades, o compromisso com a Instituição e seus avatares, Instituição que nos "admite", mas nesse mesmo movimento temos a chance de, pela participação, influenciar (para aqueles de nós que se sentem chamados para isso, que não necessariamente deve ser todo o coletivo).

No discurso de abertura do primeiro congresso de candidatos que acabamos de mencionar, Susana García,6 falando da necessária idealização da instituição a que aspiramos e da função a desenvolver como futuros analistas, menciona também a importância de que essa idealização se atenue para tornar-se analistas:

sabemos que é muito tentador o poder da transferência [dizemos transferência institucional, transferências múltiplas, com professores, supervisores, analistas], sabemos que é muito fácil sustentar o caminho do narcisismo e continuar a considerar nosso conhecimento e nossa experiência não como algo para dar, não como dom a entregar, mas como algo por trás daquilo com que nos protegemos, e considerar os outros como "carentes de experiência, eles precisam de mais análises, muito jovens..." e é aí que vocês [refere-se a nós, os candidatos] têm que batalhar. (García, 2010, pp. 10-11)

Aí queremos nos deter. Batalhar na acepção do compromisso que assumimos com a Instituição (APU) a partir da ocapu, entendendo por isso que o trabalho sustentado de confrontar a postura que colocaria a APU no lugar de uma Instituição ideal, geradora de um modelo de analista ideal e uma formação regulamentada que o garantisse, e, nesse confronto, ir desmantelando o que situássemos nesse lugar idealizado, para poder emergir como sujeitos críticos, participantes ativos em nossa formação (sujeitos de nossa formação); defender uma transmissão da psicanálise que nos remetesse a ir de um lugar para outro, ser atravessado, no entrelaçamento de múltiplas transferências, pela instituição, pelos nossos professores, supervisores, transferências que fazem a formação, transferências cruzadas que criam obstáculo e que também teriam de cair para finalmente tornar-se analistas portadores do analítico em que a incompletude e a relatividade do saber é imanente, assim como a rejeição de toda certeza que represente a ameaça do dogmático. O questionamento constante próprio da psicanálise, tanto com base na sua teoria quanto na prática, guia-nos na nossa formação, e as palavras de Freud a Fliess "Às vezes, algo dentro de mim me impulsiona a uma síntese, mas eu resisto" (Freud, 1904/1994, p. 447) nos ajudam a estar atentos.

Cada um dos candidatos tem seus tempos, ritmos e formas de ir caminhando pelos requisitos institucionais, pela organização em que nos agrupamos (ocapu), que integramos, mas que também nos precede, que atua, muitas vezes, como rede de contenção; como âmbito onde dizer nossas incertezas, desconfortos, não está livre de tornar-se um lugar que tende a se homogeneizar, onde levantar dissidências e ser porta-voz de desentendimentos do funcionamento do grupo nem sempre são bem recebidos; isso nos leva a trabalhar e ser cautelosos para não ficarmos lentos até a quietude, de ficar entrincheirados em um discurso de abertura para o novo, para o diferente, que poderia disfarçar forte resistência à mudança, à complexidade. ocapu nos oferece uma referência na estrada (aventura) de formação, em uma formação que nos move e interpela sem pausa, e acreditamos que assim deva ser; a revisão de nosso funcionamento como uma organização, o pensar em nossas ações, acreditamos, favorece a fortaleza da ocapu.

Esta impregnação das pessoas no institucional por meio das várias comissões que integramos com candidatos que nos representam, comissões que servem de ponte com a Associação Psicanalítica e seus representantes, vai fazendo em nós uma espécie de transformação a partir de novas identificações, que vai dando lugar ao que Javier García chama de "tornar-se analista" advento que acreditamos ter um grau de parentesco com a participação, o ser/sentindo-se parte, a implicação, o esforço e o compromisso, que para nós faz a transmissão da psicanálise.

Pensamos este "tornar-se analistas" não a partir do que é ditado para nós como adestramento ou instrução, mas a partir de passagens, transições, itinerários, que vão deixando a sua marca, novas marcas que, ousamos dizer, vão acontecendo em um ser atravessados por diversas transferências, o inconsciente e suas expressões, o que nos vai impulsionando; um ir sendo/ir fazendo, que tem como condição para manter-se vivo que não se estabeleça de uma vez por todas e que nos permite fazer da nossa paixão pela psicanálise o nosso rumo.

A partir desta marca de se tornar analistas, lembramos que os candidatos também são analistas em formação. Como somos nomeados por nós mesmos e pelos outros, fazemos quem somos. É hora de começar a nos chamar analistas em formação em um lugar formal? Situação que ocorre de fato em várias áreas não formais. É hora de institucionalizar o que estamos sentindo e propondo? De certa forma, já não fazemos parte da transformação da ocapu em OAF da APU, Organização de Analistas em Formação da APU? Acreditamos que seja parte de nossa participação na transmissão da psicanálise poder reconhecer que o que se torna analistas é muito mais que nós mesmos. Esperamos que, em um horizonte não muito distante, possamos substituir, nos trabalhos que apresentamos, o termo candidato por analista em formação, mudança a conquistar a partir do trabalho e da discussão na organização e no diálogo com a associação.

Para Freud, "o progresso do conhecimento não tolera rigidez alguma, nem nas definições. Como o exemplo da física ensina claramente, também os conceitos básicos fixados em definições sofrem uma mudança constante de conteúdo" (1915/1992, p. 113).

Javier García nos conta em seu ensaio "La transmisión institucionalizada del psicoanálisis en los comienzos del siglo XXI":

Parece importante, então, em meio a tantas forças que tornam difícil a produção de um sujeito, fazer todo o possível para sustentar esse lugar delicado de gestação cada analista na singularidade de cada experiência. ... [a] singularidade da formação de cada aspirante e candidato é uma pequena joia delicada a cuidar, a preservar, cultivando-a para produzir essa diversidade. (García, 2014, p. 142)

Com ele, localizamos esse aspecto artesanal e distinto como uma das características essenciais da formação. "O desafio é incluir as diferenças" (idem).

Consideramos, para finalizar, que o tripé que sustenta a formação com base no modelo uruguaio é composto de: análise pessoal, formação teórica e formação prática supervisionada; adicionamos a participação em nossa organização de candidatos; - por meio dela e dos nossos representantes nas diferentes comissões - e nosso envolvimento nas ações institucionais, a partir de dentro, do trabalho cotidiano, no percurso, percurso que supõe abertura ao novo a partir do que nos antecede (a história, o que causa, nos fundamenta e nos lança a desafios), lugar de referência que nos espelha identidade e pertença à nossa Instituição, que é esta e não outra.

E neste sentido do novo e do que vem daqueles que nos precederam, gostaríamos de fazer nossas as palavras de Marcelo Viñar em relação à transmissão em psicanálise:

Temos importado da antropologia (e / ou história das ideias) a importância da transmissão entre gerações, e a única coisa de que estamos seguros é de sua existência e eficácia simbólica no progresso da ciência e da cultura, mesmo se ignorarmos boa parte dos itinerários, elevadores e labirintos por onde se produz essa transmissão, entre continuidades e rupturas. (Viñar, 2011, p. 139)

 

Referências

Freire de Garbarino, M. (1988). Breve historia de la Asociación Psicoanalítica del Uruguay. [En línea]. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, (68).         [ Links ]

Freud, S. (1992). Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (1994). Cartas a Wilhelm Fliess (1887-1904). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1904)        [ Links ]

García, J. (2014). La transmisión institucionalizada del psicoanálisis en los comienzos del siglo XXI. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, (118).         [ Links ]

García, S. (2010). Primer Congreso de Analistas en formación. Palabras inaugurales de apertura. Grafo 10.         [ Links ]

García, J. (2015). Conversando con Javier García. Grafo 14.         [ Links ]

Viñar, M. (2010). Comentario sobre el texto de Ricardo Bernardi. Nota sobre la obra de G. Koolhaas. A propósito de la recepción de las ideas de Lacan en el Río de la Plata. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 111,103-105.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 22/11/2018
Aceito em: 23/11/2018

 

 

1 Trabalho apresentado no 11.º Congresso Argentino de Psicanálise, "Cenários da Psicanálise", em maio de 2018, e no 1.º Simpósio da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, "O Mesmo, O Outro", em agosto de 2018.
2 Asociación Psicoanalítica del Uruguay (N. do R.).
3 Grupos de reflexão, estudo e investigação com funcionamento horizontal que contam com a participação de representantes dos candidatos.
4 Em 17 de julho de 2003 se estabelece como Instituto Universitário pelo reconhecimento do Ministério da Cultura. Em 31 de maio de 2007, o registro do Mestrado em Psicanálise é autorizado pelo Ministério da Saúde Pública.
5 Daí a ideia do novo plano do IUPP de propiciar que cada candidato projete seu próprio itinerário de formação.
6 Na condição de diretora científica da APU e, nessa ocasião, como presidenta do 4.º Congresso da APU.

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