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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Núcleos neuróticos e não neuróticos1

 

Neurotic and non-neurotic nuclei

 

Núcleos neuróticos y no neuróticos

 

Noyaux névrotiques et non névrotiques

 

 

Marion Minerbo

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. marionminerbo@gmail.com

 

 


RESUMO

Escrito na forma de diálogo com um jovem colega, o artigo tem como ponto de partida material clínico ligado a núcleos neuróticos e não neuróticos em uma mesma paciente. O objetivo é discutir como se constituem esses núcleos, como se dá sua repetição na transferência e como trabalhar com eles na situação analítica.

Palavras-chave: núcleos neuróticos e não neuróticos, elementos-beta tanáticos, elementos-beta eróticos, repetição, transferência e contratransferência, manejo


ABSTRACT

Written in the form of a dialogue with a young colleague, the article has as its starting point clinical material related to neurotic and non-neurotic nuclei in the same patient. My purpose is to discuss how do these nuclei originate, how their repetition occurs in transference and how to work with them in the analytic situation.

Keywords: neurotic and non-neurotic nuclei, tanatic beta-elements, erotic beta-elements, repetition, transference and countertransference


RESUMEN

Escrito en forma de diálogo con un joven colega, el artículo tiene como punto de partida material clínico ligado a núcleos neuróticos y no neuróticos en una misma paciente. El objetivo es discutir cómo se constituyen esos núcleos, como se da su repetición en la transferencia y cómo trabajar con ellos en la situación analítica.

Palabras clave: núcleos neuróticos y no neuróticos, elementos-beta tanáticos, elementos-beta eróticos, repetición, transferencia y contratransferencia


RÉSUMÉ

Rédigé sous la forme d'un dialogue avec une jeune collègue, l'article a pour point de départ d matériel clinique lié aux noyaux névrotiques et non névrotiques chez une même patiente. L'objectif est de discuter la façon dont se constituent ces noyaux, comment leur répétition apparaît dans le transfert et la manière de travailler avec eux dans la situation analytique.

Mots-clés: noyaux névrotiques et non névrotiques, éléments bêta mortifère, éléments bêta érotiques, répétition, transfert et contre-transfert


 

 

Olá, AnaLisa! Vamos continuar nossos Diálogos sobre a clínica psica nalítica? Você viu que eles saíram publicadas em livro pela editora Blucher em 2016?

Vi, sim. Meus colegas acharam bem útil poder acompanhar aquelas conversas. E aí eu pensei em te propor novos diálogos sobre a clínica psicanalítica. Poderíamos conversar sobre alguns dos textos que você publicou em revistas especializadas, às quais nem todos têm acesso.

Que boa ideia! Nesse caso eu começaria por um texto que saiu na Revista Brasileira de Psicanálise em 2010 que se chama "Núcleos neuróticos e não neuróticos: constituição, repetição e manejo na situação analítica". Ainda mantenho o essencial das ideias, mas tenho muitas coisas a acrescentar, principalmente sobre a clínica.

É uma continuação do seu livro Neurose e não neurose (2009)?

No livro eu me preocupei em mapear, dos pontos de vista clínico e metapsicológico, estes dois grandes territórios da psicopatologia psicanalítica. Mas no artigo que estou propondo discutirmos faço uma coisa um pouco diferente: reconheço, na mesma paciente, material clínico que aponta para um núcleo neurótico e a um não neurótico.

Numa mesma paciente? Pensei que neurose e não neurose se referissem a estruturas psíquicas diferentes!

Os textos que eu li quando escrevia o livro faziam referência a estruturas e eu acabei mantendo o termo. Hoje eu tiraria porque na prática não é assim. Todos temos núcleos neuróticos e não neuróticos convivendo lado a lado.

O que, exatamente, você chama de núcleos?

O termo núcleo remete a certo tipo de organização e de processos inconscientes. Os núcleos determinam uma forma de sentir, pensar e agir, o que, por sua vez, se manifesta clinicamente como uma forma de ser e de sofrer. Núcleo melancólico, núcleo paranoico, núcleo masoquista, etc. O termo genérico "não neurótico" se refere a todos os tipos de funcionamento psíquico em que a separação sujeito-objeto não foi suficientemente conquistada.

O que te levou a escrever este texto?

Em geral, quando lemos um texto teórico-clínico, o autor aborda o sofrimento produzido por um único núcleo. Só que na teoria, como te disse, é consenso que há núcleos de todos os tipos convivendo lado a lado. Eles afloram, ou seja, se manifestam clinicamente em função de determinadas situações de vida.

É mesmo. E isso sempre nos surpreende. Freud (1921) escreveu sobre os fenômenos de massa e mostra como as pessoas, quando se juntam em grupos, podem fazer coisas que até então eram inimagináveis. Se isso acontece é porque aquilo existia como potencial que pode ser "acordado" num determinado campo intersubjetivo.

Existia na forma de núcleo inconsciente! Pois bem. Eu atendia uma paciente que me deixava intrigada. Ora eu escutava material que parecia ligado a aspectos neuróticos, ora a aspectos não neuróticos.

Quer dizer, elementos edipianos e narcísicos.

Isso. Também na contratransferência eu me sentia convocada de modos diferentes. Mostrar como esses dois núcleos se manifestam numa mesma paciente, com todas as consequências em termos de manejo transferencial, me pareceu um bom jeito de dar continuidade aos meus estudos sobre psicopatologia psicanalítica.

Você poderia fazer um resumo do texto, para eu ter uma ideia prévia?

Boa ideia. Afinal, o título é tão extenso, e mesmo um tanto pretensioso: "constituição, repetição e manejo na situação analítica".

Pelo que te conheço, imagino que você não teve a pretensão de esgotar o tema.

Verdade. Apenas tentei imaginar, a partir da repetição na situação transferencial-contratransferencial, que tipo de relação intersubjetiva entre minha paciente e seus objetos poderia estar na origem destes núcleos, isto é, como eles se constituem. E para isso levei totalmente a sério a ideia de intersubjetividade, o que significa lembrar que o objeto com o qual o sujeito se constitui é também um outro-sujeito.

Quer dizer que para entender o sofrimento neurótico e não neurótico é importante reconhecer o que "transbordou" do inconsciente parental.

A primeira menção a esse "transbordamento" foi do próprio Freud. Não lembro bem onde, ele diz que o superego não se constitui sobre o modelo dos pais, mas do superego dos pais.

Ah! De elementos que são inconscientes para eles!

E para falar desses elementos vou usar o termo elemento-beta, que você conhece bem. Só que Freud falou em dois tipos de inconsciente. Imagino que você tenha estudado seus dois modelos de aparelho psíquico. Na primeira tópica (1915/1969) o inconsciente é o que já foi consciente, mas precisou ser recalcado. Na segunda (1923/1969), ele é formado por elementos que nunca chegaram a ser conscientes: ficaram clivados. Com base nessa diferença, proponho diferenciar elementos-beta eróticos e tanáticos.

Isso é novidade para mim. Poderia explicar melhor?

Os elementos-beta eróticos têm a ver com a sexualidade infantil recalcada das figuras parentais. Os tanáticos, com sua problemática narcísica clivada.

Então são esses elementos que "transbordam" do psiquismo parental, originando respectivamente os núcleos neuróticos e não neuróticos? Ufa, parece muito complicado! Quem sabe a clínica me ajude a entender melhor essas ideias.

Vamos lá. A paciente é uma jovem estilista cuja mãe representa uma grife de luxo no Brasil. Ela completou seus estudos no exterior e parece bastante talentosa. Recentemente, conseguiu um emprego num ateliê de moda. Muitas das nossas sessões têm como tema a "luta de egos" dos estilistas. Vou começar com dois fragmentos que se referem ao sofrimento narcísico.

Situação 1. A paciente me conta que foi, toda animada, mostrar à mãe uma produção do seu ateliê. A resposta foi um balde de água fria: a mãe apontou uma série de defeitos naquilo que estava mostrando e completou dizendo que a grife dela é mais classuda. A paciente associa com o filme Sonata de outono, em que a mãe, pianista famosa, tinha de ser o centro das atenções.

Situação 2. Está preocupada com o ateliê. As duas sócias não param de brigar. Uma faz de tudo para pôr a outra para baixo. Desse jeito, diz a paciente, ninguém vai para lugar nenhum, e o ateliê vai afundar.

Na situação 1 me chamou a atenção que o filme foi uma associação ao balde de água fria.

A mãe retratada nesse filme é muito narcísica, o que prejudicou a vida das filhas.

E por que será que a mãe teve de introduzir uma comparação entre elas? "Minha grife é mais classuda, a sua está cheia de defeitos." Parece um ataque.

É um ataque. A figura materna, tal como aparece nesse material, tem inveja e rivaliza com a filha. Para se sentir por cima, precisa pô-la para baixo.

Mas não é a filha que rivaliza com a mãe?

Numa situação de rivalidade edipiana, sim. A menininha rivaliza com a mãe pelo amor do pai. Mas esse material não faz qualquer referência à triangulação. A rivalidade é do tipo narcísica, é um enfrentamento entre narcisismos: só uma pode ter valor, e, para isso, a outra precisa ser desqualificada, destruída.

É mesmo um ataque invejoso. Mas não consigo entender como isso pode acontecer.

Para entender como uma mãe pode ter inveja da filha é preciso adotar uma perspectiva transgeracional. Se a mãe não elaborou a rivalidade narcísica com sua própria imago materna, vai atuar isso com a geração seguinte. Dependendo do tom de voz, do olhar, do contexto, a frase "a minha grife é mais classuda do que a sua" pode ser um ataque e tanto. Só que inconsciente.

Puxa, e qual a consequência desse ataque inconsciente?

O ataque ao narcisismo infantil configura uma zona de traumatismo primário (Roussillon, 1999). E, como todo traumatismo, estará submetido ao regime da compulsão à repetição. Tanto que a situação 2 ilustra a guerra interminável entre dois narcisismos, em prejuízo do crescimento de ambos ("ninguém vai para lugar nenhum, e o ateliê vai afundar").

Então, pelo que entendi, a situação é traumática porque a figura materna, que deveria ajudar a metabolizar experiências tóxicas, é a própria fonte da toxicidade!

Exatamente isso. O psiquismo em formação não tem condições de simbolizar que se trata de um ataque, que o motivo do ataque é a rivalidade narcísica, e que está sendo atacado no lugar de outro objeto. E vai se defender usando duas defesas: a clivagem e a identificação com o agressor (Roussillon, 2012-2013).

OK, mas antes eu quero saber um pouco mais sobre essa história de evacuar elementos-beta no psiquismo em formação. Como você chegou nisso?

Foi com base na ideia de "significantes enigmáticos" de Laplanche (1987). São elementos que dizem respeito à sexualidade inconsciente do psiquismo parental implantados no psiquismo em formação. Cardoso (2002) reconheceu, além da implantação, uma outra situação, que foi a que me interessou: a "intromissão" das mensagens enigmáticas do outro. A intromissão seria a vertente violenta da implantação.

O balde de água fria!

Essa violência percebida, mas não representada, é desorganizadora do narcisismo da criança. O termo "tanático" me parece apropriado, porque o adulto defende o próprio narcisismo atacando o narcisismo da criança. Em vez de funcionarem como o grão de areia que mobiliza o potencial criativo da pérola, como diz Laplanche, as mensagens tanáticas funcionam como um corpo estranho que destrói a ostra, isto é, desorganiza um setor do narcisismo primário. O que foi clivado no objeto primário continuará clivado no psiquismo em formação.

Como assim?

O balde de água fria que a mãe joga na filha não faz sentido para ela. De onde vem? Por que vem? As mensagens tanáticas não podem ser metabolizadas. Por isso ficam clivadas também na filha!

Entendi: os núcleos não neuróticos são uma espécie de cicatriz deixada pela desorganização do narcisismo primário, e pela ação das duas defesas que ajudaram a pessoa a tocar em frente: clivagem e identificação com o agressor.

E o pai? Onde ele entra?

As coisas são bem diferentes quando um terceiro intercede interceptando, ou significando os ataques tanáticos. Alguém que estivesse presente na cena poderia dizer: "Sua mãe está com inveja, eu a conheço, ela sempre precisa ser a mais bacana em tudo". E para a mãe: "deixa a menina em paz, não está vendo que a proposta da grife dela é outra, para um público mais jovem, mais irreverente?"

E o que acontece quando não há esse terceiro?

Então o sujeito não terá alternativa, a não ser alojar os elementos-beta tanáticos que o psiquismo parental não foi capaz de conter dentro de si.

Legal, acho que estou acompanhando bem. Gostaria de voltar à outra defesa que você mencionou, a identificação com o agressor.

A psique em formação responde ao ataque ("minha grife é mais classuda do que a sua") por meio de uma identificação primária com o não simbolizado materno. Na verdade, são identificações complementares entre o agressor e o agredido.

Ah, então aquela "luta de egos" descrita na situação 2 se refere a essas identificações complementares? No ateliê, cada sócia se sente ameaçada pela outra, e vice-versa. Se alguma delas fizer algo bacana, desperta inveja na outra. Agora fica evidente: se cada ideia boa for atacada, o ateliê só pode afundar.

Puxa, com tudo isso, desconstruir essa identificação parece ser das coisas mais difíceis de serem feitas em análise.

De fato, não é simples. Emmanuelle Chervet (2017) escreveu um texto difícil, mas esclarecedor, no qual apresenta as duas vertentes em que se dá o trabalho analítico.

A primeira é o trabalho de simbolização, de construção de representações que enriquecem o espaço do pré-consciente. Então veja. A paciente fala da luta de egos no ateliê. É um material a ser trabalhado: como é a luta, quais egos, por que será que isso acontece etc. Essa historinha é preciosa em termos de representação do trauma precoce. Ela vai conduzir a novas associações, igualmente preciosas.

O analista vai dando corda. Mas lá pelas tantas, a transferência estoura do colo do analista. Essa é a segunda vertente do trabalho analítico: a "desconstrução" das identificações que estão sendo agidas na transferência.

Como você sabe quando a transferência estoura no seu colo?

O clima muda. Há uma tensão no ar. A contratransferência negativa acusa a atualização da transferência no aqui e agora.

Como seria isso no caso da nossa paciente?

Vamos falar disso mais tarde com calma. Mas só para não deixar de lhe responder, o que acontece é que de repente as duas vertentes se juntam na cabeça do analista. Ele se dá conta de que a luta de egos é lá, e que o ateliê que vai afundar também é lá. Então é chegado o momento de trabalhar não só com as representações, mas também com as identificações; não só com o que se atualiza na/pela linguagem, através das historinhas, mas também com a transferência posta em ato que se atualiza no aqui e agora.

É aí que entra o manejo?

Exatamente. Quando as identificações se atualizam no aqui e agora, o analista certamente estará identificado com um aspecto da figura parental. Então, primeiro o analista vai precisar se desidentificar da figura que está encarnando na transferência. Sem isso o paciente não consegue mudar de posição subjetiva.

Bem complexo tudo isso!

Já te conto como foi o manejo nesse caso. Mas antes precisamos entender a oposição, já apontada por Freud (1914/1969) no texto de 1914, entre repetir e recordar. A repetição estaria no plano do ato, da ação; enquanto a recordação estaria mais no plano da representação, da possibilidade de simbolizar.

Faz sentido...

Mas Donnet (2005) faz uma crítica a essa oposição. Ele diz que na clínica, agir e representar se apresentam num gradiente: há falas que "fazem" mais do que "dizem", e vice-versa. Ou seja: há falas que são mais atos do que representações, e vice-versa.

Não sei se entendo essa diferença entre a palavra que "representa" e a palavra que "faz".

É fácil. Quando alguém o xinga, é apenas uma palavra, mas machuca como um tapa na cara. A palavra funciona como um ato. É assim também na transferência: quanto mais cru aquilo que se repete, maior o valor de ação da fala do paciente. É aí que entra o manejo: o analista vai ter que fazer-alguma-coisa-falando. Foi o que aconteceu quando a rivalidade narcísica se estabeleceu entre mim e a paciente.

Rá! Agora é que eu quero ver! (risos)

O pulo do gato? Então preste atenção. Na situação 2, quando ela descreveu a "luta de egos", acrescentou que não entendia por que as sócias preferiam ver o barco afundar a colaborar para o bem de todos. Esse material tematiza o núcleo não neurótico, mas não o atualiza no aqui e agora. A coisa ainda não estourou no meu colo. Sem atualização pulsional não há mudança psíquica.

O problema é que essa atualização se dá na dimensão não verbal da comunicação. É nela que se expressam os aspectos tanáticos que originaram esse núcleo.

Quer dizer que você também vai levar um balde de água fria?

Vários! Em função da problemática que ela precisa elaborar, ela vai fazer meu narcisismo sofrer. É assim, pela contratransferência, que poderemos ter notícias dos elementos tanáticos que estão se atualizando na transferência. Com ela eu sentia que levava um "tranco". Tudo o que eu dizia, ela "corrigia". Sempre tinha algum "defeito".

Ah, como a mãe fazia com as roupas que ela mostrava!

Exatamente. Ela me tratava como foi tratada. É a identificação com o agressor, que estão clivadas. Eu estava sendo posta no lugar da criança-nela. Sofrendo aquilo que a criança-nela sofreu, registrou, mas não conseguiu simbolizar. Mas, até eu conseguir perceber tudo isso, era um tranco atrás do outro.

Que trabalho louco, o nosso!

Pois é. Somos contratados para isso. Aceitar um paciente em análise é a mesma coisa que dizer para ele: "pode transferir!" Sendo que a gente nem sabe qual é o script!

Imagino que, até o analista perceber que é disso que se trata, pode ficar irritado, ou então desanimado...

Sim, até cair a ficha pode levar bastante tempo. Enquanto isso, ele perde sua condição de escuta, e seu narcisismo sofre. Quando consegue, se segura para não atuar, para não perder de vez seu lugar de analista.

Puxa! Faz todo o sentido. É justamente essa resposta contratransferencial que indica a repetição de algum aspecto tanático.

Exato. Instala-se na transferência uma situação de confusão sujeito-objeto. Porque, se ele está mesmo aberto para ser uma caixa de ressonância do psiquismo do paciente, querendo ou não, o analista vai "ser" algum personagem do mundo interno dele.

Grosseiramente falando: o analista vai se confundir com o paciente, da mesma maneira que o paciente se confundiu com sua figura parental. Ou seja, perde-se temporariamente, e de forma circunscrita, a separação analista-paciente.

Não há como evitar isso?

Isso tem de acontecer, já que o núcleo não neurótico é precisamente um setor em que a separação sujeito-objeto não se deu. Lembra que ele se constitui exatamente porque não havia um terceiro que pudesse se interpor entre os elementos tanáticos maternos e a criança?

Mas como isso aparece na relação entre o analista e o paciente?

Na situação clínica, a confusão sujeito-objeto se manifesta de duas maneiras. Ou o analista se identifica com o aspecto traumatizante do objeto - mais cedo ou mais tarde ele será levado a dar "interpretações de água fria" no paciente. Ou se identifica com a criança traumatizada, caso em que é a vez de o analista sentir a água fria no subtexto da sessão.

Isso me parece uma espécie de problema para a continuidade da análise...

Esse risco sempre existe. Será um problema se esse campo transferencial-contratransferencial negativo se cristalizar. Durante um tempo, cada um sentirá a necessidade de defender seu narcisismo da ameaça representada pelo outro (situações 1 e 2). Estará instalada uma repetição idêntica à que originou aquele núcleo não neurótico.

Imagino que será preciso sair desse impasse.

Isso mesmo. A possibilidade de sair da repetição passa pela elaboração da contratransferência.

É o que a gente escuta sempre: elaborar a contratransferência. Mais fácil dizer do que fazer.

Então escute. Primeiro: preciso reconhecer que os trancos são irritantes porque têm como efeito me fazer sentir ameaçada em meu narcisismo. Segundo: preciso perceber que estou usando as interpretações para me defender dessa ameaça. E que isso é bem parecido com o conteúdo das historinhas que aparecem no material clínico. Terceiro: lembrar que tudo isso é comigo, e ao mesmo tempo não é comigo. É o passado vivo no presente. Quarto: eu me separo psiquicamente dos objetos internos da paciente. E com isso recupero meu lugar de analista. Recupero também minha condição de escuta e de interpretação.

Pelo visto é crucial que o analista possa fazer esse trabalho de elaboração, e saia do lugar em que foi posto pela atualização transferencial dos núcleos não neuróticos.

É realmente fundamental. Por isso vou repetir. Elaborar a contratransferência é encontrar os meios para "se separar do paciente" naquele setor em que ambos estavam misturados.

Deve ser um alívio, do ponto de vista da contratransferência, quando o analista consegue se diferenciar das figuras internas do paciente.

Total! É um alívio recuperar o lugar de analista. É um alívio quando conseguimos encontrar caminhos para transformar a repetição estéril em repetição criativa. É aí que entra o manejo.

Mas como seria isso, na prática?

Vamos precisar oferecer as condições para que o paciente possa viver, pela primeira vez, a experiência de rivalizar narcisicamente com o objeto primário sem sofrer retaliações. Isso é muuuuito importante. É o que Winnicott (1945/1993) chama de "uso do objeto": usar o objeto sem precisar se preocupar com ele. Amar o objeto de forma cruel, impiedosa. Isso precisa acontecer de forma suficiente até que seja possível começar a interpretar no sentido mais clássico do termo.

Eu já sabia que, enquanto analistas, nossas subjetividades são parte fundamental do processo analítico de nossos pacientes. Mas não tinha noção de que estávamos assim tão implicados! Acho que vou aumentar a frequência das supervisões...

(risos)

Vou retomar o que aconteceu para enfatizar ainda mais o manejo da transferência ligada ao núcleo não neurótico.

Aqui a repetição é bem-vinda!

Eu dizia alguma coisa, e a paciente sempre tinha um reparo a fazer. Embora o conteúdo da fala dela até tivesse a ver, ela falava de um jeito, com um tom, que produzia em mim a sensação de estar sendo desqualificada, diminuída. Sofrimento narcísico meu. Em resposta, eu me se sentia tentada a me opor a ela. Aí era a vez de ela se sentir desqualificada e diminuída. Sofrimento narcísico da paciente.

Ou seja, o campo transferencial-contratransferencial criado com a colaboração das duas adoeceu e se cristalizou: era a atualização do núcleo não neurótico no aqui e agora. Tudo isso fica muito claro quando você expõe o exemplo clínico.

Sim. E, por mais experiente que seja o analista, é só nesse plano de "afetação mútua" (Kupermann, 2008), ligado à abolição momentânea das fronteiras entre sujeito e objeto, que se pode construir um conhecimento psicanalítico. Claro que há o risco de a abolição das fronteiras se perpetuar. Mas há o risco oposto: de o analista se defender e se recusar a passar por esse processo de "afetação mútua".

No caso, seria você não conseguir reconhecer que, quando a paciente corrige suas interpretações de forma sistemática, seu narcisismo sofre.

Viu como você não precisa aumentar a frequência das supervisões? (risos). Entendeu perfeitamente que o campo transferencial-contratransferencial adoece temporariamente porque reproduz os mesmos mecanismos que levaram à constituição do núcleo psicótico ilustrado nas situações 1 e 2. Eu precisei trocar ideias com uma amiga para elaborar a contratransferência negativa.

E o que mudou no seu jeito de entender e conduzir a análise?

Lá atrás eu tinha dito que, diante da repetição de um núcleo não neurótico, o analista "faz-alguma-coisa-falando". Você achou estranho, e com razão.

E então? O que você fez-falando?

Primeiro, entendi que, para ela, eu queria "brilhar sozinha". E que ela me via como alguém precisando que minha "grife" - as interpretações - fosse melhor que a dela. E que tudo isso era insuportável, justamente porque cutucava o nervo exposto. Finalmente, entendi qual era o sentido daquele "tranco" irritante: no fundo, o que ela precisava desesperadamente era ter vez, ou, melhor, ter voz!

Agora entendo o que significa recuperar a condição de escuta analítica! Você passou a escutar as "correções" da paciente em outra chave!

Exatamente! Isso me fez mudar de posição subjetiva no campo transferencial-contratransferencial.

Peraí. Quem tem que mudar não é o paciente?

É, mas o analista tem que mudar primeiro. Passei a escutar as "correções" da paciente como ajuda e colaboração, e não como ataque.

Ah, isso muda tudo para quem está no divã!

Muda mesmo. Durante algum tempo procurei, sessão após sessão, maneiras de incluir a ideia dela. Cada vez de um jeito, conforme o material, mas sempre com a mesma estratégia. Esse foi o manejo. Percebe que essas intervenções não eram propriamente interpretações - pelo menos não no sentido clássico do termo?

Dá para perceber a diferença. E o que aconteceu depois disso?

Depois de algum tempo o campo da rivalidade narcísica se atenuou. Quando percebeu que eu não a impedia de ter voz, relaxou. Os "trancos" diminuíram.

Deve ter sentido que, afinal, você não fazia questão de brilhar sozinha.

E que eu não precisava afirmar que minha grife é melhor do que a dela! Ao contrário de seu objeto interno, eu podia suportar que ela também brilhasse sem me sentir ameaçada em meu narcisismo!

Você se lembra que na situação 2 cada sócia atacava as ideias criativas que a outra tinha, e o ateliê estava afundando. Aqui eu passei a valorizar as "ideias criativas" da paciente, e o ateliê analítico começou a funcionar melhor.

Ufa, quanta coisa para digerir! Podemos fazer uma pausa e tomar um café?

Ótima ideia.

*

Já conversamos sobre a constituição dos núcleos não neuróticos. Seria interessante falarmos sobre a constituição dos núcleos neuróticos também.

Sim. E vamos falar também de sua repetição e manejo.

Então. Logo no começo da conversa eu propus a hipótese de que o núcleo neurótico se constitui com base em elementos-beta eróticos evacuados pela figura parental. Quero apresentar mais duas situações clínicas da mesma paciente para discutir essas ideias.

Na situação 3, a paciente conta que sua prima se encaminhava para a carreira diplomática, como o pai, com quem tinha um relacionamento muito próximo. Durante o curso conheceu um rapaz. Apaixonaram-se e pretendiam se casar. De repente ele veio com uma condição: ela deveria abrir mão da carreira. Ela desistiu de casar. Atualmente está trabalhando numa embaixada na Europa.

Na situação 4, há vários relatos de como a paciente queria mostrar para o pai que, apesar de mulher, ela tinha competência de sobra para ser o braço direito dele no trabalho. Parecia, de fato, muito mais apta do que o irmão. Finalmente o pai topou e começaram a trabalhar juntos. Só que aí ele começou a tratá-la mal, criticando tudo. De uma hora para outra a relação entre eles, que era muito boa, mudou. Ela ficou muito magoada, humilhada, e não entendeu nada.

Já escuto ecos da cena edípica em ambas as situações. Estou certo?

Está certo, sim. A situação 3 mostra que a paciente inicia a travessia edipiana, mas não consegue concluí-la. Conhece um rapaz que é como o pai, mas não é o pai. Até aí OK. Só que de repente o noivo apaixonado vira um objeto "do mal": exige que ela pare de trabalhar. Não é algo bacana do tipo "você para de trabalhar e a gente faz outras coisas juntos, como parceiros". A castração aqui é brutal, da ordem de uma mutilação: "Você vai parar de trabalhar para ficar em casa, só eu posso trabalhar".

Puxa, isso evoca a figura materna invejosa, que precisava brilhar sozinha e jogava um balde de água fria na filha! Imagino que ao ouvir isso do noivo foi exatamente assim que ela se sentiu.

Muito bem observado. Pois é por isso mesmo que ela encalha na travessia edipiana. A imago materna do mal se intromete no Édipo. Ou, dito de outra forma, a paciente vai atravessar o Édipo trazendo em sua bagagem psíquica a imago materna que já tivemos o prazer de conhecer.

OK, mas não identifico nessas passagens a repetição do núcleo neurótico.

Você tem razão. Esse material não ilustra a repetição "pura" de um núcleo neurótico. Aliás, talvez isso nem exista! Aqui vemos como se dá a superposição de núcleos não neuróticos e neuróticos na constituição da histeria. Acompanhe comigo: a saída normal do Édipo está bloqueada porque características tanáticas do objeto primário impregnam o objeto edipiano (situação 3). É um ataque invejoso ao potencial dela. O noivo, que poderia ajudar a moça a realizar projetos relacionados ao seu ideal fálico - ser diplomata -, ataca seu narcisismo como na situação 1, e boicota seus projetos como na situação 2. Estamos aqui diante do impasse por conta de características da figura materna.

Eita! E não é que você tem razão?! A problemática edípica está "impregnada" pelos núcleos não neuróticos, relacionados à imago materna/objeto primário que evacua elementos-beta tanáticos.

E a situação 4, por sua vez, traz uma figura paterna que se defende da sedução da menininha edipiana. Aceita a filha como braço direito e de repente, do nada, começa a tratá-la mal. Esse material será usado para desenvolver a hipótese de que o núcleo neurótico se constitui como resposta do psiquismo - que está em plena travessia edipiana - aos elementos-beta eróticos evacuados por essa figura.

Então, apenas retomando, para eu não me perder: vimos que os núcleos não neuróticos têm sua origem nos objetos-beta tanáticos não simbolizados pelo objeto primário, que são então evacuados e alojados pelo/no psiquismo em formação. Agora estamos vendo que os núcleos neuróticos, por sua vez, têm sua origem nos elementos-beta eróticos não simbolizados e evacuados pelas figuras parentais, e alojados pelo psiquismo que está se constituindo.

Isso. A mesma perspectiva transgeracional que usamos para entender os núcleos não neuróticos vale agora para os núcleos neuróticos.

A brutalidade inesperada e incompreensível que aparece na situação 4 pode ser compreendida como atuação de elementos recalcados e não elaborados do Édipo do pai. É o que estou chamando de elementos-beta eróticos: restos não simbolizados do amor do pai com relação a seus próprios objetos edipianos, e que determinam a repetição neurótica.

A vivência atual com a filha (sentida como) sedutora entra em ressonância com uma situação do passado: o desejo incestuoso recalcado dirigido à imago materna do pai.

Se é que estou te acompanhando, a tentativa de sedução da filha "acorda" no presente a mesma angústia que motivou o recalque de seu Édipo no passado. E é por isso que, angustiado, o pai atua o recalcado repudiando-a com violência.

Uma correçãozinha: não é o pai que faz tudo isso, mas a criança-no-pai.

Assim como não era a mãe que tinha inveja da filha, mas a criança-na-mãe.

Isso mesmo. Atravessado por seu próprio Édipo infantil, o pai não consegue sustentar as tentativas de sedução da menininha; não consegue manter claramente em seu horizonte a diferença entre gerações. Por isso ele não pode "brincar de namorar" com a filha; ao contrário, quando a proximidade se torna excessiva - é o que acontece quando começam a trabalhar juntos -, ele é obrigado a dar um "chega pra lá" nela.

Pelo visto, essa situação de sedução pela filha acaba revelando a maneira como esse pai atravessou o próprio complexo de Édipo... Isso faz sentido?

Sim, faz sentido. A brutalidade com que a figura paterna repudia os avanços da filha nos dá notícias tanto da intensidade de sua angústia de castração, quanto dos elementos recalcados e não completamente simbolizados da vida erótica da criança-nele.

É o que você chamou de "elementos-beta eróticos"?

Nossa, você é um excelente interlocutor, é realmente um prazer conversar com você!

Bom. Aí, como qualquer bom neurótico, ele se submete a seu superego rígido. Este fica "assustado" com tanto amor e exige um distanciamento afetivo absoluto entre ele e a filha - confundida com a mãe edipiana. A filha sente um "chega pra lá", que é vivido como enigmático. Ela pressente que há um sentido que lhe escapa.

Qual poderia ser esse sentido?

Se a interdição edipiana estivesse suficientemente clara para o pai, ele não confundiria "trabalhar juntos" com "casamento". Mas ele confunde. O próprio fato de o pai atuar na relação com a filha mostra que ele confunde alhos com bugalhos. Isso é enigmático.

Enfim, tudo isso configura o que Roussillon (1999) chama de traumatismo secundário.

É bem diferente do "tranco" da rivalidade narcísica, que não faz sentido algum.

Bem lembrado!

E é esse traumatismo secundário que dá origem aos núcleos neuróticos, correto?

Corretíssimo. Contanto que a gente entenda que o material relativo a "trabalhar juntos" é apenas uma representação atual da situação infantil.

Se estivéssemos diante de uma travessia edípica suficientemente integrada, o pai sinalizaria de maneira clara, mas afetuosa, que há um limite para a intimidade entre eles. A filha não seria tão atravessada pelos elementos enigmáticos ligados à sexualidade infantil do pai. Digo "tão atravessada" porque, obviamente, isso sempre acontece em alguma medida, pelo simples fato de os pais terem um inconsciente.

Entendo: nesse caso a renúncia seria dolorosa, mas não traumática.

Diante do traumatismo secundário, o psiquismo infantil tem de alojar esses elementos-beta eróticos atuados pelo pai. O eu tem dois recursos eficientes para lidar com essa situação: o recalque das representações do desejo incestuoso e a constituição de identificações histéricas.

Ah, então é assim que começa a se constituir o núcleo neurótico!

É isso! O fracasso na travessia edipiana da figura paterna vai se transformar, na geração seguinte, em uma identificação histérica. É essa identificação que determina o desejo de ser objeto do desejo do pai.

Interessante. E, quando falamos dos elementos-beta tanáticos, havia também dois recursos defensivos: a clivagem e a identificação com o agressor. Aqui, como se trata de elementos-beta eróticos, é o recalque e a identificação histérica.

Eu mesma não tinha percebido esse paralelo tão oportuno! Obrigada.

Vou aproveitar esse seu comentário para retomar uma ideia apresentada lá atrás, quando você me perguntou sobre a desidentificação.

O analista trabalha com o retorno do clivado e com o retorno do recalcado usando as historinhas que o paciente traz. Interpreta para tentar favorecer o trabalho de simbolização primária e secundária.

E trabalha com as identificações quando elas estouram no colo do analista. O nome correto é: quando há uma "atualização pulsional". O trabalho com as historinhas preparou esse momento, que agora está maduro. Aqui entra o manejo. Porque ele vai mudar de atitude e vai interpretar para favorecer o trabalho de desidentificação.

Já vimos o manejo da rivalidade narcísica do núcleo não neurótico.

Então agora vamos ver o manejo da situação edipiana do núcleo neurótico.

Vamos!

A paciente me propunha um tipo de diálogo cujo objetivo era abolir a assimetria analítica. Discorria, e queria minha opinião, sobre vários temas que, na verdade, eram bem interessantes. A demanda incestuosa tomava a forma de um diálogo estimulante - excitante - "de igua,l para igual".

Se o paciente for interessante, imagino que a tentação pode ser grande...

Eu não posso simplesmente dar um chega pra lá nas tentativas de sedução. Mas também não posso corresponder totalmente às demandas de amor. Para conseguir navegar entre o risco de seduzir e o de repudiar, preciso tomar o caminho do meio. Por sorte, há bastante espaço, posso dizer muitas coisas, mas o essencial é não perder de vista a assimetria analítica. E olha que isso já foi suficiente para a paciente se sentir rejeitada.

Coitada! Aposto que ela reclamou!

Mas é isso que queremos: que a transferência estoure no colo do analista! Ele vai ser xingado de tudo: insensível, rejeitador, sem consideração.

Foi preciso aguentar tudo isso. Concedi a ela que os temas propostos eram, de fato, interessantes. Mas tive de dizer que o que ela me pedia não cabia ali. E que não fazer o que ela tanto queria era um jeito de ter consideração por ela. Ao contrário de indiferença, era uma maneira de zelar pela análise. Mas eu podia entender que ela ficasse magoada comigo, se sentisse minha posição como evidência de um amor não correspondido. Enfim, não exatamente isso, mas algo assim.

Ah, aqui você interpretou mesmo!

Note que estamos falando da atualização de um núcleo neurótico.

Eu sei, é completamente diferente da atualização do núcleo não neurótico.

Veja, eu precisei fazer das tripas coração para evitar corresponder e, com isso, seduzir a paciente. Para mim seria fácil e gratificante fazer o que ela pedia. Mas para ela seria excessivamente excitante, o que dificultaria a renúncia ao objeto de amor edipiano.

Entendo.

Ela ficou com raiva. Depois ficou triste. Infelizmente, é o único caminho para a desilusão amorosa e para o luto que precisa ser feito.

E como a gente sabe que o processo de análise - com base no manejo cuidadoso que você descreveu - está propiciando alguma espécie de transformação na paciente?

Ela contou uma conversa com a prima em que esta descrevia cenas de sua relação com o pai. Não era apaixonada nem excitante, mas cheia de ternura. Entendo isso como uma nova representação da figura paterna, que já não se deixa intimidar por seu superego.

Tem a ver com a posição paterna que você buscou ocupar na transferência, nem sedutora, nem rejeitadora.

Sim, por isso escuto esse material também como alusão à nova posição subjetiva construída na transferência.

Algum tempo depois ela fala da reestruturação do ateliê. Ela foi efetivada. Uma das sócias saiu, e em seu lugar entrou um novo estilista. Ela se oferece para ser seu braço direito, mas ele lhe designa uma função que ela julga "aquém de sua capacidade".

De novo, a história do "braço direito"?

Pois é, repetição neurótica é isso! Aí ela se queixa com uma colega de trabalho, que gentilmente lhe diz: "calma, você ainda está no começo da carreira, não dá para queimar etapas". Fiquei surpresa quando a paciente me disse que a colega tinha razão e que ela falou num tom afetivo e construtivo. Finaliza dizendo que, mesmo não sendo "aquele" cargo, tem muitos desafios e muita coisa para fazer.

Esse material parece aludir tanto a uma figura materna que faz função materna, em vez de rivalizar narcisicamente com ela, quanto à possibilidade de tolerar a renúncia e a exclusão edipianas.

Concordo. E acho que a nova figura materna facilita a aceitação da exclusão. É como se ela dissesse: "quando você crescer, poderá ocupar o cargo que tanto deseja".

Puxa, uma conversa e tanto! Achei bem legal a proposta de usar a perspectiva transgeracional para, com base na situação transferencial-contratransferencial, conseguir imaginar quais elementos inconscientes da geração anterior poderiam estar na origem dos núcleos neuróticos e não neuróticos.

As situações clínicas 1 e 2 me ajudaram a entender como o não simbolizado tanático das figuras parentais, evacuado e alojado pela psique em formação, está na origem de núcleos não neuróticos. E as situações 3 e 4 permitiram reconhecer como o não simbolizado erótico está na origem de núcleos neuróticos. Acho que agora tenho os instrumentos teóricos para conseguir diferenciar, na minha clínica, a atualização de cada núcleo, e o manejo necessário em cada situação.

Obrigada!

Foi um prazer!

 

Referências

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Recebido em: 8/8/2018
Aceito em: 5/9/2018

 

 

1 O texto se baseia em um trabalho publicado originalmente na Revista Brasileira de Psicanálise em 2010, "Núcleos neuróticos e não neuróticos: constituição, repetição e manejo na situação analítica". Foi inteiramente reescrito, novas ideias foram incluídas e aprofundadas. Agradeço a Isabel Botter e a Luciana Botter pela participação na transformação do texto original em diálogo, bem como pela edição e pela interlocução com o "jovem colega".

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