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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

A autobiografia de Wilfred Bion: psicanálise, uma atividade autobiográfica

 

Wilfred Bion's autobiography: psychoanalysis, an autobiographical activity

 

La autobiografía de Wilfred Bion: psicoanálisis, una actividad autobiográfica

 

Autobiographie de Wilfred Bion: psychanalyse, une activité autobiographique

 

 

Anne Lise S. Scappaticci

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em Saúde Mental pela Unifesp-EPM, Psicóloga clínica pela Università degli Studi La Sapienza di Roma, psicanalista infantil pelo Tavistock Institute of Human Relations e psicoterapeuta familiar pela Scuola Romana di Psicoterapia Familiare. São Paulo. annelisescappaticci@yahoo.it

 

 


RESUMO

A autora expõe algumas reflexões sobre a autobiografia de Wilfred Bion, especialmente do livro The long weekend. Faz uma analogia com a atividade do analista, considerando a psicanálise uma experiência autobiográfica para a dupla, uma descoberta na relação entre o analista e o analisando.

Palavras-chave: autobiografia, ficção, psíquico, indivíduo, grupo


ABSTRACT

The author exposes some reflections on the Autobiography of Wilfred Bion especially of the book The long weekend. The author also makes an analogy with the analyst's activity while psychoanalysis is an autobiographical experience for the pair, a finding in the relationship between analyst and analysand.

Keywords: autobiography, fiction, psychic, individual, group


RESUMEN

La autora expone algunas reflexiones acerca de la autobiografía de Wilfred Bion especialmente del libro The long weekend. Hace una analogía con la actividad del analista mientras que el psicoanálisis es una experiencia autobiográfica para la pareja, un descubrimiento en la relación entre el analista y el analizando.

Palabras clave: autobiografía, ficción, psíquico, individuo, grupo


RÉSUMÉ

L'auteur expose quelques réflexions sur l'autobiographie de Wilfred Bion, en particulier du livre The long weekend. Il fait une analogie avec l'activité de l'analyste alors que la psychanalyse est une expérience autobiographique pour le couple, une découverte dans la relation entre analyste et analysant.

Mots-clés: autobiographie, fiction, psychique, individuel, groupe


 

 

Desde crianças somos expostos às histórias. Histórias contadas por nossos avós, de como nossos pais se conheceram, histórias de professores e amigos, mitos e lendas. Vamos aprendendo que o único modo de aproximação para contar nossas histórias acerca de nosso mundo interior é a imaginação. A mente é a função geradora de metáforas.

Ao contrário do que muitos supõem, a autobiografia de Bion não é um livro autobiográfico no sentido estrito da palavra. São perguntas que não cessam de assombrar... Qual é a relação entre a verdade factual, a memória biográfica, e a verdade imaterial, a autobiografia? Qual é a chance, em nosso trabalho como psicanalistas, de "escrevermos" uma verdadeira autobiografia?

Bion já nos adverte, na introdução do livro The long weekend (1982):

Qualquer um poderia "saber" sobre que escola, regimento, sobre quais colegas, amigos eu escrevo. Em todos os sentidos exceto os mais superficiais eles estariam errados. Eu escrevo sobre "mim". Eu o faço tão deliberadamente porque tenho consciência de que isso é o que eu faria de qualquer maneira. "Também estou mais próximo de alcançar minhas ambições se escrever sobre a pessoa que conheço melhor do que qualquer outra - eu mesmo" (Bion, 1982b, p. 8).

Portanto, a narrativa autobiográfica é como contar um sonho ou uma sessão. Está comprometida com a busca de verdade e, assim, não segue as regras do senso comum, a cronologia, a lógica, ou a razão, a resolução de conflitos ou, ainda, o pressuposto de eliminar ou evitar a tensão. A tensão é uma condição intrínseca.

Escrevi:

Já tendo escrito grande parte de sua obra e vivido sua vida, ao escrever sua autobiografia, Bion coloca a psicanálise no centro da vida, uma atividade autopoiética, de autocriação, autocriatividade, uma possibilidade, sempre presente. A psicanálise surge como preconcepção do self: ir em busca de "quem somos nós"; "habilidade humana em potencial" (Chuster). Com frequência o autor cunha palavras, utiliza termos antigos, salmos, hinos, patrimônio de todos, algo da sua/nossa infância, repertório conhecido num manejo novo e cuidadoso, de cada expressão, aparece de repente, de modo não usual e surpreendente. Arrasta, assim, o leitor para o espanto da experiência. Procura estimular o outro (o analista) a reinventar-se, na busca de dar conta de si mesmo, de sua alma, de sua pena e de seu entorno. (Scappaticci, 2014, p. 1)

A distância entre os vértices no indivíduo e no grupo parece ser o pano de fundo deste romance autobiográfico. Bion, mais velho, reinventa-se nos olhos de um menino. Um garoto extremamente sensível e atento ao funcionamento mental em si próprio na relação com seu grupo (Scappaticci, 2016, p. 4)

O vértice que dirige o analista/autor é wildlife. Viver a experiência emocional, ou o encontro psicanalítico, ou a possibilidade de encontro "con-si-go-mesmo" é retratado como algo selvagem. As metáforas vão surgindo como modelos, "episódios"; realmente acontecidos? Sabemos que não. Afinal, a autobiografia é uma transcrição de uma realidade interior, do psíquico, sobre a qual nunca se tem conhecimento direto e completo. Algo original presente desde sempre, a infância, a juventude, que o poeta recupera. Seria como a fonte, a matriz - e de fato, é para todos nós - da sua/da nossa metapsicologia.

A experiência infantil aparece como Fonte Primordial e Imagética, origem (O) constitui o material de seu sonho diurno, o que pode servir como os fundamentos de sua especulação sobre a natureza da mente: descoberta de uma epistemologia pessoal. Este é, aliás, um objetivo da psicanálise: descobrir a epistemologia pessoal, algo muito particular a cada um de nós.

Assim, a vida e a obra do analista e deste autor estão autoimbricadas, conhecedor/objeto do conhecimento: a psicanálise é uma experiência autobiográfica sempre, uma descoberta para a dupla, na relação analista-analisando.

No livro The dawn of oblivion, Bion (1979)descreve o encontro entre continente e contido atravessado por vários personagens na fronteira entre a ilusão e a realidade. Dele, como chimney sweepers, limpadores de chaminés (termo empregado por Anna como analogia à atividade do analista), derivam os pensamentos novos ou não nascidos. Estes, porém, poderão morrer, se não conseguirem despontar.

O autor nos remete à ideia de que viver o encontro, a experiência emocional na sala de análise, é algo arriscado, não livre de perigo, como veremos no terceiro capítulo da Autobiografia, "The long weekend", relatado a seguir.

O mundo interior é descrito como uma caçada,1 alguns animais domados em nosso zoológico psicanalítico, outros indigestos, que não podem ser sonhados ou que serão sonhados em nossos pesadelos... A autobiografia é como contar um sonho ou um naufrágio de um sonho, o naufrágio do sonhar, do pensamento.

Lendo inúmeras vezes a Autobiografia (1982a) de Wilfred Bion, não me canso de voltar ao terceiro capítulo do livro, em que ele descreve a expedição de caça que coincide com seu aniversário em 1903.

Bion nasceu no dia 8 de setembro de 1897: o encontro entre a caça e o caçador abrindo a possibilidade de nascimento psíquico. Parthenope escreve no posfácio do livro War memoirs1917-1919 (1997) que, até o final da vida, Bion estava interessado em algo de que teve pouco tempo para se ocupar: guerras, grandes grupos e o pressuposto básico de luta e fuga.

É possível estabelecer relações da Autobiografia (1982) com vários argumentos2 que a própria obra e a postura do autor estimulam, questões acerca do Objeto Psicanalítico: a oscilação presente nas duas Grades3 entre o objeto científico e/ou o estético, algo descrito nos artigos sobre as controvérsias a respeito das ideias do "late Bion" publicadas pelo International Journal em 2011 (Vermote, 2011); a influência dos filósofos da ciência, da física quântica e da matemática, da filosofia oriental, dos poetas ingleses, entre tantos argumentos.

O vértice que gostaria de introduzir nesta escrita é justamente o temor e o evitamento de O, o clima emocional de ameaça. É como se a própria alma fosse sentida como infernal. Como um anteparo, o clima emocional que prepondera é o pressuposto básico de luta-fuga, o temido impacto entre a caça e o caçador, a turbulência emocional diante do próprio encontro-desencontrado, já que permanece sempre um gap, um hiato.

Diante da antevisão/do contato com a própria infinitude, sentida como muito distante, dentro e fora dele mesmo, a realidade última aparece em múltiplas perspectivas. Arf Arfer, na forma da distorção linguística do início do Pai Nosso em inglês Our father which Art in Heaven, e do Tigre em seu réquiem,4 ambos acionam o terror, os pressupostos básicos de dependência, de acasalamento, de luta e fuga ou ainda uma disposição a reverenciar (awe), diante da imensidão do psíquico: evitar O, o contato com nossa condição de infinitude, a própria essência, ou estar disponível às suas emanações?

A mágica acústica do ronronar do tigre, como num pesadelo diurno, tigre-fêmea cujo macho teria sido morto por seu pai, um exímio caçador, em sua fantasia. No livro, Bion (1982) faz referência a vários caçadores. Tudo isso atinge um clímax, levando o menino a sentir o som nascendo e estremecendo a terra e a tenda, como se ele estivesse dentro da barriga do tigre.

Outro modelo seria de Pinóquio dentro da baleia, ou ainda poderíamos pensar o elemento de psicanálise preso no interior da jaula da Grade? Afinal, o som sai de dentro dele mesmo ou vem de fora dele? Esta é indagação útil, sempre: de onde sai o "barulho", o que nos perturba, nosso próprio tumulto, "tu-muito" (too much)? Sounds of silence.

Como uma espécie de precursor do encontro com o Tigre, o menino é presenteado por seu pai com um trem elétrico. Presente carregado de significados e ansiosamente aguardado, parece evocar que o encontro é sempre marcado pelo desencontro, nunca é o bastante.

Em análise, estamos à procura de nós mesmos, da aurora de nossa inteligência, e não necessariamente dos conteúdos, relatos dos fatos de nossa vida ou de nossa infância. Queremos algo mais. Nas palavras de Manuel Bandeira: "queremos descobrir o segredo de nosso itinerário em poesia" (Bandeira, 1993, p. 33).

Bion descreve: "Hora de ir à escola para tirar essa besteira da cabeça - eu não tinha uma mente nessa época, apenas uma "cabeça". Essa fase tinha mesmo um crepúsculo. Sem dúvida deveria ter sido a alvorada - o alvorecer da inteligência" (Bion, 1982, p. 19).

No artigo "Escritores criativos e devaneios" (Freud, 1908), somos tocados pela asserção de que o escritor (analisando) quer saber de que fontes internas o poeta (analista) se alimenta e se reinventa, o quanto é capaz de viver sua emoção e de provocar no leitor as fontes de sua imaginação.

Para Freud (1908/1976), a criação literária é como um devaneio (sonho diurno) substituto de antigas brincadeiras de criança... Toda criança que brinca é um poeta, um contista; a brincadeira é a narrativa de encontro.

Aqui, de novo, a concepção de os elementos dos quais a psicanálise se ocupa não serem meramente conteúdos. As lembranças e os objetos internos são como "retratos" em sua real natureza de ficção. Essa ideia parece estar presente na parte final de Atenção e interpretação (1970), no qual Bion faz uma alusão entre a mãe finita e a infinita ao mesmo tempo.

Nesse sentido, dos objetos internos, sentidos como elementos constituintes do mental, algo fugaz e inapreensível, Bion tece em sua obra uma interlocução permanente entre suas ideias e as de Melanie Klein: Bion<->Klein. Interlocução expressa no alternar entre os objetos escolhidos em sua narrativa, entre o Trem e o Tigre, o desconhecido e o incognoscível, o método ocidental e o oriental.

Apresento neste momento uma parte do Capítulo 3 do livro The long weekend, como caso clínico. Ao longo da transcrição do texto, teço alguns comentários.

Um dia, houve uma expedição de caça para a qual meu pai foi convidado por ser bem conhecido como um bom atirador. Os preparativos estavam acontecendo há algum tempo, mas minha irmã e eu não sabíamos nada sobre o grande dia, que veio e foi sem que o nosso pequeno mundo no acampamento fosse perturbado. Enquanto viajávamos pelo país com meu pai em suas visitas, os acampamentos habilmente erguidos e munidos de uma equipe de indianos pagos e contratados pelo governo eram um caso e tanto e abrigavam cerca de cinquenta engenheiros e outros que como nós eram membros das famílias dos técnicos mais bem pagos. Sendo da comitiva do "Chefe", minha mãe, minha irmã e eu éramos como uma realeza local insignificante. Não havia outras crianças, então um ou outro indiano que estivesse temporariamente desocupado geralmente era encarregado de ficar de olho em nós para que não nos perdêssemos.

A caçada foi no meu aniversário, o dia para o qual meu trem elétrico foi projetado. Ele foi desembrulhado por mim e depois de muitas tentativas desajeitadas se revelou. Era uma beleza um modelo de um dos mais recentes trens de Londres, talvez até mesmo do primeiro trem elétrico de Londres. Com uma febre de excitação que notei com satisfação não ser compartilhada por minha irmã, ele foi configurado, a bateria foi fixada e o motor disparou com um ligeiro empurrão do dedo do meu pai.

Essa sacudida inicial foi a maior velocidade que chegaria a atingir. Enquanto observava o seu triste rastejar tentei vê-lo devorando as milhas em sua corrida precipitada pelo espaço; talvez tivesse conseguido se ele não houvesse, como meu tanque muitos anos depois, parado. Simplesmente parou.

"Parou?" eu disse inquisitivamente. Meu pai estava tão chateado quanto eu. Pegou o trem e o examinou. Eu olhava para seu rosto e, enquanto olhava, podia ver por sua expressão que realmente tinha parado. Minha irmã, que estava sendo ensinada a ler pela mãe, ganhou vida. "Ponto final?"Ponto final mesmo. "Tudo bem", disse meu pai com vivacidade, "logo vamos fazê-lo andar assim que eu tiver visto a correspondência", e foi para a tenda do escritório.

Contei ao mensageiro que era um bom amigo meu, mas não engenheiro. Ele me tranquilizou e, mobilizando suas crenças religiosas, levou o trem para a barraca de suprimentos de cozinha. Lá ele o besuntou abundantemente com manteiga clarificada. "É a melhor manteiga", disse a Lebre de março. Então ele o deixou ao sol quente, dizendo-me que, depois de uma hora ou mais, ele se moveria curado.

"Ele vai andar rápido - muito rápido de verdade? E tão rápido quanto...?" Não pude pensar em nada rápido o suficiente, mas se pudesse, certamente seria.

Mais ou menos uma hora mais tarde, meu pai me encontrou sentado olhando-o. "Agora", ele disse, "deixe-me pegá-lo e logo nós conseguiremos... Mas, o que é isso?" Ele o largou de repente para limpar os dedos melados com aquela coisa gordurosa.

"Você fez isso?"

Graças a Deus, não. Arf Arfer batendo suas grandes asas negras já tinha obscurecido o sol. Eu me encolhi. Temi. Queria avisar meu amigo mensageiro que fugisse correndo por sua vida antes que Arf Arfer o pegasse.

"Não fiz nada", eu disse começando a chorar.

Minha irmã, que sempre aparecia na hora errada, já havia começado a gritar. Por um momento selvagem, tive um impulso, imediatamente sufocado, de apontar para ela e dizer que ela tinha feito isso.

Dois pirralhos gritando em suas mãos era demais. Dessa vez, meu pai se virou e fugiu. Eu tive medo de que ele chorasse e, de fato, ele deve ter ficado amargamente desapontado.

Eu não me importava. O céu estava claro; o sol brilhou; Arf Arfer tinha ido embora.

Em última análise, até mesmo o mensageiro foi salvo milagrosamente porque, embora ele não pudesse afirmar que era a melhor manteiga, ele poderia citar, como sua autoridade para o tratamento, a aia. Foi ela quem lhe falou sobre "terains" elétricas.5 A cabeça dela tremeu quando a tempestade se abateu sobre ela, mas como um junco abalado pelo vento, ela se curvou e a fúria passou por ela.

Naquela noite, Arf Arfer ficou aterrorizado "como o Rei dos Reis". A caçada tinha matado um tigre e o corpo tinha sido levado para o nosso acampamento. Sua companheira veio reivindicá-lo e, durante as duas noites seguintes, o acampamento foi rodeado por fogueiras e tochas brilhantes para mantê-la fora. Com sua grande boca e cabeça direcionadas para o chão, de modo a disfarçar sua localização, ela rugia seu réquiem. Até o meu medo eu engoli totalmente em espanto, pois de dentro de nossa tenda parecia vir uma grande tosse e então um forte rugido da garganta da tigresa em luto. Toda aquela noite e na noite seguinte também isso continuou, enquanto até mesmo nossos cães mais corajosos tremiam, rosnavam e se encolhiam. Assim que o sol se punha, dando vez à orquestra da noite tropical, nós notávamos a presença desse som a mais.

"Ela não vai nos comer, papai? Você tem certeza de que não vai?" Dormimos seguros nas tendas naquelas noites. Na terceira noite, sua vigília foi curta. Ela foi embora antes da meia-noite e não veio mais.

Perguntei a minha mãe algumas noites depois se ela achava que Jesus amava a tigresa. Ela pareceu surpresa no início, mas depois de pensar um pouco, disse que tinha certeza que sim. Fiquei feliz porque não queria que a tigresa se sentisse sozinha.

"Onde está ela agora?" "Oh, eu não sei, filho muito longe, eu espero. Por que você pergunta?" "Lembre-se também dos animais humildes", diz o Memorial da Guerra de Edimburgo. "Longe, longe; onde Os Santos em glória estão, brilhante como o dia." Como o tigre iria se virar lá? Tínhamos uma bela figura com uma coleção de animais, incluindo um leão e um cordeiro; um garotinho, ou talvez fosse uma pequena menina, vestindo uma camisola, estava em pé com o braço em volta do pescoço do leão. Eles estavam lá sem fazer nada em particular, como as pessoas em Saltimbanques de Picasso. Não faziam nada em particular. Ninguém jamais acreditou que eu não estivesse fazendo nada. (Bion, 1982a, p. 18)

 

 

Neste trecho do capítulo, Bion (1982a) faz uma referência à obra Os Saltimbancos (1904), de Pablo Picasso. Esta constitui uma imagem evocativa poderosa. Aparece na quinta elegia de Rilke e é citada por outros artistas e poetas. Refaz-nos a nossa natureza nômade e solitária contemporaneamente, mesmo em nossa própria família; olhamos para dentro de nós mesmos quando, ao mesmo tempo, olhamos para fora, para nossas interações. O palhaço ou o bufão fazendo as vezes de Coro ou de elemento de ligação entre os personagens e o público, a bailarina, o equilibrista, enfim, uma configuração que nos remete à condição humana de solidão e dependência.

O menino continua a fazer suas perguntas:

"O que ele está fazendo agora?"

"Quem?" perguntou a minha mãe, tendo perdido o controle da conversa. "Jesus quero dizer, o tigre", fiquei de repente envergonhado, pensando que devia ter perguntado sobre o cordeiro. Se o tigre, como parecia razoável, estava no céu, deveria estar se divertindo em perseguir animais como o nosso cão Bootles fazia; só que Bootles era tão lento que não conseguia ir atrás de nada. Uma vez ele até deixou um rato se esconder debaixo do pelo de uma das patas enquanto ele estava parado, sorrindo, por estarem todos rindo tanto.

"Venha, filho", disse minha mãe dando-me um beijo, "Não posso ficar aqui o dia todo conversando estou ocupada". (Bion, 1982a, p. 18)

Neste momento, a transcrição do capítulo toma uma nova direção. O Eu poético muda de um Eu subjetivo imerso na vivência da própria autobiografía e passa ao narrador destacado e crítico, estabelecendo uma "pré-visão", algo futurista, como num filme estilo Blade Runner ou num livro de Aldous Huxley, uma linguagem ficcional...

O autor finaliza:

Através da aba da tenda, o sol bate no chão drenando a cor da grama e tornando tudo além do círculo de luz de um preto intenso. Luz intensa; preto intenso; nada no meio; sem crepúsculo. Sol árduo e silêncio; noite negra e ruído violento. Rãs coaxando, pássaros martelando caixas de lata, sinos soando, guinchando, gritando, rugindo, tossindo, berrando, zombando. Naquela noite, aquele é o mundo real e o barulho real. Quando os macacos superinteligentes com suas ferramentas superinteligentes tiverem se transformado em um estado ajustado e apropriado para proporcionar alimentação delicada aos futuros senhores e senhoras da criação, os supermicróbios sapiens, então os humanos que obstruem na terra alcançarão sua glória, as belíssimas cores da carne putrescente a apodrecer e feder e criar a nova aristocracia. (Bion, 1982a, p. 18)

 

Guerra e guerra interna

Bion serviu no Exército como capitão de tanques na França de junho de 1917 a janeiro de 1919. Narrou suas experiências de guerra e retomou-as em vários textos em momentos diferentes de sua vida.

A primeira escrita, após ter perdido seu diário, foi ao deixar o Exército em 1919, em Oxford. Retoma em Comentary, diálogo entre Myself e Bion, escrito em 1972, quando relê o diário datilografado por Francesca e, finalmente, Amiens escrito na sequência da viagem de trem pela França com sua esposa, em agosto de 1958. O texto restou interrompido no meio de uma frase em 1960.

Posteriormente, redige os dois volumes da Autobiografia e Memoria del futuro. Durante toda a sua vida essas experiências de guerra ficaram em busca de narrativa. Sua metapsicologia precisou dar conta da perene tensão presente na guerra e na vida. Algo tão intenso que "as formulações verbais ficariam inadequadas para fazer justiça" (Bion, 1991/2007, p. 648).

Seu texto, assim como toda a escrita, é autobiográfico, visto que "Nós, os perecíveis" (Neruda, 1975), ou ainda nós, os sobreviventes, temos a necessidade de encontrar uma forma de narrativa para dar conta de nossas experiências perturbadoras. Desta guerra não há baixa.

Outro aspecto relevante é o estilo do relato que caracteriza a primeira transcrição do diário de guerra e dos primeiros trabalhos de Bion sobre o assunto, como no artigo "The neuroses in war" (1940). Trata-se mais de descrições pormenorizadas da realidade externa do que da experiência emocional. Inicialmente, foi necessário "historizar", colocando os fatos numa sequência coerente e detalhada, e, assim, criar um "exoesqueleto",6 como numa concha de retalhos. O leitor "vê" a batalha pelo seu olhar:

"Todas as trincheiras inimigas estavam delineadas como baixas rebentações estilhaçadas. Era muito bonito - e muito mortífero" (Bion, 1997, p. 47).

A mente saturada pelo terror agarrando-se no esforço de reconstruir os lapsos de memória, as sensações físicas e as impressões psíquicas em busca de dar conta da dor mental. Historiar as experiências traumáticas de guerra na terra de ninguém é necessidade de sobrevivência de uma mente tomada pela angústia. O armistício. Mudança Catastrófica:

homens na sua insignificância ao terem sido jogados numa trincheira para servirem ao Exército e serem mortos e na sua irrelevância de terem sido jogados de volta à sociedade que os ignorou e os esqueceu o mais rápido possível. (Bion, 1982a, p. 187)

Tarantelli (2011) correlaciona o período inicial do pensamento de Bion a respeito da parte psicótica da personalidade com o corpo de sua obra e seu desfecho. No final de sua vida, o sentimento paradoxal de estar morto estando vivo ou, ainda, "como os mesmos ossos mortos podem dar vida/fazer nascer uma mente?!" (Bion, 1982a, p. 60).

Em sua metateoria, Bion estaria comprometido com a experiência emocional e a percepção da sensação contemporânea de destruição e continuação do Ser psíquico/somático. A questão psicótica perde seu estatuto psicopatológico e passa a ser contingência da angústia catastrófica diante de estados não integrados de si, pano de fundo da personalidade, vicissitude humana do desamparo, desde o início da vida (Scappaticci, 2016).

Ataque-fuga, estar vivo é uma guerra... Bion apropria-se bem do modelo da física quântica aproximando-o do mundo mental, algo fragmentado. Seríamos como uma infinidade de partículas, grãos indo para todos os lados, movendo-se de maneira incerta... É preciso vivenciar a base catastrófica de nossa existência humana, a experiência de desamparo diante do que intuímos, mas que inevitavelmente evitamos: o temor de que a mente não dê conta de si.

A angústia é pela catástrofe diante da oscilação incessante entre fragmentação e reunião, PS e D, aproximação do ritmo mais elementar de si. Turbulência. Incerteza. "É a parte que te cabe neste latifúndio". Dar sentido às coisas é uma necessidade psicológica que urge em mim.

Bion escreve:

O mundo estava todo lá, antes de mim. Os portões de ferro do meu paraíso ressoaram atrás de mim enquanto eu caminhava, sozinho, solitário, anônimo em minha glória, para enfrentar o amanhecer da liberdade que eu tinha aguardado por tanto tempo. Não tinha milhões de outras pessoas? Não; só eu sabia o que era ser eu mesmo. (Bion, 1982a, p. 104)

Diante desse cenário de guerra e de poderosa turbulência interna, ao iniciar cada capítulo, Bion faz um prelúdio, uma "entrada no clima", como as tomadas de um filme. Nesse trecho, lembro-me da abertura dos portões para o pátio da minha própria escola no meu primeiro recreio, portões e pátio interno que, na época, pareciam-me enormes e que com o passar do tempo foram perdendo suas poderosas e impressionantes dimensões. O impacto dessa recordação remete a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, em que a menina, ao ser indagada pela lagarta "Quem és tu?", responde não saber mais, já que tantas vezes diminuiu e aumentou de tamanho. Aqui nos reportamos também ao trecho de Experiência em grupos (1961), primeiro livro de Bion, no qual ele cita o temor de uma criança no período de latência, diante do recreio da escola. Perguntas temerosas que calam a mente de madrugada na solidão do leito e do mundo, e que com o alvorecer se redimensionam.

Bion descreve o seu campo de guerra...

Para fazê-lo, lembra-se da passagem de Shakespeare em Henrique V. Reconhecendo a dificuldade de transmitir a Guerra dos Cem Anos, algo épico e multidimensional, num pequeno palco, o Coro evoca a Musa... E pede aos expectadores que utilizem sua imaginação (conjecturas imaginativas) para suprir as deficiências de ordem material na transmissão do imaterial. Peço ao público-leitor que faça o mesmo, Imaginem!

Surge o campo de guerra como uma mudança catastrófica na paisagem desalentada de suas figuras oníricas movendo-se automaticamente, como o Coelho de Lewis Carroll:

Ninguém à vista, salvo a solitária figura apressada... Um homem corria por uma trilha mais acima à direita, de onde as armas atiravam; enquanto eu vigiava, ele desapareceu. Então notei que todos andávamos apressadamente com passos curtos e rápidos. Mais tarde percebi que qualquer figura, toda figura, andava da mesma forma. Até nossos rostos padronizavam, tensos, cobertos de suor grudento. (Bion, 1982a, p. 126)

Na paisagem-devaneio, o indivíduo está imerso no grupo como um borrão na tela. O recurso grupal é necessidade quando a experiência é tão penosa que não há continente individual que a suporte; assim, por muito tempo permanecemos incorporados no grupo, no Édipo.

É necessário utilizar a contraparte mental das características do animal da horda, como bem ilustrado por Freud, Wilfred Trotter, ou pelo próprio Darwin; ou, ainda, ouvir o grupo como recurso próprio e íntimo para o Despertar.

Permanecer na cesura, na "transigência" do pré-humano ao humano e vice-versa, à procura de um continente que dê conta de um nascimento psíquico, da manutenção de esperança ou da "luminosidade do objeto" termo utilizado por Abraham ao escrever sobre "Luto e melancolia".

Assim, o Trem presenteado por seu pai em seu terceiro aniversário; Prince, o cavalo da família dos Rhodes, La Leon Bollet,7 o carro da família dos Hamiltons e o poderoso Tanque são formas para conter tantas palavras possíveis e impossíveis na cesura, tensão entre o inanimado e o animado, entre o indivíduo e o grupo; humanização.

Aos dezoito anos, Bion descreve sua curiosidade e seu terror onde o Tanque que tanto o fascinava parecia transformar-se em um personagem. O poderoso tanque em si.

Bovington Camp, em Wool, onde vi meu primeiro Tanque. "Ele" bloqueava a estrada para o acampamento. O dia estava quente, ensolarado, parado. A estranha forma mecânica, imobilizada e imobilizante;

Queria fugir dali.

Uma martelada metálica veio de dentro dele;

Um soldado saiu

E o dia voltou à vida novamente. (Bion, 1982a, p. 115)

Estranhamento diante da imagem de um ufo é a descrição do impacto estético...

Uma anotação interessante é que o primeiro o tanque, o protótipo da Primeira Guerra Mundial, foi emocionalmente ou ironicamente conhecido como "Mãe" durante seu desenvolvimento em 1915-1916.

O termo "tanque" nasceu de uma abreviatura competindo com "recipiente", "receptáculo", "reservatório" ou "cisterna" - designado para ocultar a existência de uma arma secreta. Os tanques primitivos, dinossauros, foram fontes potentes de fantasia antropomórfica.

Em outra cena autobiográfica, o capitão Bion escalou para fora de um de seus tanques durante a batalha e, segundos depois...

uma folha de chamas atirou-se contra ele, e lá estava o tanque com seus lados abaulados escancarados em flor enquanto seu telhado se fora... Corpos atirados do tanque que explodiu eram "como os intestinos de um animal fantástico pendurados para fora de uma enorme ferida aberta", "As entranhas penduradas de um animal Jurássico". (1997, p. 254)

Segurança imaginária? Imaginária violência? E ainda assim, homens morreram. Isto ilustra o fato de que "nenhuma proteção existe mais sólida do que a ficção da imaginação". (Bion, 1982a, p. 131)

Até o final de sua vida, Bion permaneceu às voltas com sua experiência de guerra. Esta continuava assombrando, necessitando encontrar uma forma de relato, aguardando narrativa.

O Tanque surgira no início de sua autoanálise/autobiografia ao descrever o momento da separação de sua mãe na Inglaterra, em Delhi, aos oito anos de idade:

Não tinha nenhuma casa (lar) que pudesse sentir saudades - somente pessoas e coisas. Então, quando me encontrei sozinho na quadra da escola preparatória na Inglaterra, onde com olhos enxutos tinha dado um beijo de adeus a minha mãe, pude ver, acima da cerca que me separava dela e da estrada que consistia a fronteira para vastidão do mundo verdadeiro, o seu chapeuzinho que se movia aos trancos para cima e para baixo como um bolo curiosamente ("millinary cake") forjado realizado sobre a onda da cerca verde. E então ele (grifo meu) se foi. (Bion, 1982a, p. 33)

Instinto epistemofílico. A pergunta que não cala. A autobiografia é uma descrição de um menino cheio de perguntas que, a um certo ponto, desiste de perguntar. Como todos nós que buscamos a psicanálise, Bion tornou-se psicanalista para continuar fazendo as perguntas. Afinal, todos temos direito a uma segunda chance!

 

Referências

Bandeira, M. (1993). Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar.         [ Links ]

Bion, W. R. (1940). The war of nerves. In E. Miller, & H. Crichton-Miller (Eds.), The Neuroses in War. London: Macmillan.         [ Links ]

Bion, W. R. (1961). Experiência em grupos. London: Karnack.         [ Links ]

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Recebido em: 4/9/2018
Aceito em: 5/11/2018

 

 

1 Williams (1985) relaciona esse encontro com an otter hunt, uma caçada às lontras: a ambivalência da latência em direção a fatos recém-nascidos ou a ideia de gravidez. Claramente existe uma alusão aos meninos limpadores de chaminés, uma caçada contra a morte.
2 Neste trecho a autora se refere à própria experiência de dar aulas sobre a Autobiografia (1982) de Bion no Instituto de Psicanálise em São Paulo.
3 Nas duas versões da Grade (1963, 1971) notamos o esforço e ousadia de Bion visando criar um modelo epistemológico de precisão científica para a psicanálise. A segunda versão da Grade acaba por expandir a fileira C (mitos, sonhos e paixão) como uma espécie de ponto alto na comunicação, linguagem de alcance. Assim, enquanto na primeira a classificação do objeto psicanalítico se realizaria norteada pelo conhecimento, pela representatividade, na segunda é pela prioridade do estético, da expressividade ou ainda por meio da "mensuração da distância de O" (Vermote, 2011).
4 O episódio do réquiem do tigre poderá ser lido a seguir na transcrição do terceiro capítulo da autobiografia.
5 A aia faz confusão e uma corruptela entre as palavras trains e "terains".
6 "Exoesqueleto" é um termo utilizado por Bion em suas autobiografias.
7 Os Rhodes e os Hamiltons são as famílias que acolhiam Bion nas férias no período da escola interna na Inglaterra.

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