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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

TEMAS LIVRES

 

Território próprio: um chão que se desloca

 

Territoriality: a shifting ground

 

Territoralidad: un terreno en movimento

 

Territorialité: un terrain mouvant

 

 

Francesca Ricci

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. franricc@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho tece uma reflexão baseada em lembranças de experiências emocionais com um paciente. A autora aborda a problemática do entrar em contato com a realidade psíquica: o deslocar da observação do mundo externo para um mundo interno, neste caso, povoado de emoções assustadoras. Partindo da afirmação de Bion, pela qual a observação da realidade psíquica resulta na modificação da mesma realidade, é feita a hipótese de que a possibilidade de desenvolvimento da mente estaria associada à percepção desta como um espaço interno passível de observação e conhecimento. Fatores que podem influenciar o processo são considerados: frustração, intuição, conhecimento, trabalho psíquico, todos implicados no processo do pensar.

Palavras-chave: Bion, realidade psíquica, espaço mental, emoção do conhecimento


ABSTRACT

This work weaves a reflection based on memories of emotional experiences with a patient. The author addresses the problem of getting in touch with psychic reality: the shifting of observation from the outside world to an internal world, in this case likely to be populated with frightening emotions. Starting from the assertion of Bion, whereby the observation of the psychic reality results in the modification of it, it is made the hypothesis that the possibility of the development of a mind would be associated with the perception of the same as an internal space capable of observation and knowledge. Factors that can influence the process are considered: frustration, intuition, knowledge, psychic work all implicated in the process of thinking.

Keywords: Bion, psychic reality, mental space, knowledge as emotion


RESUMEN

Este trabajo teje una reflexión basada en memorias de experiencias emocionales con un paciente. El autor aborda el problema de entrar en contacto con la realidad psíquica: el desplazamiento de la observación desde el mundo exterior hacia un mundo interno, en este caso probable que esté poblada de emociones aterradoras. A partir de la afirmación de Bion, mediante la cual la observación de la realidad psíquica resulta en la modificación de la misma, se hace la hipótesis de que la posibilidad del desarrollo de una mente se asociaría a la percepción de la misma como un espacio interno capaz de observación y conocimiento. Se consideran factores que pueden influir en el proceso: frustración, intuición, conocimiento, trabajo psíquico, todo implicado en el proceso de pensar.

Palabras clave: Bion, realidad psíquica, espacio mental, el conocimiento como emoción


RÉSUMÉ

Ce travail tisse une réflexion basée sur des souvenirs d'expériences émotionnelles avec un patient. L'auteur aborde le problème de la mise en contact avec la réalité psychique: le déplacement de l'observation du monde extérieur vers un monde intérieur, dans ce cas susceptible d'être peuplé d'émotions effrayantes. À partir de l›affirmation de Bion, auquel cas l›observation de la réalité psychique aboutit à la modification, il est fait l›hypothèse que la possibilité du développement d›un esprit serait associée à la perception du même comme un espace interne capable d›observation et connaissances. Les facteurs qui peuvent influencer le processus sont considérés: la frustration, l'intuition, la connaissance, le travail psychique tous impliqués dans le processus de la pensée.

Mots-clés: Bion, réalité psychique, espace mental, la connaissance comme émotion


 

 

Oslo esteve comigo por vários anos. Assim, decido alinhavar as lembranças dessa experiência clínica para dar um sentido ao trabalho realizado. Após tantos anos, com tantas anotações, percebo-me possuidora de muita riqueza e diversidade, e esse excesso não me acalma. Uso de toda a minha paciência para deixar certos recortes decantarem e colher uma paisagem.

Sei que funciono assim: às vezes em mim me perco e depois devo me reencontrar. Pressiono-me com cobranças, mas também posso usar essa exigência no processo de espera para aceitar os tempos necessários. Mergulho em minhas lembranças. Ancorada no presente, vejo-me usando meus momentos de névoa para criar adensamentos, pontos de aglutinação. Tudo é sempre movimento, mas posso parar de girar meu caleidoscópio e selecionar vértices de observação.

Nesse momento de perplexidade, a trama da minha interioridade me ajuda a sair do sufoco do não saber, do não ter ainda visualizado um caminho para, em mim, iniciar um movimento benéfico de escolha. Aos poucos, percebo que em minha exigência aparece a possibilidade de uma abertura. A névoa se rarefaz, surgem possibilidades. Com isso o entusiasmo revigora. Saio do claustro e olho a paisagem acima do muro. É uma experiência revigorante essa de poder me acalmar...

Assim me inicio nesta viagem... E como o pensamento de Bion norteia minha clínica, percebo-me buscando nele as referências. Decido espiar as Conferências Brasileiras (1974). Mas com método domingueiro: leitura casual, arejada, percorrendo trechos "ao vento". Nesse ler casual, minha atenção é tomada pelo uso que Bion (1974) faz da nebulosa M31, na constelação de Andrômeda, quando a toma como modelo para abordar a habilidade de observar fatos e o problema da interpretação destes.

Diz-nos Bion (1974) que essa nebulosa, M31, geralmente observada a olho nu como uma nódoa indistinta, permite ao indivíduo curioso que a examina com a ajuda de um potente telescópio descobrir que ela já não é mais uma névoa, mas uma nebulosa em espiral.

Para Bion, essa observação nova "não terá efeito apenas sobre o que o indivíduo viu, mas ele nunca mais poderá ser o mesmo de novo... o universo em que ele vive é o mesmo de sempre, mas ele terá mudado" (Bion, 1974, p. 80).

Bion mantém essa premissa até o fim (1975/1989), quando lembra que "Heisenberg detectou, no domínio da investigação física, que a 'coisa em si' se altera ao ser observada. [E acrescenta:] sugiro que essa mudança não pode ser vista como algo que não tenha um análogo no domínio mental" (Bion, 1989, p. 229).

Com isso, Bion nos diz que a verdade nos modifica. Como corolário, na análise, a observação da realidade psíquica permite a mudança dessa mesma realidade.

Neste momento de minhas conjecturas, percebo que acabo de encontrar meu vértice de trabalho. Desejo pensar o espaço mental, a realidade psíquica e suas vicissitudes. Observar, na interação com meu paciente, o quanto a minha fala pode permitir que sua mente, habituada ao fazer, expanda o foco de sua atenção em direção à percepção de seu psiquismo: o respirar de sua mente em seus momentos de encolhimento e de expansão. Permitir que ele possa tomar consciência de sua existência, bem como do funcionamento e das crenças que a regem.

 

Oslo

Vem e afirma ter muitos interesses na vida, mas sente que seus interesses não se sustentam. Entretanto, na empresa onde trabalha, é bem-sucedido: para expandir seu conhecimento, frequenta palestras, faz cursos, planeja e executa bem seus trabalhos, tem muitos contatos e várias responsabilidades. Mas relata que seus projetos não mais o satisfazem e que o esforço para implantar qualquer novidade parece demasiado. Sente-se criativo, mas suas ideias, como flores, desabrocham e logo murcham. Noto que conversa comigo calmamente.

Interessada, acompanho essa conversa e logo imagino uma potente locomotiva que, travada, só dispõe da marcha lenta. Curiosa, intuo nesse calmo e pausado relato uma certa dissonância. No quadro aparentemente tranquilo de uma vida ordenada, um elemento desorganizador? Logo algo me surpreende...

Do desânimo ordenado surge um lampejo verdadeiro... Aparece a dor quando ele confessa:

No fundo essa não é minha maior problemática. O que mais me aflige é o fato de que, atualmente, vivo uma catástrofe: minha esposa, a mulher que eu tanto amo, com a qual acreditava estar casado para sempre, com quem eu sonhei construir família e ter filhos, quer agora separar-se de mim. Este seu desejo me pega completamente desprevenido e agora eu sinto meu mundo à beira de um precipício.

Ao me relatar pormenores dessa catástrofe, eu recupero lembranças pessoais de perdas dolorosas... imagino seu sofrimento. Imagino um desfazer, restos, destroços flutuantes.

Mas continua a dissonância... Minha imaginação vê destroços, mas diante de mim continua falando um jovem de voz pausada, aparentemente calmo e sereno.

Nada em sua postura deixa transparecer ou acompanha sua afirmação de estar à beira do abismo. Retorno a ele minha atenção. Ele me relata sua surpresa ao descobrir que ela o sente afastado, que ele já não seria o mesmo homem interessado com quem ela havia se casado.

Assim, ele agora se vê sempre a espiá-la, procurando antecipar seu humor e a possível avaliação que ela faz dele. Fica paralisado diante da mera suspeita de uma avaliação negativa... Oslo e a normatização... sempre em voz calma e tranquila, ele me testa, pede três entrevistas. Finalmente, após essa seleção cuidadosa, ele me aceita.

Durante a análise, Oslo fala de si com distanciamento; não o sinto emocionado, e eu também me percebo morna. Relata perdas importantes: a separação dos pais, a partida da mãe para o exterior... Mas a fúria, a loucura, a manifestação de rebeldia são relatadas no irmão, que ele diz viver fora da civilização, embrenhado com peões e índios.

Esse irmão "caboclo" se permite atrasar, desistir, aparecer quando lhe apetece. Nele Oslo encarna a subversão, o diabo, mas um diabo que respeita suas próprias loucuras, pois esse irmão não se critica nem se arrepende. Já Oslo encarna o personagem correto, apavorado pela incerteza. Intuo que ele deseja se comunicar com esse caboclo, quer entrar nessa mata, mas tem medo de se perder na vida "clandestina" de sua mente. As conversas ao longo da análise têm um quê de repetitivo...

Há um período em que o fulcro de sua atenção não é a sua própria vida, mas a vida da esposa. Seu sentido de viver está nela depositado: olhou, não olhou, estava bem, estava mal, foi afetuosa, não foi. Repete, à exaustão, o drama de estar perdendo a mulher de sua vida. A decisão entre o casar e o separar está depositada nas mãos dela, e ele, qual marionete, se alegra ou se entristece, de acordo com o andar dos ventos dela.

Uma análise em andamento há anos, com frequência estável, sem momentos de grande dificuldade, com uma conversa que, pelo menos aparentemente, flui, mas que me parece não o estar ajudando a se desenvolver.

Sem crises, a relação analítica se assemelha a um lago de águas plácidas, contido, sem turbulência. Ao contrário, a dificuldade está em criar movimento. Oslo, aparentemente, controla tudo. Seu eu é tão musculoso que nada deixa transparecer. Às vezes, tomada de desânimo, parece-me que nossas conversas não evoluem.

Como um carrossel, a vida dele gira e gira, mas não sai do lugar. As mudanças se dão apenas no fazer... o psíquico permanece, como ostra, afixado à ideia de estar perdendo a mulher de sua vida, o que vem aliado a uma propensão para indagações lógicas e minuciosas, a uma espontaneidade abafada.

Na conversa repetitiva, ele se põe no papel de pedinte, culpado e responsável pelas dificuldades emocionais da mulher, ocupado em resgatá-la desse desconforto; enfim, ele continua não existindo. Mas ele a quer sempre!!!

Como em Pirandello (1919/1958), cada um faz o jogo das partes. Nela, ele põe a dúvida, a desconfiança, o ressentimento, a falta de esperança. Ele, por sua vez, encena a certeza, a confiança, o vendedor do produto "casamento feliz".

 

Clínica, pequenas vinhetas e considerações...

Uma brecha após um momento de aparente retorno apaixonado.

P - Voltei à minha velha sensação. Perdi aquela coisa mais forte de me sentir vivo. Hoje nem sei direito o que fiz. Tenho quase saudade de tempos atrás, quando eu estava tomado com a ideia da separação. Pelo menos estava em contato com os meus sentimentos. Estava mais acordado. Tenho até saudade da minha tristeza. Estou tranquilo, mas parece uma pasmaceira. Será que estou perdendo a possibilidade de sentir? Hoje, conversando com um cliente, me vi viajando na maionese e logo me disse para! Presta atenção!

A -Você quer vibrar... quer sentir-se sempre entusiasmado. Mas olha o que você faz aqui... Você se recrimina, querendo ser outro...

P - É... Quando eu estava pensando em me separar, lembro que teve uma hora em que eu desisti de lutar pelo casamento. Percebi que já havia feito tudo para salvá-lo e que já não dependia mais de mim. Naquele momento, quando eu aceitei, quando não consegui mais pensar, quando parei de me debater, quando tanto fazia ir para um lado ou ir para o outro, eu me senti vivo.

Bion afirma: "A memória pode ser possuída por um desejo que não é mais sentido como posse, mas torna-se, ele mesmo, o possuidor da personalidade que o abriga" (1970/2007, p. 58).

Como a atenção de Oslo está projetada no casamento, ele não pode internalizá-la e, assim, fica alheio ao seu mundo mental. Mas percebe uma falta de afetos que ele chama de "pasmaceira".

Intuo que ele deseja viver algo vibrante que empalideça qualquer outra sua vivência. Pergunto-me o que há abaixo desta pasmaceira. O que posso observar, por enquanto, é uma redução e uma restrição do sentir que parece infectar todo o seu funcionamento psíquico.

As hipóteses teóricas podem ser inúmeras, mas qualquer hipótese me fala de um espaço psíquico precário, cercado de defesas. Assim ele restringe a possibilidade de perceber a própria existência como fulcro de si. No momento descrito, entretanto, parece ter havido alguma percepção de seu mundo interno.

 

Um sonho

Ao atravessar uma rua as luzes do carro apagam, apagam também as luzes de todos os outros carros. Aparece o caos. Tento fazer o motor pegar, mas está pifado. Não consigo. Quando finalmente desisto, o motor pega. Estou no bairro da Bela Vista e atropelo uma família que caminha unida. Com o carro, passo embaixo de árvores de onde caem frutos gigantescos, duros e perigosos. Eu tento desviar do bombardeio, mas acabo pegando um fruto no ar e descubro que, ao contrário do que pensava, não é pesado, é leve.

Quem sabe estamos abrindo uma fresta nessa blindagem que poderá permitir um avanço na intimidade de seu mundo interno? O contato com seus sentimentos poderá passar de assustador e insuportável para mais possível e menos perigoso?

Cruzar a rua, sair do mundo iluminado do fazer, passando para o mundo escuro e desconhecido da percepção da mente, faz o motor morrer: as velhas luzes conhecidas, os velhos pontos de orientação se apagam e aparece o medo.

Penso que Oslo fala da dificuldade de lidar com o novo, da dificuldade de sair do hábito de lidar apenas com problemas práticos para lidar também com a realidade psíquica. Essa passagem é sentida como a passagem da luz para as trevas.

Nada parece mais funcionar. Mas o sonho traz a possibilidade de desenvolvimento ao desistir da idealização (Bela Vista: a família unida... um estado de mente pacífico e integrado).

Somente quando Oslo ousa estender a mão, trabalhar psiquicamente, lidar com o bombardeio interno é que ele pode se dar conta de que os frutos, assim como as emoções tão temidas e perigosas, são, na verdade, menos perigosos do que parecem.

Penso em Oslo, como que preso entre duas possibilidades extremas e opostas: ou dirige sua atenção ao seu mundo mental e, nesse caso, pode deprimir-se ao perceber suas contradições, sua destrutividade, ou continua fugindo e permanece nas defesas maníacas.

O problema é que todos esses movimentos psíquicos são imbricados. Ele cobra de si uma mudança, o que vem a favor dessa possibilidade, mas, ao mesmo tempo, a sua cobrança em relação a si o impede de viver em liberdade com seu mundo interno, assim como ele é.

O ser humano pode descobrir que tem uma mente: a psicanálise lhe dá essa possibilidade. Ele pode, como ser autônomo, fincar sua observação no chão de sua realidade psíquica, na interação de sua mente com o decorrer das vicissitudes da própria vida.

Pode conhecer as emoções e ao mesmo tempo não se identificar com elas. Mas pode também manter o hábito, milenar, de dar maior ênfase ao mundo externo, do qual ele, ancestralmente, extraiu a observação dos perigos, e, assim, usar de toda a sua libido para modificar esse externo, tentando alçá-lo à condição de paraíso, com a fantasia de aí, finalmente, descansar.

Nessa tarefa, pode jamais se dar conta de que possui uma mente que pode ser usada para seu desenvolvimento. Nessa condição, a ideia da felicidade é projetada no sucesso, e a vida mental fica representada por um mero ponto. Não há espaço para "ser".

 

A fúria emparedada

P - Tive uma conversa interessante com minha esposa sobre nossa intimidade... sobre assuntos que a gente conversa aqui também... Ela disse: "A verdade é que você me procura, eu te rejeito, digo que não tenho vontade e você nem reage! Não faz nada, continua sua vida como se nada fosse. Eu, em seu lugar, ficaria muito puta. Mas você não, você não fica nem puto, nem alegre, você fica sempre em cima do muro, sempre tranquilo, sempre no meio".

Ele acrescenta:

P - É, dessa vez ela foi fundo, não deixou para menos... Ainda me perguntou se por acaso eu não seria gay... eu dei um sorriso e disse: "Gay, eu?". Aí ela ficou ainda mais furiosa... e disse: "É, você dá uma risadinha como se nada fosse..." Eu agora percebo que eu nem considerei a hipótese dela, pois eu simplesmente sei que não sou gay.

A - E o que você acha disso, dessa sua não reação?

P - Bom... Acho que é verdade que fico em cima do muro.

A - E então, de novo, o que se dá aí dentro de você? Numa situação, quando você é chamado de gay, você só dá uma risadinha. Cadê o resto?

P - A verdade é que, se eu respondo atravessado, se mostro que estou com raiva, eu depois fico tomado pela preocupação de ter sido grosso.

A - E que mal há em ser grosso?

P - Eu não quero! Não sei, posso ficar tomado, posso chamar de estúpida, xingar, na hora ficar enfurecido...

A - E aí o que acontece?

P - Eu não quero!

Oslo pode perdoar e lidar com sua humanidade? Isso implica aceitar sua ambivalência, seus sentimentos contrastantes, sem negá-los. Implica passar de um sistema de julgamento para a possibilidade de abranger também o perdão. Implica poder usar os próprios sentimentos como bússola, como indicadores que tingem a realidade psíquica sem sê-la.

Mas, por enquanto, Oslo sente-se aterrorizado com a linguagem do seu corpo, que se manifesta com sensações explosivas, e seu terror tem a ver com a crença religiosa de que deveríamos ter apenas bons sentimentos pelo objeto eleito. Nessa sessão, ele vai percebendo sua dificuldade de se comunicar consigo mesmo, dentro da verdade.

Como ele se idealiza, desejaria apenas comunicar seu amor, mas, como esse sentimento é intercalado também por intenso ódio, Oslo se manipula para manter a idealização. Colabora com essa situação psíquica o fato de ele também ter o imperativo interno de não poder separar-se.

Tal crença não lhe permite entrar em contato com a sua ambivalência e, assim, a linguagem de seu corpo não pode evoluir para a linguagem simbólica. Como ele só pode nomear os aspectos positivos do objeto, a consciência de seu sentir fica limitada ao que ele moralmente aceita. Neste momento, ele não é benevolente com sua fúria e, assim, também não pode evoluir para a percepção de sua realidade psíquica.

 

Pensando... minhas fontes...

Para Freud (1920/2004a), a instauração de um símbolo faz-se na ausência do objeto. A criança aprende a simbolizar a presença e a ausência da mãe e, quem sabe, a alternância de prazer e desprazer relativos a essas experiências emocionais. Abre-se aqui o caminho para a percepção do psiquismo. Como manter na mente a possibilidade de elaborar a ausência do objeto e a falta de prazer? Como a mente é capaz de pensar sobre essas experiências emocionais?

Para essa possibilidade se dar, penso ser necessário manter como foco o vértice da realidade psíquica, vértice que, entretanto, para ser discriminado e conquistado, requer muita tolerância à frustração.

Bion (1962/1991) correlaciona a possibilidade da transformação da experiência, que em si é desagradável (a ausência do objeto de satisfação), em algo que possa ser suscetível de trabalho psíquico (pensamento), a duas variáveis: a rêverie materna e o grau de tolerância à frustração.

A mãe, com seu sonhar, fornece ao bebê a possibilidade de não sucumbir ao seu terror de abandono; sonhando sua dor, ela o ajuda a lidar com a ausência. Mas o processo não é simples. Em Atenção e interpretação, Bion constata que

existem pacientes cujo contato com a realidade apresenta mais dificuldade quando esta realidade é seu próprio estado mental... existem pessoas tão intolerantes à dor ou frustração que elas sentem a dor, mas não a sofrem; assim não é possível dizer que elas descobrem a dor... onde um paciente poderia compreender uma palavra como algo que marca uma conjunção constante, outro experimenta a palavra como algo que não está lá; e o algo que não está lá, como algo que está lá, é indistinguível de uma alucinação. (1970/2007, pp. 26-27)

Assim, Bion (1962/1991) afirma que uma personalidade capaz de sofrer a dor da frustração tem a possibilidade de se reger pelo princípio de realidade e ser capaz de observar uma experiência emocional como uma conjunção constante.

Oslo quer sentir-se vivo, sente saudade da tristeza, mas relata que logo a "pasmaceira" toma conta, o que o impede de sentir-se vivo. Intui que a "pasmaceira" representa uma maneira de impedir o seu sentir. Oslo vive a consequência da fuga do "sofrer a dor". Pode, de maneira fugaz, "sentir" a dor, mas não pode "sofrê-la". Ao escapar do "sofrer a dor", fica barrada em sua vida a possibilidade de "sofrer a alegria". A fuga da realidade emocional o impede de viver a sua riqueza emocional.

Bion comenta que o bebê, ao ser ajudado pela rêverie da mãe e por uma condição de identificação projetiva realista, poderá iniciar-se na possibilidade do pensar; um não seio torna-se pensamento e uma mente se desenvolve.

Essa tolerância permite atribuir um sentido psíquico à experiência emocional da falta, mas se a tolerância for baixa aparecerá a tendência à evasão, e, em lugar da modificação da frustração e do que poderia ser um pensamento, aparece um objeto mau, indistinguível da "coisa em si", que será evacuado. Assim, a aceitação da dor e do sofrimento impede o desfigurar da experiência emocional e permite intuir o espaço psíquico como um espaço para além do sensorial.

Para Bion (1970/2007), a noção de espaço mental parte da intuição de que a geometria euclidiana se originou a partir da experiência emocional do espaço como o "lugar onde antes havia algo". Essa intuição, transferida para o psiquismo, permite pensar o espaço intrapsíquico como uma "coisa em si", incognoscível, mas passível de ser representada por pensamentos.

Esse conceito de espaço mental é, para Bion, impossível de ser apreendido de maneira direta pelos sentidos, mas passível de ser representado por pensamentos. O espaço mental é, portanto, fruto de um trabalho psíquico em perene construção. Um trabalho necessário pela alternância de experiências emocionais de expectativa e falta.

Assim, Bion afirma que esse espaço não "é" nem dado, nem conquistado, mas apenas trabalhado, mudando constantemente de acordo com o pensar. Um processo de abstração que deriva sempre de uma experiência emocional.

Ao pensar na dificuldade da intuição desse espaço psíquico, Bion (2004) sugere que a percepção desse espaço se tornaria mais possível se a intuição da falta (não coisa) pudesse ser percebida como a substituição de um sentimento, que antes aí "estava", por outro.

Penso que essa perspectiva, a da percepção da fluidez dos sentimentos que se sucedem na mente, inclui a possibilidade do nascimento do desejo de conhecer o vir a ser das experiências emocionais e o seu fluir, o que permite sentir a falta "apenas como um dos possíveis pontos de vista" (Bion, 2004, p. 135).

Oslo, ao fugir da experiência emocional difícil, impede ao seu psiquismo a percepção da fluidez dos sentimentos e sua relação seja com o prazer, seja com a dor. Assim, não alcança a intuição da mente como espaço para pensar as suas experiências.

Bion (1962/1991) deu relevância ao conhecer (K), incluindo-o no rol das experiências emocionais aptas a serem sentidas. Definiu-o como uma qualidade de vinculo resultante da interação de duas mentes, interação essa que, ao possibilitar um sentido, pode ser internalizada, levando ao aprender com a experiência.

É importante ressaltar que conhecer não traz um elemento de conclusão, finalidade, mas sim um estado de mente de abertura a conhecer algo do outro que se deixa ser conhecido. Essa qualidade, +K, representa a otimização da relação analítica... Para Bion, é a emoção do conhecimento que possibilita suportar emoções sentidas como insuportáveis e dar origem ao pensar. Esse "suportar" implica uma constante tensão e contraposição do conhecer com as demais emoções, pois as emoções do amor e do ódio têm como efeito contaminar e mesmo dominar a possibilidade do interesse pela vida mental.

Oslo, em seu sonho, mostra o medo que tem das emoções, percebidas como duras e perigosas. Mas, no mesmo sonho, ele também pode intuir que essa fantasia não corresponde inteiramente à realidade, pois, ao estender a mão e tocar o fruto pesado e perigoso, descobre uma leveza inesperada.

Abrir-se ao mundo emocional e observá-lo com curiosidade ajuda a discriminar a realidade da fantasia e leva a perceber que a realidade geralmente é bem mais amena que as fantasias que povoam a mente humana.

Em psicanálise, a experiência emocional do conhecimento define a interação de duas mentes que, ao se encontrarem, podem permanecer juntas, modificando uma à outra, ou evadir esse contato. É a possibilidade de dar sentido a essa interação, evitando a fuga, que vai permitir a internalização e a modificação da experiência emocional, antes sentida como perigosa ou sedutora, sob um formato mais possível dentro da realidade.

Conhecer, +K, corresponde a um estado emocional que permite tolerar a dúvida e a insegurança, instalando, na mente que se tem como foco, a possibilidade do existir como um espaço interno em constante tensão e contraposição à busca de satisfação. Um espaço de trabalho psíquico incessante, um fator que permite intuir o psiquismo como um espaço passível de atenção e modificação.

Vivemos misturando o que vemos com o que sentimos, mas desde Freud nos é apontada outra possibilidade mental: aquela da contenção, que, em lugar da descarga imediata, vai permitir a construção de novos sentidos para dar conta da sempre cambiante realidade.

Pensar implica o uso das próprias emoções, não somente para senti-las, mas também para considerá-las como um ponto de partida para lidar com a realidade frustrante. Esse processo pressupõe também, penso eu, a construção de uma autoridade interna que se tenha como centro em seu campo de observação e que possa viver em maior intimidade com seu mundo mental, para observar e refletir sobre os "fatos" que aí se dão. Somente assim as realidades, interna e externa, podem ser consideradas como ricas fornecedoras de informação, e não apenas como fontes de satisfação ou de frustração.

Considero que há duas modalidades de "ser", duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história. Essas dependem de sua posição diante de si.

Em uma delas, o homem se identifica com suas crenças, seus momentos de caos, seus ruídos internos. Perde-se ao sabor de sua sensorialidade e de suas emoções, sendo refém de seus espectros, deuses e demônios.

A outra pressupõe a possibilidade de uma transcendência das crenças e de seus ruídos para, então, observá-las e com elas se relacionar. Torna-se possível a comunicação interna.

Claro que as duas possibilidades de vivências jamais são encontradas em estado puro. Seja lá qual for o desenvolvimento mental, jamais se pode abolir o momento da falta de sentido, do fragmentado e das emoções que o acompanham.

Um território mental estrangeiro, desconhecido, faz parte da experiência emocional de todos os dias. Nesse momento, fugir, buscar alívio imediato é humano. Mas, caso seja desenvolvida a possibilidade de a atenção se instalar no território da realidade psíquica, tomando-a como fonte de informação, pode-se habitá-la em comunicação com o próprio inconsciente para a ele ir dando sentido, normas, formas...

Uma frase de Clarice Lispector (1996, p. 95) me ajuda a comunicar melhor o que intuo. Diz ela: "Aquilo que eu fizer do pedido e da carência - esta será a vida que terei feito de minha vida".

Se o sujeito é a evolução de uma construção que tem a si no campo de observação, a possibilidade de interesse pelo seu mundo interno implica diminuição de julgamento e de crítica.

Isso vai ajudar a observar a própria mente como um espaço em constante mutação, a buscar novos sentidos sobre os fatos aí observados, verdadeiros no agora, mas em um agora em constante mutação... Eis a direção do trabalho psíquico que a psicanálise implica.

Em relação a isso, senti-me apoiada na leitura de um trabalho de Ogden (2013) em que o autor afirma haver uma evolução do pensamento psicanalítico que hoje, para alguns analistas, busca, em sua técnica, fortalecer a atenção do paciente para a existência da mente.

Diz Ogden que, considerando que processos mentais são, para a psicanálise, apenas fantasias pessoais inconscientes que ocupam o espaço mental, hoje podemos transitar do enfoque sobre compreender o que pensamos (conteúdo simbólico) para focar como pensamos. É claro que as crenças que nos regem têm a ver com a maneira de pensarmos. Nosso trabalho dá-se, assim, em duas frentes.

 

Discussão

Oslo afirma: "Vejo, mas não gosto do que vejo...", e com essa afirmação ele se impede a observação de si. Essa observação só será possível se o princípio do prazer for deslocado de sua primazia e ceder lugar à emoção da curiosidade.

A magia de nossa mente é o fato de ela ser uma função da imaginação: internalizar um bom objeto, que vai fortalecer o ego, é, ao nível subjetivo, ter uma fantasia de possuir um seio nutritivo. Em direção contrária, enfraquecer, cindir, fragmentar o funcionamento do ego é ter uma fantasia de expulsar, cuspir, evacuar partes da própria mente no outro.

Apesar do seu "não gostar" e de todas as suas dificuldades, percebo que minhas falas se disseminam em sua mente. No início, Oslo costumava repetir o que eu dizia, como uma mera emulação, sem, aparentemente, atribuir-lhe um sentido seu. Mas, para minha surpresa, essa emulação tornou-se, com o passar do tempo, um centro aglutinador de mudança mental. Como a situação de um bebê que, inicialmente, apenas imita com seu balbuciar os sons da mãe e que, repentinamente, se apodera da palavra, dando-lhe sentido e emoção.

Ao observar tais mudanças, pensei: algo nele é capaz de se comunicar com ele mesmo. Como diz Bion, algum intercâmbio se dá entre o indivíduo civilizado, educado e articulado, e sua mente primordial (1978/1992).

Bion convida-nos a apresentar o paciente à pessoa mais importante com quem ele jamais poderá lidar, ou seja, com ele mesmo (1978/1992). Apesar de essa apresentação inicialmente ser passível de não fazer sentido, o processo causa, com o passar do tempo, a formação de novos sentidos que, lentamente, influenciam o funcionamento mental, possibilitando o novo.

Oslo chegou patinando no mesmo lugar: uma personalidade social que sempre se expressou de modo articulado, mas sem nenhuma possibilidade de conviver e se relacionar com a percepção dos aspectos mais primitivos de sua mente.

Essa percepção era sempre acompanhada de medo e de crítica. Não havia aceitação do drama de sua humanidade. Seu eu musculoso, fortalecido pelo exercício de uma moral avaliativa radical e pela crença na necessidade de explicação racional, havia-o enclausurado, separando-o de sua sensibilidade e fazendo-o perder o contato com seus elementos mais vivos.

Bion afirma:

O impulso moral é extremamente primitivo... e a menos que se reconheça a natureza primitiva deste sistema moral, este não pode ser devidamente avaliado... se a análise consegue expor esta qualidade (moral) de tal forma que o paciente possa decidir por si mesmo e rever suas opiniões, poderá, caso queira, não ter que continuar sentindo a mesma coisa para todo o sempre. (Bion, 1992, p. 13)

Oslo, por muito tempo, maquiou a percepção da frustração que a convivência com a esposa lhe trazia, idealizando-a e idealizando o casamento. Para manter a idealização, ele tentava mudá-la, torná-la menos frustrante. A frustração era negada, o ódio também, o que transformava tudo numa apatia e num falso interesse afetivo que, entretanto, nas situações do dia a dia, não se sustentava.

Havia uma tentativa de ignorar a existência dos conflitos, da ambivalência, da percepção dos limites em si e no outro. Oslo não queria entrar em contato com o ódio, queria ficar apenas com a benevolência. Mas, para isso, ele pagava um alto custo: perdia o contato com a sua dimensão erótica, que cedia espaço para a energia incoercível de um superego que o forçava a atuar como bom marido... Mas um marido estéril.

O mau marido, sempre negado, aparecia nas frestas, no personagem apático, perdido e distante de seu desejo. Aos poucos, ele foi olhando para o marido que não "podia" se aproximar sexualmente, pois estava sempre "ocupado" com afazeres mais importantes.

Com o tempo, apresentado a seus personagens, Oslo foi estendendo sua conversa, não mais apenas com seu Deus, mas também com o seu Diabo; com seu "irmão caboclo" capaz de se embrenhar na mata perigosa das temidas emoções. Como diz Bion, "a mente é um fardo muito pesado" (1989, p. 47), possui amplitude de bombardeio, para sobreviver escolhemos uma faixa. O trabalho da psicanálise é ampliar a faixa, é permitir que o chão deslize e se desloque.

 

Referências

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Recebido em: 13/09/2018
Aceito em: 9/10/2018

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