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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

TEMAS LIVRES

 

A ruptura do tempo na experiência do luto: um aprendizado1

 

The rupture of time in the experience of mourning: an apprenticeship

 

La ruptura del tiempo en la experiencia del duelo: un aprendizaje

 

La rupture du temps dans l'expérience du deuil: un apprentissage

 

 

Péricles Pinheiro Machado Jr

Psicólogo e psicanalista, membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e o Birkbeck College, University of London. São Paulo. periclespmachado@icloud.com

 

 


RESUMO

Com base em duas experiências particularmente dolorosas de perdas, o autor dedica-se a uma reflexão sobre o impacto da morte em como o tempo é experimentado durante o trabalho do luto. Este trabalho de caráter autoral, quase biográfico, foi escrito no decorrer de longos meses entremeados por momentos de silêncio e inspiração, buscando-se deixar que lembranças de diferentes naturezas pudessem vir a formar uma rede de conexões afetivas que favorecessem a continência, a transformação e a sobrevivência às perdas experimentadas. Passagens teóricas de Freud e Klein sobre o trabalho do luto e a experiência estética da transitoriedade são convocadas para dialogar com o autor na tentativa de esclarecimento acerca da percepção do tempo durante a elaboração de perdas afetivas. Este trabalho é dedicado à memória de Paola Magnani e Pérsio Nogueira.

Palavras-chave: luto, tempo, experiência emocional, transitoriedade


ABSTRACT

Taking from two particularly painful experiences of loss, the author devotes himself to a reflection on the impact of death on the way time is experienced during the work of mourning. This authorial, almost biographical, paper was written over long months interspersed by moments of silence and inspiration, whilst attempting to let memories of different natures come to form a network of affective connections that favoured continence, transformation and survival to the losses experienced. Theoretical passages from Freud and Klein on the work of mourning and the aesthetic experience of transience are summoned to dialogue with the author in an attempt to clarify the perception of time during the elaboration of affective losses. This work is dedicated to the memories of Paola Magnani and Pérsio Nogueira.

Keywords: mourning, time, emotional experience, transience


RESUMEN

A partir de dos experiencias particularmente dolorosas de pérdidas, el autor se dedica a una reflexión sobre el impacto de la muerte en la manera como el tiempo se experimenta durante el trabajo del duelo. Este trabajo de carácter autoral, casi biográfico, fue escrito a lo largo de luengos meses entremezclados por momentos de silencio e inspiración, buscando dejar que recuerdos de diferentes naturalezas pudieran formar una red de conexiones afectivas para favorecer la continencia, la transformación y la supervivencia a las pérdidas experimentadas. Los pasajes teóricos de Freud y Klein sobre el trabajo del luto y la experiencia estética de la transitoriedad son convocados para dialogar con el autor en el intento de esclarecimiento acerca de la percepción del tiempo durante la elaboración de pérdidas afectivas. Este trabajo está dedicado a las memorias de Paola Magnani y Pérsio Nogueira.

Palabras clave: luto, tiempo, experiencia emocional, transitoriedad


RÉSUMÉ

De deux expériences particulièrement douloureuses de pertes, l'auteur se livre à une réflexion sur l'impact de la mort sur la manière dont le travail de deuil est vécu. Cette œuvre d'auteur, presque biographique, a été écrite pendant de longs mois entrecoupés de moments de silence et d'inspiration, essayant de laisser des souvenirs de natures différentes former un réseau de connexions affectives qui favorisaient la continence, la transformation et la survie aux pertes subies. Les passages théoriques de Freud et Klein sur le travail de deuil et l'expérience esthétique de l'éphémère destinée sont invités à dialoguer avec l'auteur pour tenter de clarifier la perception du temps lors de l'élaboration des pertes affectives. Ce travail est dédié aux mémoires de Paola Magnani et Pérsio Nogueira.

Mots-clés: deuil, temps, expérience émotionnelle, éphémère destinée


 

 

Um trabalho autoral é testemunho da experiência pessoal de seu criador, de corpo e alma, cuja trajetória pelo mundo adquire sentido e torna-se progressivamente mais singular ao entrar em contato com outras pessoas, outros destinos e outros desejos. E torna-se também calejada pela fatalidade de certas perdas, términos inesperados, desenlaces e reviravoltas que são elementos potencialmente transformadores da experiência humana. Esse efeito de transformação desdobra-se de forma lenta, silenciosa, dolorosa e complexa. Mas, em uma tentativa de esclarecimento, penso tratar-se de vivências pessoais em seu aspecto mais terreno, marcadas pelas fronteiras impostas pela realidade em face do desejo. É a constatação da finitude do corpo, das bordas da vida e da impotência diante de eventos externos e internos com os quais temos de nos haver por força das circunstâncias e por força dos propósitos pessoais que podemos assumir em vida quando estamos tomados pela paixão e curiosidade daquilo que pulsa dentro de nós. Penso nessas experiências como potenciais oportunidades de aproximação singular com a própria humanidade em vista da possibilidade de tornar menos assustador o contato com o real e com as emoções provocadas pelo nosso confronto direto com o mundo e suas vicissitudes. É também uma espécie de superação das idealizações, conhecidas ou fantasiadas, que nos assolam constantemente e que às vezes deixam-nos fatalmente desamparados nos momentos mais inconvenientes.

Os pensamentos que registro neste texto não têm a pretensão de serem lidos como um ensaio teórico e conceitual. Antes, resultam particularmente de sequências de transformações vividas ao longo dos últimos anos em minha experiência como sujeito de lutos realizados em atribulado silêncio, no contato com amigos e colegas que - cientes ou não dos elementos biográficos que compõem este retalho de memória - possibilitaram continência, elaboração e sobrevivência a experiências de perda que modificaram radicalmente o valor que atribuo à vida. Entre estas, refiro-me à perda de uma amiga muito querida e, pouco mais recentemente, de meu analista.

Creio que o valor de uma amizade torna-se ainda mais claro quando deparamos com a realização de sua ausência. Despedi-me de amigos ao longo da vida, alguns pelo distanciamento geográfico, outros pela alienação instigada pelo adoecimento psíquico, uns poucos (ainda bem) pela morte súbita e muitos pela perda dos laços afetivos em vista de desencontros e de caminhos que se abrem. Uma amiga em especial partiu no auge da juventude. Seus amigos e familiares, com quem convivíamos com certa frequência, tivemos que aprender a existir sem sua presença, o humor peculiar e a beleza a que nos havíamos habituado durante quase 40 anos. Experimentamos juntos ou em proximidade o choque, a tristeza e a saudade. Para alguns dos que ficaram, foi possível estreitar os vínculos e fortalecer uma amizade de infância. Para outros, foi-se o laço que nos mantinha unidos.

Algo muito diferente se experimenta quando se perde o analista. Ou melhor, algo muito diferente experimentei ao perder meu analista na agitação do laço transferencial que nos unia. Pérsio Osório Nogueira era uma figura! Inicialmente, uma figura perturbadora, devo dizer. Nossas conversas iniciais me marcaram com a perplexidade de estar diante de um homem que conseguia se manter integralmente próximo, delicadamente presente e assustadoramente tranquilo. Encontrávamo-nos diariamente às 19 horas, quase pontualmente. Pérsio era um enigma que jamais decifrei, muito embora ele se apresentasse diariamente como apenas mais um ignorante com quem eu teria de me habituar, apesar das frustrações inevitáveis. Certa vez, disse-lhe que tinha pavor de pensar que ele poderia morrer durante uma sessão. Ele responde que a morte seria a menos grave das aflições: pior seria ele enlouquecer e eu não me dar conta disso, e continuar buscando nele alguma verdade iluminada. Pois foram seus comentários, por vezes mordazes, por vezes constrangedores, mas sempre plenos de uma franqueza ética, que me possibilitaram experimentar na intimidade do encontro analítico a realização de um reconhecimento humano que certamente não poderá jamais ser traduzido (ou, quando muito, o será mal e porcamente).

Evidentemente não cabe explicitar aqui os pormenores desses relacionamentos, pois não se trata de trazer a público a intimidade vivida nos limites do corpo e no contato com pessoas amadas cada uma a sua maneira. Basta esclarecer que as reflexões que faço neste texto são dedicadas à amizade e à liberdade que algumas experiências pessoais nos proporcionam. Desloco a palavra amizade para outros sentidos: a amizade como qualidade de um contato genuíno marcado pelo reconhecimento de espaços singulares, pela transformação da paixão em ternura e pela realização das diferenças como algo a ser celebrado. Proponho-me a escutar as lembranças com amizade para deixar que as palavras surjam espontaneamente, tomando o cuidado para não assustar aquilo que é novo e brota devagar, mas assustadoramente. Neste aspecto, inspiro-me na proposta de Elisa Cintra (2007) de escutar o próprio corpo com uma atenção amistosa para intuir o que nos resta de mais verdadeiro quando sobrevivemos às perdas por meio do trabalho de luto. É isso que me proponho a experimentar na prática clínica com pessoas que buscam na análise um sentido para as infinitas perdas experimentadas em suas vidas.

 

No olho do furacão

A dor da perda pode ser insuportável. Ao menos assim nos parece logo que perdemos alguém que amamos. Quem passa por essa experiência (e todos passamos) provavelmente guarda uma lembrança nítida e viva de um instante de impacto, algo que não pode ser descrito por lhe faltar um elemento que o qualifique psiquicamente como representação. É um ponto cego, uma suspensão, uma bagunça que perturba o senso de realidade. É uma ruptura no tempo, um "claque" que estala em algum lugar dentro de nós. Cadê? Onde está? O que houve? Sim, pode-se dizer, é evidente, fulano se foi, e isso é triste. Morreu, e é fato. Mas nem tudo ou quase nada se encaixa. A dor é uma agitação estranha, uma névoa que nos envolve, uma ponta de espinho que toca fundo em um ponto minúsculo, pequenininho mesmo, que pesa de forma mortificante.

A perda de uma pessoa querida é uma experiência difícil de atravessar. Isso é senso comum, acredito. Mas o que é que morre com o outro? Certamente o seu corpo, que agora não mais poderá nos alcançar. Será o calor que desse corpo emanava, seu cheiro, sua presença? A vida se mostra no movimento, na resposta às nossas palavras, no olhar que se volta a quem nos fala. Com o corpo vai-se também a constatação de que não mais existiremos como memória na mente de quem perdemos. Um pedaço de nós morre junto com a pessoa querida. Talvez a orientação religiosa propicie a esperança de que em algum lugar essa memória se preservará e poderá ser um dia recuperada. De todo modo, é um mistério que não dá conta de nomear a dor na hora da perda, tampouco torná-la mais leve.

A cultura provê ritos e cerimônias para ajudar as pessoas a suportar a morte como algo natural. Isso quando se morre de morte morrida. A morte matada é outra história, muito mais violenta e perturbadora. Velar o corpo de quem se foi, abraçar aqueles que ficaram, aguardar um tempo para que tenha início o sepultamento. Tudo isso serve para ajudar os vivos a fazer uma passagem em comunidade, atravessar um momento de perturbação da linha do tempo. Aquela presença a que estávamos acostumados e tínhamos como assegurada pela continuidade dos dias torna-se repentinamente uma ausência surda. Vira um zumbido, um canal fora do ar. É preciso tempo para que a perda adquira realidade psíquica, torne-se possível de ser sonhada, e não apenas padecida como um fato concreto, denso, carregado de uma dureza imobilizadora.

No olho do furacão estamos sozinhos. Carlos Castañeda (1968/2000), na voz de seu personagem Don Juan em A erva do diabo, dizia que o conhecimento mais verdadeiro da realidade humana somente é possível mediante uma postura de respeito e humildade perante a morte. Na cultura mexicana, a morte é personagem principal de festas folclóricas, e sua onipresença marca uma constante lembrança de que a vida e o estar vivo são privilégios a serem celebrados cotidianamente. Isso não retira da morte seu aspecto horripilante e selvagem, evidenciado no imaginário coletivo pela figura da caveira trazendo consigo uma foice que corta os finíssimos fios da vida.

 

Isso também passará

A esse caráter contrastante da morte e da finitude como realidades que conferem à vida valor inestimável, Freud (1916/2010b) atribui a capacidade de fruição dos objetos da experiência cotidiana, de se obter alegria e satisfação com aquilo que nos toca. Nesse brevíssimo texto intitulado "A transitoriedade", Freud tece uma sensível reflexão com base em um passeio no campo ao lado do poeta Rainer Maria Rilke. Este parecia se perturbar com a ideia de que a beleza da paisagem era frágil e efêmera, e que isso lhe retiraria o valor da apreciação. Ora, o que é belo e apreciado mereceria, portanto, a persistência no tempo. A tragédia da vida, nesse sentido, era declarada antecipadamente pelo destino inexorável da morte, do fim e das perdas, o que é refutado por Freud na elaboração de sua caminhada ao lado do poeta.

Ocorre que essa exigência de imortalidade é tão claramente um produto de nossos desejos que não pode reivindicar valor de realidade Também o que é doloroso pode ser verdadeiro. Eu não pude me decidir a refutar a transitoriedade universal, nem obter uma exceção para o belo e perfeito. Mas constatei a visão de que a transitoriedade do belo implica sua desvalorização. ... Pelo contrário, significa maior valorização! Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade de fruição aumenta sua preciosidade. (Freud, 1916/2010b, pp. 248-249)

Ao abordar a transitoriedade como evidência do princípio de realidade, em oposição ao desejo estético de imortalidade de tudo o que é belo, Freud (1916/2010b) faz uma reflexão a respeito da ação do tempo sobre a experiência humana. A própria natureza tem sua beleza transformada durante o inverno, quando os campos europeus tornam-se gélidos e encobertos com a neve. A beleza do verde retorna na primavera todos os anos, o que lhe dá - em relação à duração da vida humana - um caráter de eternidade. A qualidade transitória da vida, da beleza da juventude ou de uma obra de arte, do vigor do espírito e da vitalidade do corpo põe-nos em contato direto com a finitude, a rarefação, a brevíssima durabilidade daquilo que nos é caro. Embora incontestáveis essas demonstrações quanto à impermanência dos objetos com que nos relacionamos, a mente tende a se esquivar daquilo que é penoso. O reconhecimento da finitude do objeto de amor antecipa-nos o luto pela sua perda.

Ditados populares e comportamentos supersticiosos confirmam esse temor do contato com a dor associada à morte. "Vira essa boca pra lá", "bate na madeira", "Deus me livre e guarde". E quando alguém nos telefona justamente quando nele estamos pensando, dizemos: "você não morre mais!" A psique zela pelos seus objetos amados. Mantemos recordações da infância, bilhetes trocados na escola, fotografias, enfeites da casa. Um pinguim de geladeira que nos foi dado por uma tia-avó, aquela panela de ferro que nunca usamos, mas que é nossa ligação com a fazenda onde passávamos as férias. O valor desses objetos está dentro de nós, no vínculo amoroso que mantemos com imagens que preservam vivas as marcas de nossa passagem pelo mundo. Tudo isso é memória afetiva. Tudo isso também um dia passará.

 

Luto

Lembro que quando morava no interior havia uma mercearia na rua de casa, aonde todos os dias eu ou minha irmã íamos buscar pão, leite, frutas, café moído na hora. Essa passagem pela mercearia era parte de um cotidiano infantil, sempre lá, sempre no mesmo horário, pão fresco, meia dúzia de bananas, põe na conta, e coloca aí também um chocolate. Quase nada se alterava nesse caminho, pois a vida numa cidadezinha pequena tinha a tranquilidade assegurada pela monotonia. Até que um dia encontramos as portas desse lugar fechadas. O bilhete pregado com durex mostrava em canetinha preta a palavra estranha: "luto".

Soube depois que havia morrido alguém da família do quitandeiro. Sei lá quem, acho que isso nem se formulou como uma questão para um menino de 9 anos. Mas a declaração pública de luto continha um estranhamento absurdo. Portas fechadas, um dia sem pão nem chocolate, sem conversa, sem combinar jogo de bola com amigos que normalmente tomavam sorvete sentados nos degraus da mercearia depois da escola. A palavra "luto" significava uma incômoda interrupção do cotidiano. Dias depois, as portas se reabriram. E então o pão voltou a chegar novamente na mesma hora de sempre, os moleques tomavam sorvete, alguém moía o café, e o assunto - durante um tempo - era o falecimento recente desse familiar. Acho que quem morreu devia ser uma tia velhinha, ou um parente doente que todos já esperavam partir desta para sabe-se onde. Nada talvez muito terrível, a julgar pelas caras do quitandeiro, sua esposa e os funcionários da loja. Dias depois, percebi, o mundo havia voltado à rotina.

Esse fragmento de lembrança - ou sonho, como queiram - mostra um pouco da capacidade humana de viver e continuar a vida, apesar das perdas. A finitude é humana e as perdas nos põem em contato direto com a própria humanidade. O trabalho de luto, esse período de suspensão do cotidiano, presta-se à elaboração dos fins, à cicatrização dos cortes. Toda perda é um corte. Todo corte sangra, uns mais e outros menos. Esse mistério que é o luto consiste em uma vivência turva, silenciosa, laboriosa e que deixa a psique em um estado de introversão e fragilidade, no aguardo de que alguns fenômenos se produzam: a superação da dor, a recuperação da força e, mais tarde, a transformação do desejo em memória.

Viver o luto significa, portanto, pôr-se em contato direto com uma experiência de ruptura. Aceitar o término, o desenlace, a partida. Isso não implica necessariamente uma morte real, no sentido da falência da vida ou da absoluta extinção do objeto em si, embora no senso comum utilize-se a palavra "luto" quase sempre em associação ao período que advém da morte de uma pessoa.

"O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante" (Freud, 1917/2010a, p. 249). Devemos ter claro, portanto, que o luto é essa reação afetiva à perda do vínculo libidinal com o objeto. Como reação, decorre de uma mudança do estado de coisas que toca o sujeito em seu mundo interno e o desorganiza a partir de um evento de perda, frustração, ruptura do contato afetivo com algo que até então existia no panorama de suas relações cotidianas. Na psicanálise, a concepção de luto estende-se a diversas situações que dizem respeito à aquisição da capacidade de processamento do excesso de afetos mobilizados pela perda, fenômeno esse que possibilita a entrada nos processos temporais e o redimensionamento de angústias primitivas vividas em sua desmesura (Cintra, 2007). O luto diz respeito à dissolução do vínculo amoroso com o objeto, quer seja este uma figura parental, uma pessoa querida (ou talvez, por que não, odiada), a própria imagem corporal que se modifica pela ação do tempo, o projeto da casa não construída, a idealização do outro, o anel que era vidro, o amor que "tumitinhas". O luto diz respeito a algo do infantil, como veremos adiante.

 

Atravessar a dor, reinserir-se no tempo

Em "Luto e melancolia", Freud (1917/2010a) apresenta uma formulação da dinâmica libidinal implicada na experiência melancólica com base em breves, mas significativas, ilustrações sobre o fenômeno do luto.

Nesse texto, Freud conceitua o trabalho do luto como um processo de lenta retirada da libido anteriormente investida nas ligações com o objeto amado. É interessante o uso do termo "ligações", empregado nas traduções inglesa e portuguesa do texto original, e que na edição organizada por Luiz Alberto Hanns foi traduzido como "relações". A libido, nesse sentido, serve à manutenção de um vínculocom o objeto. Ou seja, esse elo investido libidinalmente representa algo que diz respeito tanto ao eu como ao outro: um enlaçamento psíquico que cria no inconsciente uma representação fantasiada de união com o objeto.

É nesse ponto que o teste de realidade e a constatação de que o objeto não existe mais produzem efeito doloroso. Evidentemente, a morte de uma pessoa querida causa sofrimento e tristeza. Do ponto de vista das fantasias inconscientes essa ruptura incide sobre o vínculo afetivo, a ligação eu<->objeto, ou seja, traz para o plano da realidade psíquica, para dentro do próprio corpo, um corte terrível experimentado de forma quase carnal. A perda é então uma experiência de separação de algo que se encontrava unido ao eu em fantasia. É um corte latejante como um machucado físico, uma ruptura de ligamento. O luto equivale à entrada em um período de efetivação psíquica da separação que requer o atravessamento não apenas da dor, mas também dos sentimentos de raiva, ódio, amor, vergonha, inveja liberados pela quebra da relação com o objeto. A ruptura do tempo, neste sentido, condiz com o estado emocional a que somos submetidos por ocasião do desenlace. Perdemos o fio da meada, perdemos no outro uma referência que tinha por efeito marcar o compasso do tempo. Esse tempo que é realizado no reencontro com o outro torna-se uma experiência de eternidade, em que a expressão "nunca mais quero te ver", tantas vezes proferida pelas crianças quando ficam de mal com um coleguinha, revela-se uma verdade radicalmente assustadora, traduzida em linguagem adulta por "o pra sempre sempre acaba", como cantava Renato Russo. Vacilar entre o luto e a melancolia, essa tenebrosa sombra do objeto que nos ameaça com a condenação à vida eterna, é um fenômeno sobre o qual não temos controle, e que depende em grande medida de nossa capacidade de reconstrução do objeto com os retalhos, lembranças e afetos que sobreviverem à mudança verdadeiramente catastrófica de semelhantes perdas.

Melanie Klein retoma o texto de Freud para levar adiante o desenvolvimento de sua teoria da posição depressiva em "O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos" (1940/1996). Ela parte do princípio de que existe uma profunda ligação entre o teste de realidade, apontado por Freud como elemento precurssor do luto normal, e os processos arcaicos da mente (as primeiríssimas experiências psíquicas vividas pelo bebê desde o nascimento em sua relação com seus cuidadores). Klein compara certos estados mentais infantis com aqueles experimentados pelo adulto na situação de luto. Esses estados dizem respeito às experiências primitivas de pura intensidade, de sentimentos brutos de amor e ódio pelo objeto primário. A separação do objeto no luto adulto reativa em fantasia essas vivências arcaicas e os sentimentos de angústia e perda derivados da cena edípica. Decorre daí a ambiguidade experimentada pelo sujeito em relação ao objeto perdido. Há um lado amoroso que chora pela perda e um lado hostil que sobre a perda triunfa. A confusão dos sentimentos na situação de luto refere-se a uma alteração no estado-de-coisas encenada no campo das fantasias inconscientes em que angústias persecutórias concorrem temporariamente com a preocupação e os sentimentos de culpa em relação ao objeto perdido. Para Klein (1940/1996), esse trabalho psíquico de luto é um movimento de reconstrução do mundo objetal que entra em colapso quando ocorre uma separação radical com o objeto de amor.

Embora conscientemente possamos identificar quem perdemos - ou o que perdemos, lembrando aqui que o objeto pode ser até mesmo uma abstração, algo a que nos apegamos e a respeito do qual criamos expectativas -, é muito difícil divisar o caos e o estrago que se instalaram dentro de nós em decorrência dessa perda significativa.

O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo externo - à medida que este não evoca esse alguém -, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele [tal como se verifica na melancolia]. (Freud, 1917/2010a, p. 250)

Esse prejuízo no interesse pelo mundo externo e pelas atividades que não digam respeito ao objeto de amor perdido resulta da reintrojeção da libido no eu e da necessária atenção que se volta ao mundo interno que precisa ser reparado. A vida entra em suspensão. Tudo revolve em torno da dor, da separação do outro, da frustração do desejo. O tempo para, as pessoas passam despercebidas. O luto retira a libido do mundo externo e, consequentemete, perturba a percepção do tempo cronológico, o tempo mundano que acolhe o cotidiano. Entramos no tempo "kairológico",2 marcado primoridalmente pelo compasso do mundo interno.

Esse tempo é necessário para que transcorra o trabalho de luto. A escuta amistosa do analista permite que o paciente nessa situação encontre seu ritmo, faça seu próprio caminho de reconstrução do mundo interno, de atravessamento da dor engendrada pela separação e pelos sentimentos hostis paradoxalmente experimentados em relação ao ente perdido. O aprendizado do luto é a aquisição de uma capacidade de lidar com as vissicitudes da vida de forma singular, e não por meio do seu amortecimento ou da culpa neurótica que imobiliza e nos deixa reféns da monstruosidade da morte e das ansiedades primitivas (Cintra, 2007). É no contato com a dor e na sua continência que se encontra a possibilidade de reparar o coração despedaçado. Trata-se de um passo em direção ao amadurecimento emocional que nos fortalece com base na fraqueza, na aceitação da finitude e na apreciação da transitoriedade de tudo o que é amado.

A possibilidade de ser ativo, de transformar a dor em algo interessante, faz perder o medo de ser passivo; abre a possibilidade de sentir com mais vivacidade e nitidez, e de se entregar a essa experiência nova - a de ser uma espécie de caixa de ressonância sensível para que a própria vida psíquica possa emergir em todas as suas tonalidades. (Cintra, 2007, p. 315)

À incômoda interrupção do cotidiano engendrada pelo luto sobrevém, em algum momento, o retorno à vida comum. Não creio que se esgotem a tristeza, os sentimentos de revolta e a fragilidade que se experimentam após uma perda significativa. Pois todo luto recupera algo feio da nossa autoimagem, da vergonha de ter sonhado sonhos inacessíveis, das expectativas infantis carregadas de onipotência e megalomania de um dia recuperar a posição de completude vivida na fantasia edípica. Repassamos a memória de objetos perdidos, relembramos os sabores doces e amargos daquilo que se viveu outras vezes como certezas absolutas.

É nessa travessia do luto que se abre para nós a dimensão singular do tempo. O princípio de realidade, dizia uma amiga, é a constatação de que, apesar da fome desmedida, leva-se vinte minutos para cozinhar o arroz. A árvore no quintal só dá manga uma vez por ano, em dezembro. A compreensão de que o compasso do tempo se alterna entre chronos e kairós, e de que o caminho humano se revela ao caminhar, é possivelmente um dos ganhos obtidos pela elaboração do luto.

Podemos localizar em nossa experiência pessoal os momentos em que entramos em luto resultante da morte de uma pessoa de nosso convívio, da demissão injusta de nosso emprego, da separação conjugal, da amputação de uma parte do corpo. Mas o luto cotidiano também é ocasionado por perdas mais sutis, coisas aparentemente bobas ou tão silenciosas que nos passam ao largo. Vivemos cotidianamente diversos lutos mais delicados, menos perturbadores, que limpam alguns rastros de nossos passos e nos possibilitam caminhar adiante, simplificar a vida, fazer escolhas um pouco mais realistas e afinadas com nosso senso de pertinência a uma comunidade de destino humano.

O atravessamento dos lutos é uma experiência que possibilita ao trabalho psicanalítico ampliar as capacidades elaborativas das angústias e sofrimentos de nossos pacientes. Penso ser esta uma das grandes contribuições de Freud em "Luto e melancolia" (1917/2010a).

Não vejo outra forma de finalizar este texto senão evocando outro texto que esteve sempre próximo, sempre presente em difíceis momentos de separação. Quando somos crianças ouvimos repetidas vezes: aprenda a perder. E, com a vida, aprende-se a perder. Elizabeth Bishop (1976/2001, p. 309) nos ensina:

Uma arte

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

 

Referências

Bishop, E. (2001). Uma arte. In E. Bishop, O iceberg imaginário (P. H. Britto, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1976)        [ Links ]

Castañeda, C. (2000). A erva do diabo. (L. M. da Costa, Trad.). Rio de Janeiro: Nova Era. (Trabalho original publicado em 1968)        [ Links ]

Cintra, E. M. (2007). Pensar as feridas. In M. C. Pinto (Ed.), O livro de ouro da psicanálise. Rio de Janeiro: Ediouro.         [ Links ]

Freud, S. (2010a). Luto e melancolia. In S. Freud, Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (P. C. de Souza, Trad., pp. 170-194). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Freud, S. (2010b). A transitoriedade. In S. Freud, Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (P. C. de Souza, Trad., pp. 247-252). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1916)        [ Links ]

Klein, M. (1996). O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos. In M. Klein, Amor, culpa e reparação e outros trabalhos - 1921-1945 (A. Cardoso, Trad., pp. 385-412). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1940)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 25/4/2018
Aceito em: 4/9/2018

 

 

1 O autor agradece aos colegas Elsa Susemihl e Osvaldo Barison a leitura e os comentários feitos ao texto por ocasião de sua redação original.
2 Relativo ao termo grego kairós, a forma qualitativa e pessoal do tempo, em oposição a chronos, a forma quantitativa que indica o tempo compartilhado coletivamente.

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