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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

RESENHA

 

Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático

 

 

Denise Salomão Goldfajn

Pós-doutoranda em psicologia clínica no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Psicanalista associada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). São Paulo. dsgoldfajn@gmail.com

 

 

 

Autor: Daniel Kupermann
Editora: Zagodoni, São Paulo, 2017, 174p
Resenhado por: Denise Salomão Goldfajn, São Paulo

 

Por que ler Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático?

Se no futuro longínquo quiséssemos saber sobre o pensamento psicanalítico no Brasil, o livro de Daniel Kupermann, Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático, seria uma excelente escolha. Longe de ser uma leitura datada e local, o livro se insere em um panorama amplo, em que Freud dialoga com autores, pioneiros e contemporâneos, em diferentes contextos e em nosso país.

Kupermann provoca seu leitor já na primeira página do livro, alinhando consenso e dissenso em uma só matriz definidora da genealogia do pensamento psicanalítico. Para ele, a psicanálise funda-se na ética do cuidado e no espectro do traumático.

Profundo conhecedor da influência das ideias de Sandór Ferenczi, o autor esta ciente do desafio que propõe: o cuidado com o sofrimento psíquico e um entendimento comum aos psicanalistas; já o lugar do traumático, na teoria e na clínica, apresenta-se como um desafio digno de ser chamado de "ovo de Colombo". Ovo que é posto em pé quando o autor afirma: "A concepção de trauma se aproximaria, assim, mais de um mito fundador necessário ao qual se atrela todo o exercício clínico, e ao qual se retorna sempre que novos impasses se apresentam ao psicanalista" (p. 9).

Entendo a afirmação radical do autor como: em psicanálise, o traumático não e nem verdadeiro, nem falso: e espectral e torna-se mítico, fundante de variações que incidem e modificam o entendimento do exercício clínico. O traumático como espectro infiltra-se por diferentes gradientes, privados e sociais, que, dependendo da incidência da luz e da escrita de Kupermann, tornam-se mais claros com a leitura do livro.

E a partir desse preâmbulo que o livro prossegue e o autor revisita temas que lhe são caros e aos quais vem se dedicando ao longo do tempo: o tato clínico, o Witz, sublimação e criatividade, a formação do analista e as interfaces políticas. O livro reúne artigos publicados pelo autor em revistas científicas e conferências, bem como artigos novos, que se apresentam organizados em três partes: "Estilos do cuidado," "Psicanálise, instituições e cultura" e "Retorno às origens e ao originário."

Na primeira parte do livro, inspirado pelas ideias de Ferenczi, Kupermann constrói com o leitor os três princípios do cuidado na clínica psicanalítica: a hospitalidade (a capacidade de acolher o paciente, dar lugar a ele no psiquismo do analista), a empatia (a capacidade de se estender ao paciente buscando sentir o que e como o paciente sente) e a saúde do analista (a importância de ser cuidado para cuidar do outro, ou seja, a própria análise/análise própria). São esses princípios que balizam o autor a estabelecer distintos estilos do cuidado em Freud, Ferenczi e Winnicott.

As matizes do cuidado e o espectro do traumático surgem dos excessos e faltas na técnica interpretativa de Freud, da plasticidade e da rigidez no contato afetivo de Ferenczi e do manejo suficientemente bom e/ou ruim, em Winnicott. Aqui, os avanços e regressões, a capacidade de amadurecer e brincar sugeridas por Winnicott são mediadas pelo diálogo e pela confusão de línguas entre a criança e os adultos, descrita por Ferenczi.

Contudo, seriam esses estilos clínicos apenas técnicos ou também estéticos, observados em outros enquadres e interações sociais? Questão abordada na segunda parte do livro, em que o autor articula, por exemplo, a traumatogênese com a clínica do testemunho, apresentando o desafio de cuidar das vítimas de traumas e catástrofes sociais (sobreviventes de guerra e de tortura em regimes totalitários) usando para isso fóruns públicos, em que as denuncias de maus-tratos e o testemunho público individual possibilitariam, terapeuticamente, a autorização e o reconhecimento de práticas que fazem adoecer, retirando a vítima da invisibilidade social.

As interconexões envolvendo o trauma sexual, proposto inicialmente por Freud, e o trauma social, proposto por Ferenczi, são enunciadas pelo autor para fundamentar sua discussão:

enquanto o trauma sexual freudiano implicava, em última instância, uma operação intrapsíquica própria do sujeito - ainda que originada por uma intrusão externa -, o trauma social, formulado por Ferenczi, explicitaria uma fratura na operação de reconhecimento das relações sociais e políticas. (pp. 48-49).

O autor observa que e delicada a relação entre a autorização e a desautorização testemunhal e, recordando-se de Roland Barthes, instiga-nos a pensar: "obrigar a dizer pode ser tão violento quanto forçar a calar" (2017, p. 54).

Em outro capítulo, o conteúdo e uma palestra feita em uma instituição hospitalar. Valendo-se dos elementos da ética do cuidado, o autor retorna aos seus princípios para demonstrar que qualidades subjetivas e afetivas são imprescindíveis no atendimento hospitalar e no trato com o outro: "acolher quem sofre, impactar-se por ele, manter-se vivo diante da qualidade mórbida do adoecer" (p. 66).

Da luta entre a vida e morte, o autor nos conduz ao humor, para mostrar que esta bem acompanhado de Sigmund Freud, demonstrando que a espiritualidade (Witz) e uma forma sublimatória de elaborar o desamparo, que de outra forma poderia ser danoso e traumático, pela má condução no processo afetivo de idealização e desidealização das imagos parentais (ou de quem cuida).

Assim, se a espiritualidade de que nos fala Kupermann e uma forma de articular o inconsciente com as regras sociais, obedecer e burlar a norma superegoica, o Witz torna-se um paradigma que une o intrapsíquico e o interpsíquico principalmente na transição entre o jogo de imagos parentais e o convívio social e político-institucional.

Quando, porém, não e possível rir, o convívio social, político-institucional, passa a ser mais obscuro e traumático, como na formação de psicanalistas. Kupermann retoma a sua crítica às chamadas análises didáticas (Kupermann, 2014), que limitariam a relação paciente-psicanalista, especificamente para o psicanalista em formação.

O estabelecimento de normas e critérios apriorísticos, contidos nas exigências institucionais dos institutos da International Psychoanalytical Association (IPA), comprometem, segundo o autor, o enquadre e interferem na "saúde do analista," elemento necessário à ética do cuidado.

As sociedades lacanianas, que historicamente buscaram oferecer um modelo de formação alternativo, não conseguiram equacionar a problemática dos processos transferenciais contaminados pelas relações institucionais, afetando, novamente, o curso da análise pessoal. Segundo Kupermann, "o que se observa... e uma repetição do masoquismo que tende a predominar nas formações culturais em geral, e também nas instituições psicanalíticas desde a sua origem" (p. 100).

O autor sugere que a recente formação de psicanalistas na universidade ofereça um tipo de arejamento e circulação promissor, mas destaca que essa circulação não inclui a pragmática clínica, excluindo a supervisão sistemática de casos clínicos e a análise pessoal do analista. Dessa forma, estaria o relativo arejamento da formação psicanalítica na pesquisa acadêmica associado à exclusão da pragmática clínica? Uma formação segmentada seria uma possível solução? Uma área rica para o diálogo entre a formação de psicanalistas e a transmissão da psicanálise que merece ser acompanhada com atenção.

A terceira parte do livro abre com o Capítulo 8: "O poder da palavra e a origem do pensamento freudiano," o melhor exemplo, no livro, do compromisso de Kupermann, para sorte de seus alunos, com o prazer de ensinar psicanálise na Universidade.

Trata-se da transcrição de uma aula inaugural feita aos alunos do curso de Psicologia da usp, em que o autor comunica a seus alunos: "Não é pequena a responsabilidade de quem se encarrega do primeiro contato de vocês com uma exposição sistemática da psicanálise, especificamente do percurso freudiano." (p. 126).

Mesmo em condições adversas, provocadas por uma afonia temporária, o autor, no melhor estilo brasileiro, "fez de seu limão uma limonada" e, sem se esquivar da responsabilidade descrita, escreve a aula para ser lida por um terceiro.

Mantendo em mente seu aluno principiante, a conferência torna-se um belo conto literário, sobre a construção histórica e clínica da experiência psicanalítica, sobre as fantasias e os chistes, sobre quem fala, o que fala e para quem fala.

Nesse conto, um professor escreve com todo o cuidado para ensinar e para despertar o amor pelo ofício, pela literatura, celebrando encontros, mesmo que contenham desencontros. Mesmo impossibilitado de falar com sua própria voz, Kupermann faz piada e imagina-se dizendo aos alunos que seu texto, na verdade fora, psicografado; Freud, portanto, falaria no lugar dele e por meio dele.

A riqueza da piada esta na possibilidade de realizar o desejo de ser Freud, não o sendo, pela transmissão da capacidade reflexiva e autorreflexiva que o autor nos propõe, conservando e mostrando o exercício psicanalítico germinal, na clínica e fora dela.

Com um estilo de escrita que faz o leitor oscilar entre a seriedade e o riso frouxo, Kupermann compartilha seu percurso e nos faz conversar com ele e com uma psicanálise que ele entende ser transdicursiva (Foucault), assentada sobre campos e vozes de autores conhecidos e consagrados, colegas e alunos, que ele garimpa cuidadosamente para alinhar e construir seu pensamento.

E difícil saber se, em um futuro longínquo, a psicanálise ainda interessara a alguém que abra minha imaginada cápsula do tempo e encontre esse livro, um exemplar valioso, mas os assuntos derivados do pensamento do autor, sobre as matizes do cuidado e os espectros do trauma, o brincar e seus derivativos, ler, trabalhar, ocupar-se de outros e de si, certamente renovarão o interesse em ler, no futuro, o que se faz presente nesse livro.

 

Referência

Kupermann, D. (2014). Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 6/2/2018
Aceito em: 4/11/2018

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