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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Ana Clara Duarte Gavião

Editora. jornaldepsicanalise@sbpsp.org.br

 

 

Perplexidade, desconforto, assombro, estranheza, pavor, indignação, entre outros estados emocionais repulsivos, são reações prováveis diante de manifestações contundentes de Thanatos - imagem mitológica representativa da impulsividade destrutiva e mortífera inerente à natureza humana - no plano individual e grupal.

O XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Belo Horizonte pela Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) no mês de junho de 2019, teve por tema "O estranho - Inconfidências", em alusão ao centenário do clássico artigo de Freud DasUnheimlich (1919/1990b), em que a ideia de imortalidade presente desde os tempos do homem primitivo e da antiga concepção animista do universo (narcisismo primário/onipotência) é paradoxalmente associada ao medo da morte. Fenômenos do "duplo" - por exemplo, sombras, reflexos em espelhos, crença em espíritos e na alma imortal - se configuram no sentido de reasseguramento diante de experiências inevitáveis de desamparo, horror, que por sua vez têm uma dimensão projetiva derivada da própria impulsividade instintual destrutiva, em estados de indiferenciação self-objeto.

Nesse texto freudiano podemos encontrar algumas fontes do conceito de superego primitivo posteriormente formulado por Klein, particularmente em nota de rodapé na qual Freud se refere à distinção entre a instância crítica do ego e o resto do ego, em contraposição à antítese anteriormente postulada, entre o ego e o que é inconsciente e reprimido, introduzindo o que depois viria a se tornar sua segunda tópica, na evolução da metapsicologia psicanalítica. As origens da concepção de superego arcaico podem ser notadas na associação temporal observada por Freud entre a constituição dessa instância crítica e o funcionamento narcísico, emocionalmente indiferenciado. Bion se referiu à crueldade do superego assassino do ego.

Freud considera que "tudo aquilo que agora nos surpreende como 'estranho' satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão" (1919/1990b, p. 300). Assim, o estranho envolve um re-conhecimento, certa reconexão com os próprios núcleos internos violentos e sádicos, na identificação do self com o objeto onipotente e aniquilador ou, por outro lado, salvador.

Uma característica marcante das experiências de iminência de aniquilamento do self é sua repetição involuntária, como algo fatídico e inescapável. Noutra relevante nota de rodapé, Freud anuncia o artigo que seria publicado em seguida, "Além do princípio de prazer" (1920/1990a), referindo-se à noção de compulsão à repetição, que no extremo corresponde a uma violenta força inercial de retorno ao inorgânico (que efetivamente acaba prevalecendo com a inevitabilidade da morte).

De acordo com Freud:

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma 'compulsão à repetição', procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos - uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas. ... Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima 'compulsão à repetição' é percebido como estranho. (Freud, 1919/1990b, p. 298)

Um exemplo chocante da repetição destrutiva, no plano grupal, encontra-se em estudos acadêmicos e matérias de jornalismo investigativo que mostram a semelhança entre fatores sociais, culturais, políticos e econômicos que levaram à ascensão do nazismo na Alemanha e ao atual momento brasileiro, ambos exemplos do avanço de movimentos de extrema direita no mundo. Os movimentos sociais engajados na defesa da democracia e dos direitos humanos - consequentemente as sociedades como um todo - se fragilizam mediante manifestações primitivas que afloram em determinadas conjunturas históricas, na forma de corrupção, quebra de pactos constitucionais, tirania, tortura, fome, miséria, genocídio etc.

Na clínica, sob um vértice que privilegia a singularidade do ser individual na relação intersubjetiva da dupla analítica, a experiência emocional do "estranho" geralmente é desconfortável, um tanto sinistra, porém pode ser fascinante, pelo aprendizado sobre os próprios impulsos destrutivos, tão vorazes, onipotentes, implacáveis e tirânicos, que se tornam estímulos oportunos para construir e fortalecer o continente interno.

Elaborações metapsicológicas e técnicas refinadas encontram-se a seguir, na seção temática, em que os autores apresentam modelos teóricos consistentes, elucidativos e que levam em consideração as vicissitudes do processo de evolução - ou de involução - da capacidade de simbolização dos extravasamentos inexoráveis dos instintos de morte. Alguns assuntos instigantes da seção: "clínica da crueldade", "ódio narcísico", "ódio na contratransferência", "homem sem inconsciente", "mente fascista".

Temos a satisfação de registrar, aqui, o início de uma parceria muito bem-vinda com a Diretoria de Cultura e Comunidade e a Divisão de Documentação, para republicação de artigos de psicanalistas das primeiras gerações da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp), sobre os temas atualmente propostos para os números do Jornal, revitalizando mentes criativas de nossos sábios antecessores!... A proposta da colega Luciana Saddi para esta parceria vem ao encontro dos interesses desta equipe editorial de valorizar nossa identidade institucional e as especificidades de nosso campo de estudo, cujo objeto adquire certa atemporalidade em função de sua essência imaterial, inconsciente e instintual. Quanto ao tema Thanatos, a primeira autora selecionada é justamente a fundadora deste Jornal de Psicanálise, Virgínia Leone Bicudo, em seu artigo sobre a peça "Roda-viva", de Chico Buarque de Holanda, incrivelmente atual no retrato da brutalidade humana. Uma "Nota introdutória" foi gentilmente redigida por Mônica Jeanine Fischbach Saliby e equipe da Divisão de Documentação da sbpsp, contextualizando a movimentada carreira de Virgínia Bicudo.

Enriquecendo esta mesma seção "História da psicanálise" temos, ainda, outro resgate histórico de mais um mergulho profundo nas entranhas dos instintos de morte, de autoria de Hanna Segal, que transpõe para a perspectiva sociológica conhecimentos psicanalíticos bastante vivos e críticos sobre a destrutividade humana. Com ética e dedicação admiráveis, Segal foi uma colaboradora ativa do movimento antiarmamentista. Na carta-convite a este número, reproduzida adiante, destacamos o olhar sensibilizado dessa autora que não se omitiu diante da estupidez das disputas em torno das armas nucleares, que levam à concretização das fantasias persecutórias de aniquilamento do self, devido à precariedade simbólica impeditiva de soluções mais elaboradas para os conflitos sociopolíticos, ou mais favoráveis, humanisticamente mais evoluídas.

Como é sabido, o Jornal é um periódico criado na década de 1960 por Virgínia Bicudo, na época em que ela era diretora do Instituto da sbpsp, com o objetivo de promover a interlocução de psicanalistas em formação, principalmente. Preservando esse foco, as quatro seções que se seguem procuram conversar especialmente com os colegas que passam pela experiência de formação, incluindo os respectivos conflitos e dificuldades: "Diálogo com um jovem colega", "Aula inaugural do Instituto de Psicanálise", "Encontro do Jornal de Psicanálise" e "Associação dos Membros Filiados".

Na seção "Interface com a cultura" a temática da autodestrutividade é retomada, dialogando com política, literatura, televisão, sem perder de vista as articulações metapsicológicas que fundamentam a apreensão psicanalítica dos fenômenos.

Em "Notas internacionais" Roosevelt Cassorla apresenta um surpreendente relato de sua viagem a Nova Iorque, onde encontrou seu "quase duplo", com quem trocou ideias curiosas sobre a história da psicanálise. Anita Lopes também nos traz notícias do exterior, do Colóquio em Lisboa, Portugal, do qual participou recentemente.

Na seção "Tema livre" o leitor tem mais uma oportunidade de tratar de questões conceituais e epistemológicas pertinentes, para em seguida acompanhar as últimas seções com interessantes resenhas.

É importante considerar o trabalho generoso e sensível desenvolvido pela equipe editorial, agora renovada em sua composição para a gestão deste próximo biênio, com Lidia Maria Chacon de Freitas na função de editora associada e os integrantes Anita Aparecida Lopes, Geraldo Cutcher Galender, Mariana Eizirik, Patrícia Nunes, Péricles Pinheiro Machado Junior e Yone Vittorello Castelo.

Em tempos marcadamente sombrios e estranhos, como o contemporâneo, ideologias extremistas avançam ao lado da hipocrisia, fakenews, levando as instituições à disfuncionalidade, à sutil exacerbação do princípio de prazer, a retrocessos organizacionais e éticos que eventualmente se confundem com flexibilidade, liberdade, desburocratização. Como por vezes acaba ocorrendo em enactments da dupla analítica, com ataques ao próprio setting. Nesse sentido, parece recomendável que as instituições psicanalíticas estejam atentas à interferência inevitável dessas dinâmicas em seu interior, em função da responsabilidade pela formação psicanalítica das próximas gerações, motivo central da fundação da ipa - International Psychoanalytical Association, em 1910 (Freud, 1910/1990c).

Um modelo, talvez um tanto impactante, para se pensar na complexidade da função psicanalítica é o do "hacker" (levando em conta a distinção entre hacker e cracker)1: como uma espécie de hacker, o psicanalista acessa arquivos ocultos da comunicação inconsciente, cujos vazamentos em geral subvertem a lógica convencional, com ressonâncias que podem ser associadas à citação:

percebemos que Schelling diz algo que dá um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo Schelling, unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz. (Freud, 1919/1990b, p. 282)

Uma proveitosa leitura e vazamentos inspiradores!

 

Referências

Freud, S. (1990a). Além do princípio de prazer. In Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (1990b). O estranho. In Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 271-318). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original intitulado Das Unheimliche, publicado em 1919)        [ Links ]

Freud, S. (1990c). Psicanálise silvestre. In Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 11, pp. 205-13). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910)        [ Links ]

 

 

1 Na linguagem especializada, o profissional que usa criminosamente conhecimentos altamente sofisticados de informática é chamado de cracker. O hacker aplica tais conhecimentos de maneira legítima, contribuindo, por exemplo, para que a criptografia possa servir cada vez mais à transparência esperada de governantes democráticos e à privacidade de direito dos cidadãos.

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