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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

CARTA-CONVITE

 

Carta-convite

 

 

Ana Clara Duarte GaviãoI; Lidia Maria Chacon de FreitasII; Anita Aparecida Lopes; Geraldo Cutcher Galender; Mariana Eizirik; Patrícia Nunes; Péricles Pinheiro Machado Jr; Yone Vittorello Castelo

IEditora
IIEditora Associada

 

 

Thanatos

É com perplexidade que observamos retrocessos civilizatórios significativos recentemente em nosso país, como também no mundo, contrariando as conquistas evolutivas, também relativamente recentes, nas áreas de Direitos Humanos e de Tecnologias, entre outras de algum modo associadas.

A psicanálise traz avanços na compreensão da natureza da mente humana, propondo um modelo de funcionamento psíquico e emocional, movido não apenas por estímulos externos, mas essencialmente por energias provenientes de fontes internas instintuais/pulsionais que tendem à descarga, por estarem submetidas ao princípio de prazer (ou de constância) que rege todo o sistema. A originalidade da proposição freudiana se evidencia no antagonismo entre as fontes de impulsos, cuja busca incessante de prazer e de equilíbrio dinâmico não se restringe ao que é agradável e construtivo, mas se verifica, também, no que não é, ou seja, há "prazer" no desagradável, na destrutividade.

Na clínica cotidiana, embora preparado em sua formação para a abordagem e o manejo, o psicanalista também pode se sentir perplexo diante de manifestações primitivas individuais, na relação de intimidade com sintomas compulsivos que resultam em destrutividade, como automutilações, transtornos alimentares, compulsão a drogas, a sexo, internet, consumo, tentativas de suicídio etc. Intolerância, voracidade, onipotência, violência emocional, perversões, desconsideração pela verdade factual e pela realidade de limites, sintomas nitidamente perceptíveis no âmbito sociopolítico, revelam-se enquanto experiências intensas vividas pelo par analítico durante um processo de psicanálise.

Na síntese do Fórum Teórico-Clínico intitulado Instinto de morte - seu uso na clínica atual, promovido pela Diretoria Científica da SBPSP em 2013, Milton Della Nina reúne e integra o rico conteúdo das apresentações, de autoria de Suad Haddad de Andrade, Ana Maria Andrade de Azevedo e Rahel Boraks, precedidas por um texto introdutório de revisão bibliográfica, no qual Vera Regina J. R. M. Fonseca e Thaís Rosenthal contextualizam historicamente o conceito. Vale destacar sua ampla aceitação na escola britânica de orientação kleiniana, bem como na psicanálise francesa inspirada por André Green, ao lado de Winnicott, outro grande autor inglês, que adota uma posição discordante quanto a sua utilização clínica. Por um lado, nota-se o valor clínico do conceito de pulsão de morte especialmente para o atendimento de pacientes fronteiriços e psicóticos, subsidiando teorias sobre a inveja e o pensar, com ataques à mente e ao vínculo, e com tendências a retroceder ao desumano, ao inorgânico e, de outro lado, no vértice winnicottiano, verifica-se maior ênfase no anseio por um estado de serenidade e não exatamente pela morte.

No entanto, um aspecto convergente dos diversos enfoques diz respeito ao reconhecimento da manifestação contundente, na relação analista-analisando, de poderosas forças emocionais de regressão a níveis primários de comunicação inconsciente, gerando hostilidades e verdadeiros impasses terapêuticos.

Hanna Segal (1998), com muita vivacidade defende o ponto de vista de que ao transpor a escuta psicanalítica para o campo sociopolítico, o psicanalista pode lançar luz sobre forças destrutivas que inevitavelmente se manifestam no indivíduo e no grupo:

Uma razão pela qual a psicanálise tem uma contribuição especial a dar à compreensão do fenômeno social deriva de que o comportamento do grupo é frequentemente muito irracional. Para que a sociedade proceda de modo tão irracional, o que é evidente em nossas atividades destrutivas com relação ao planeta do qual dependemos, especialmente a destruição de nosso próprio hábitat, através da poluição e da exploração insaciável, e da continuação da corrida armamentista nuclear louca, é necessário admitir que forças inconscientes poderosas estejam em ação. (p. 170)

É interessante neste artigo de Segal, intitulado De Hiroshima à Guerra do Golfo e depois: expressões sociopolíticas da ambivalência, a clareza com a qual a autora descreve o estado mental primitivo de desamparo e de persecutoriedade, materializado nas armas nucleares e ampliado a dimensões planetárias, referindo-se a uma "cultura de mentalidade-nuclear baseada em medo de aniquilação e que incrementa defesas esquizofrênicas" (p. 176).

Atentos a essas dimensões mais amplas de fragmentações perceptivas, em clima ameaçador, podemos nos aproximar da realidade local acompanhando Avritzer (2018), na seção Interface da Revista Brasileira de Psicanálise, ao entender a democracia no Brasil como constituída historicamente por movimentos pendulares: de um lado períodos de fortalecimento das instituições e da segurança constitucional, e de outro, a ruptura com o pacto institucional, produzindo o que o autor nomeia de "mal-estar na democracia". Em suas palavras:

Tal mal-estar começou com manifestações importantes, ainda em 2013, por melhores políticas públicas, potencializadoras de um conjunto de ações que dificilmente contribuíram para o fortalecimento da democracia. Entre elas, valeria a pena destacar a hostilização pública de membros do sistema político e a concentração da atenção da sociedade em questões ligadas à corrupção, que acabaram sendo tratadas de forma anti-institucional e antipolítica pela Operação Lava Jato. No ano de 2015, manifestações bastante conservadoras no Brasil reforçaram o clima de intolerância entre diferentes grupos sociais. (Avritzer, 2018, pp. 97-98)

Esse clima de intolerância social vem se intensificando, à medida que cresce um movimento avassalador dos valores humanistas, que desconfigura e perverte os pactos institucionais, dando vazão a arbitrariedades e atrocidades passíveis de serem apreendidas como fenômenos já descritos por Freud (1990/1920) como compulsão à repetição de descargas instintuais primárias, desprovidas de conexões simbólicas. Ainda pela perspectiva jurídica, Vieira (2018) em seu livro A batalha dos poderes admite que nós, brasileiros, não sairemos da armadilha em que nos metemos nos últimos anos, sem que os diversos setores da sociedade, suas principais lideranças políticas e institucionais se disponham a pautar suas condutas pelas regras e procedimentos previstos na Constituição, tendo em vista a radicalização das narrativas e a ascensão de uma liderança cujo discurso expressamente hostil aos valores constitucionais sinaliza o momento de regressão democrática.

No presente número do Jornal de Psicanálise, convidamos os autores à reflexão sobre as manifestações clínicas dos processos intersubjetivos desagregadores do princípio de realidade, levando-se em conta, oportunamente, certa estimulação advinda do cenário crítico mais amplo das instituições nacionais, e estendendo o olhar para possíveis manifestações da natureza selvagem de tais processos no interior das próprias instituições psicanalíticas. Em suma, adotando a terminologia mitológica, propomos tratar dos conflitos e interações entre Eros e Thanatos, em suas variadas e perigosas formas de expressão, no indivíduo, na dupla analítica, no grupo e, inevitavelmente, dentro de cada um de nós.

Colaboradores interessados por outros temas também serão bem-vindos para a composição das demais seções do Jornal, sendo que o prazo de envio dos trabalhos será até 6 de maio de 2019, seguindo as instruções e as normas de publicação da apa disponibilizadas no link "Jornal de Psicanálise - Normas de Publicação", no site www.sbpsp.org.br.

Agradecemos os participantes da atual equipe editorial do Jornal de Psicanálise e desejamos a todos um bom trabalho neste projeto que agora iniciamos para o novo biênio 2019-2020.

 

Referências

Avritzer, L. (2018) O pêndulo da democracia no Brasil. Revista Brasileira de Psicanálise, 52(4),97-116.         [ Links ]

Della Nina, M. (2013). Síntese das apresentações do Fórum Científico "Instinto de morte - seu uso na clínica atual. Trabalho disponível na Biblioteca da SBPSP.         [ Links ]

Freud, S. (1990). Além do princípio de prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. 18, pp. 12-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Segal, H. (1998). De Hiroshima à Guerra do Golfo e depois: expressões sociopolíticas da ambivalência. In Segal, H. Psicanálise, Literatura e Guerra - Artigos 1972-1995. Rio de Janeiro: Imago. Coord. Ed. Brasileira Elias Mallet da Rocha Barros, Trad. Eliana B. Neves, Francisca V. V. Vonk, Mariangela M. de Almeida Pinheiro (Trabalho original publicado em 1997)        [ Links ]

Vieira, O. V. (2018). A batalha dos poderes. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

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