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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

THANATOS

 

Neurose obsessiva e ódio narcísico1

 

Obsessive neurosis and narcissistic hate

 

Neurosis obsesiva y odio narcísico

 

Névrose obsessionnelle et haine narcissique

 

 

Eduardo ZaidanI; Elisa Maria de Ulhôa CintraII

IMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestrando em Psicologia Clínica pela PUC-SP. São Paulo. zaidaneduardo@yahoo.com.br
IIPsicanalista, professora da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. São Paulo. elcintra01@gmail.com

 

 


RESUMO

O Homem dos Ratos representou uma reviravolta na metapsicologia freudiana. Até então, a psicanálise tinha como pedra de toque uma teoria do recalque do desejo, e o paradigma da psicopatologia era a histeria. O estudo da neurose obsessiva, por sua vez, revelou a importância do ódio. Neste artigo, apresentaremos a história do Homem dos Ratos para, em seguida, trabalharmos a hipótese de que, com a publicação de "Os instintos e seus destinos", a paranoia passou a ser reconhecida como o âmago da subjetividade. Na medida em que a diferenciação entre o sujeito e o objeto se dá por meio do ódio, Freud defenderá que este é precursor do amor. Ilustraremos, com base na história do Homem dos Ratos, o vínculo entre ódio e narcisismo, revelando em que medida a paranoia se localiza no seio das relações objetais.

Palavras-chave: Homem dos Ratos, neurose obsessiva, ódio, narcisismo


ABSTRACT

The Rat Man's case represents a turning point in Freudian metapsychology. Until that moment, psychoanalysis had as a touchstone a theory of the repression of desire, and hysteria was the paradigm of psychopathology. The study of obsessional neurosis, in turn, revealed the importance of hate. This article will present the story of the Rat Man and work on the hypothesis that, with the publication of "Instincts and their vicissitudes", paranoia came to be recognized as the core of subjectivity. Since the subject's differentiation from the object only happens through the emergence of hate, Freud will argue that hate is the forerunner of love. This article will illustrate, through the history of the Rat Man, the bond between hate and narcissism, revealing that paranoia is located in the heart of object relations.

Keywords: Rat Man, obsessive neurosis, hate, narcissism


RESUMEN

El Hombre de las Ratas representó un giro en la metapsicología freudiana. Hasta entonces, el psicoanálisis tenía como piedra de toque una teoría de la represión del deseo, y el paradigma de la psicopatología era la histeria. El estudio de la neurosis obsesiva, a su vez, reveló la importancia del odio. En este artículo, presentaremos la historia del Hombre de las Ratas para luego trabajar la hipótesis de que, con la publicación de "Pulsiones y destinos de pulsión", la paranoia pasó a ser reconocida como el núcleo de la subjetividad. Como la diferenciación entre el sujeto y el objeto se da a través del odio, Freud defenderá que el odio es precursor del amor. Ilustraremos, a partir de la historia del Hombre de las Ratas, el vínculo entre el odio y el narcisismo, revelando cómo la paranoia se ubica en el seno de las relaciones objétales.

Palabras clave: Hombre de las Ratas, neurosis obsesiva, odio, narcisismo


RÉSUMÉ

L'Homme aux Rats représente un tournant dans la métapsychologie freudienne. Jusque-là, la psychanalyse avait pour pierre de touche une théorie du refoulement du désir et l'hystérie était le paradigme de toute psychopathologie. L'étude de la névrose obsessionnelle a à son tour révélé l'importance de la haine. Dans cet article, nous présenterons l'histoire de l'Homme aux Rats pour ensuite travailler sur l'hypothèse selon laquelle, avec la publication de "Pulsions et destins de pulsions", la paranoïa a commencée à être reconnue comme le noyau de la subjectivité. Alors que la différenciation du sujet par rapport à l'objet se fait par la haine, Freud affirmera que la haine est le précurseur de l'amour. Nous illustrerons, à partir de l'histoire de l'Homme aux Rats, le lien entre la haine et le narcissisme, en montrant comment la paranoïa se situe au cœur des relations d'objet.

Mots-clés: Homme aux Rats, névrose obsessionnelle, haine, narcissisme


 

 

Mais de duas décadas antes da publicação do brilhante livro de Renato Mezan, O tronco e os ramos, em 2014, Luís Carlos Menezes havia defendido, em um artigo de 1990, que o Homem dos Ratos representou uma reviravolta na metapsicologia freudiana. Esses autores convergem na opinião de que o ódio é a questão central do caso clínico de Freud, o que, por sinal, foi reconhecido pelo pai da psicanálise (Freud, 1909/2013, p. 100). Em 1991, Menezes explorou, em outro artigo, a implicação do Homem dos Ratos no edifício teórico da psicanálise, tendo em vista que, poucos anos depois, Freud redigiu os artigos metapsicológicos, nos quais procurou dar um lugar para o ódio em sua teoria, lugar até então inexistente.

Portanto, antes mesmo da Grande Guerra e da exibição patente da destrutividade humana, em seu laboratório, a clínica, Freud ganhou acesso privilegiado ao potencial destrutivo do homem, mesmo confinado às manifestações transferenciais. Os ataques sádicos do Homem dos Ratos são relatados por Freud no manuscrito do caso. Na segunda sessão, a transferência já estava instalada - Freud tinha se transformado no capitão cruel. Enquanto Freud se esquivava da transferência, tentando convencer o paciente de que não era cruel como o capitão, o Homem dos Ratos se comportava como se estivesse atordoado e confuso (Freud, 1909/2013, p. 29). O ódio transferencial serviu de trilha para a descoberta do que havia sido recalcado nesse paciente, o ódio ao pai. Até então, a pedra de toque da psicanálise freudiana era uma teoria do recalque do desejo. Freud tinha como matriz clínica a histeria: "A histeria revela-se assim como o prisma através do qual as demais psiconeuroses são compreendidas" (Mezan, 2014, p. 107).

A neurose obsessiva foi considerada, num primeiro momento, uma histeria sem conversão; em seguida, um dialeto da histeria. Era como se a histeria estivesse no núcleo da subjetividade; a cena passiva obrigatoriamente antecedia a cena ativa, sendo a razão pela qual todos os obsessivos tinham um substrato de sintomas histéricos. Em 1915, no artigo "Os instintos e seus destinos", podemos dizer que a histeria deixou de ser o paradigma de toda a psicopatologia. No seu lugar, a paranoia passou a representar o núcleo último da subjetividade. Neste artigo, defenderemos essa hipótese e para tanto nos apoiaremos na história do Homem dos Ratos. Por meio de um exercício de releitura do caso clínico (Freud, 1909/2013), do manuscrito do caso (Freud, 1974) e dos estudos realizados por Mahony (1986/1991) e Mezan (1998), coletamos informações da vida do Homem dos Ratos suficientes para construir uma linha do tempo com os eventos mais relevantes de sua vida.

 

Um esboço dos acontecimentos relevantes da vida de Ernst Lanzer

Sabemos hoje, com base no estudo de Mahony (1986/1991), que o paciente de Freud, o Homem dos Ratos, chamava-se Ernst Lanzer e nasceu em 22 de janeiro de 1878. Seus pais chamavam-se Heinrich e Rosa. Ernst tinha seis irmãos, três mais novos que ele. Uma das irmãs de Ernst, Camilla, cumpre um papel fundamental na história de vida do paciente. Ela era cerca de seis anos mais velha que o irmão e faleceu quando ele tinha apenas três anos.

A queixa do Homem dos Ratos referia-se a temores obsessivos - como o medo da morte do seu pai e da dama venerada2 - e a impulsos suicidas, como o de cortar a própria garganta com uma navalha (Freud, 1909/2013, p. 17; 1974, p. 31). Desde a infância, o paciente afirmava ter medo de que, se ele pensasse em mulheres nuas, seu pai morreria (Freud, 1909/2013, p. 21). Nos últimos quatro anos, antes de procurar Freud, a neurose havia se intensificado. Antes de dar início à análise, o paciente precisou consultar a sua mãe. Ela era a detentora da herança do marido, da qual o Homem dos Ratos não quis ter sua parte. Portanto, foi ela quem custeou a análise (Freud, 1974, p. 33 e p. 195).

O paciente relata a Freud três memórias interconectadas, que também seriam suas recordações mais antigas e que consistiam, primeiramente, nele vendo a irmã sendo levada para a cama; em seguida, ele pergunta onde estava a irmã e encontra o pai chorando; por fim, vê o pai inclinado sobre a mãe, que chorava (Freud, 1974, p. 103 e p. 105). Esse é um dado extremamente relevante da história do paciente, considerando não apenas como ele reagiu à perda precoce da irmã, mas também que seus pais estavam enlutados durante sua infância. Também sabemos que foi com Camilla que Ernst provavelmente primeiro tenha constatado a diferença entre os sexos (Freud, 1974, p. 135).

A transferência do Homem dos Ratos é explicitada por Freud: "se afastava de minha proximidade por medo de que eu o surrasse. Quando ficava sentado, portava-se como alguém que, desesperadamente amedrontado, busca proteger-se de uma punição..." (1909/2013, pp. 70-71). Essa atuação abriu as portas para a recordação do que tinha sido recalcado: Heinrich tinha um gênio irascível e surrava os filhos.

Freud arrisca uma "construção" (1909/2013, p. 66). Ele conjectura que Ernst, quando tinha seis anos, incorreu em uma má conduta sexual relacionada à masturbação e foi sensivelmente castigado pelo pai. Esse evento teria deixado um rancor indelével ao pai. Com base nessa construção, Ernst relata a Freud um evento do qual ele não se lembrava, mas que a mãe havia lhe contado várias vezes, de uma surra que Ernst teria recebido do pai com apenas três ou quatro anos. Freud afirma que essa recordação se harmoniza bem com a sua construção (1974, p. 105). A razão por que apanhou não é muito clara, mas as associações nos conduzem à possibilidade de que ele teria mordido alguém, talvez a babá da casa (Freud, 1909/2013, pp. 67-68).

A reação de Ernst à punição foi esbravejar e xingar o pai, mas, como era muito novo, usou as palavras que conhecia: "Seu lâmpada! Seu lenço! Seu prato!". Em resposta à ira do filho, Heinrich, assustado, para de golpeá-lo e profere: "Esse menino será ou um grande homem ou um grande criminoso!" (Freud, 1909/2013, p. 67), o que leva Freud a relembrar uma terceira possibilidade, esquecida pelo pai: ou será um neurótico. É curioso como esse pai nos dá a impressão de que quase não sobrevive à agressividade do filho, denunciando certa fragilidade - é necessário lembrar que esses são os insultos de um menino de três anos que mal dominava a linguagem.

No manuscrito constatamos que havia alguma relação incestuosa entre Ernst e suas irmãs. Os empregados da casa pensavam que Ernst beijava Olga como se fosse sua amante. Depois do noivado de Olga, Ernst também assegura ao noivo dela de que este não poderia responsabilizá-lo se ela engravidasse nos próximos nove meses, insistindo que não havia tido relações sexuais com ela (Freud, 1974, p. 237 e p. 239). Mais tarde, após a morte do pai, um dia Ernst tem um sonho erótico com a irmã e se sente culpado. Quando constata que foi apenas um sonho, sente euforia, vai ao quarto da irmã e beija seu traseiro por baixo dos lençóis (Freud, 1974, p. 141 e p. 143).

Ernst foi iniciado sexualmente muito cedo. Com 4 ou 5 anos, a governanta da casa, Fräulein Rudolf, deixava Ernst tocar em seus genitais (Freud, 1909/2013, pp. 19-20). Ele também dormia no quarto dos pais. Queixava-se para a mãe de ter ereções e tinha uma espécie de delírio de que seus pais liam seus pensamentos (Freud, 1909/2013, pp. 20-21). Esse delírio, associado às conversas com a mãe sobre ereção, denunciam uma falha na diferenciação entre Ernst e seus pais.

No manuscrito, Freud sugere que talvez esse episódio em que Ernst apanhou do pai tivesse relação com uma das irmãs. Freud constrói uma dúvida em relação ao evento, se a mordida do paciente teria uma natureza sádica ou sexual (Freud, 1974, p. 143), quando podemos nos perguntar se são conflitantes essas duas possibilidades. Mais intrigante é que Olga era muito nova para ter sido objeto da investida de Ernst, o que leva Freud a contemplar a possibilidade de que foi Camilla o objeto desse assalto (Freud, 1974, p. 143) - lembremos que a morte de Camilla ocorreu na mesma época da surra (Mahony, 1986/1991, pp. 44-45).

Tudo isso nos indica algo da natureza das fantasias do paciente, no après-coup, isto é, de como ele acreditava ter responsabilidade pela morte da irmã e de que o castigo do pai seria a punição pelo seu crime - é o que nos diz Freud em uma nota de rodapé do caso clínico: "desejos sexuais referentes à mãe e à irmã, e a morte prematura dessa irmã, eram relacionados ao castigo do pequeno herói nas mãos do pai" (Freud, 1909/2013, p. 69-70).

Ernst relata a Freud o maior susto de sua vida, que teria acontecido dois anos depois da surra. Ele estava brincando com um pássaro empalhado da mãe, correndo com o objeto, quando teve a impressão de que as asas se moviam. Soltou o objeto no chão, muito assustado, com medo de que ele o tivesse ressuscitado. Freud estabelece uma conexão entre o pássaro que se move e o movimento da mão durante a masturbação (1974, p. 225). Ele entende que esse evento foi aterrorizador porque o paciente havia estabelecido uma associação entre a masturbação e a morte da irmã. Ernst acreditava, portanto, que tivesse o poder tanto para matar - pois teria sido responsável pela morte da irmã - quanto para ressuscitar objetos mortos.

Com oito ou nove anos, o paciente escuta, junto com Robert - o irmão um ano e meio mais novo, também mais forte, bonito e querido (segundo Ernst) -, uma conversa entre as empregadas domésticas, dizendo que com Robert dava para fazer, mas Ernst era muito sem jeito e falharia. O paciente diz que não compreendeu muito bem, mas começou a chorar (Freud, 1909/2013, p. 20).

O paciente também relata a Freud, logo no começo de seus encontros, a "primeira comoção de sua vida" (Freud, 1909/2013, p. 19). Ernst tinha um amigo de dezenove anos, quando ele tinha catorze ou quinze anos, que elevava extraordinariamente sua autoestima, fazendo-o se sentir um gênio. Mais para frente, contudo, mudou sua postura, tratando-o como um imbecil. Por fim, ele notou que o jovem apenas estava interessado em uma de suas irmãs e, por isso, estabelecera uma relação com Ernst, para ter acesso à sua casa. O Homem dos Ratos oscilava, dessa maneira, de uma onipotência absoluta para uma queda profunda de sua autoestima.

Aos 11 anos, o paciente relata que a mãe o salvou do que seria a punição mais severa. Heinrich utilizava palavras vulgares, por exemplo, "cu" e "cagar". A mãe ficava horrorizada com o comportamento do marido e decidiu punir o filho, dando-lhe um banho dos pés à cabeça, já que ele tinha começado a imitar o pai. Como resposta, Ernst pergunta à mãe se ela não lavaria seu cu. Segundo o paciente, sua mãe o salvou da surra (Freud, 1974, p. 163).

A mãe caracterizava o marido como um "tipo vulgar" porque, dentre as suas grosserias, não tinha escrúpulos de soltar seus gases intestinais (Freud, 1974, p. 179). Ela repreendia o filho pela identificação com o pai e, ao mesmo tempo, impedia que o pai aplicasse castigos no filho.

Na mesma idade em que Ernst conhece e se apaixona por Gisela, também ocorre o suicídio de uma costureira, com quem ele havia tido relações sexuais. Ela se suicidou após Ernst recusar dizer que a amava. Ele acreditava que fosse responsável pela sua morte (Freud, 1974, p. 201). Episódios como este atestam sua onipotência mas, além disso, estabelecem um entrelaçamento entre fantasias sexuais e fantasias relativas à morte.

Em 20 de julho de 1899, Heinrich morre. Ernst estava dormindo quando o pai morreu e recriminou-se por não ter podido socorrê-lo (Freud, 1909/2013, p. 34). Sente-se um criminoso.

Após a morte do pai, Ernst volta a se masturbar (Freud, 1909/2013, p. 65). Anteriormente, havia associado a masturbação com a possibilidade de causar a morte de alguém, talvez a morte do pai; seus sintomas reiteravam o desejo edípico de que o pai morresse.

A origem dessa ameaça provavelmente remonte à morte de Camilla (Freud, 1974, p. 199). Ernst tinha entrado na fase fálica e descoberto a masturbação quando sua irmã faleceu. Portanto, forma-se uma fantasia que vincula a morte da irmã com a descoberta do prazer genital.

Ainda no ano da morte do pai, Ernst se alista para o Exército. Gisela também passa por uma ovariectomia bilateral, o que a impede de ter filhos. A cirurgia levou Ernst a hesitar casar-se com Gisela, uma vez que queria ter filhos (Freud, 1909/2013, p. 78).

No ano seguinte, Ernst pede Gisela em casamento, mas ela não aceita. Veremos, então, um conglomerado de sintomas associados com o pai e com a dama venerada.

Ernst estudava à noite, esperando que o pai aparecesse à porta e o visse (Freud, 1909/2013, p. 66). Por muito tempo, ele se recusava a admitir a morte do pai; por exemplo, quando ouvia uma piada, sempre pensava em contá-la ao pai (Freud, 1909/2013, p. 34). Além disso, enquanto esperava Heinrich aparecer à sua porta, Ernst o desafiava - Ernst se masturbava e colocava um espelho entre as pernas, para observar sua ereção. Tinha um testículo retraído (Freud, 1974, p. 187) e gozava ao ver sua potência sexual no espelho, como uma compensação ao testículo (Freud, 1974, p. 207 e p. 209).

Ernst também passa a se sentir enciumado com relação à Gisela. Primeiro porque um tio dela - Richard - a visita. Sabe-se que o apelido de Richard em inglês é Dick. Ernst, então, começa a se achar muito "gordo" (dick, em alemão):

Ele começou a levantar-se da mesa antes do pudim, correndo pela rua sem chapéu, no sol de agosto, e subindo a montanha em passo rápido, até que tinha que parar, coberto de suor. A intenção de suicídio por trás dessa mania de emagrecer apareceu abertamente uma vez, quando, à beira de uma escarpa, surgiu o imperativo de que pulasse, o que certamente acarretaria a morte. (Freud, 1909/2013, p. 49)

A autopunição era uma maneira de atacar o tio de Gisela, com quem Ernst rivalizava. Em termos dos destinos possíveis da pulsão, corresponde ao retorno sobre si (Freud, 1915/2010b), já que o sadismo direcionado ao tio retornava a Ernst na forma de masoquismo. A tentativa de suicídio reaparece quando Gisela viaja para cuidar da avó que havia adoecido. Ernst pensa em pegar uma navalha de barbear e cortar a própria garganta quando, de repente, tem outro pensamento, que é revelador: "você deve ir lá e matar a velha!" (Freud, 1909/2013, p. 48).

No ano seguinte, ocorre um episódio famoso da história do Homem dos Ratos, uma vez que ilustra a ambivalência do paciente diante de Gisela. Ela iria para Unterach, e Ernst, no caminho em que ela passaria com a carruagem, tira uma pedra que ele temia que pudesse levar a um acidente. Em seguida, ele constata que aquele pensamento era absurdo e coloca a pedra de volta na estrada (Freud, 1909/2013, pp. 50-51; 1974, p. 219). Ademais, as atitudes em relação a Gisela estavam dissociadas:

Em nosso apaixonado há uma luta entre o amor e o ódio que dizem respeito à mesma pessoa, e essa luta é representada plasticamente no ato obsessivo, também simbolicamente significativo, de tirar a pedra do caminho que ela irá percorrer e depois desfazer esse ato de amor, colocando a pedra novamente onde estava, para que o seu veículo nela esbarre e ela se machuque. (Freud, 1909/2013, p. 52)

O medo do Homem dos Ratos, de que Gisela se acidentasse, deve ser vinculado ao desejo, ou seja, a razão pela qual temia que ela se acidentasse era produto de seu desejo de que isso acontecesse. Ele temia que seu próprio desejo se concretizasse porque, como vimos, tinha convicção de sua própria onipotência.

O predomínio do ódio sobre o amor se manifesta na insistência em deixar a pedra no caminho da carruagem. O pensamento de que a ideia do acidente fosse improvável e por isso ele deveria deixar a pedra na estrada foi uma racionalização, uma premissa para garantir a manutenção de uma fantasia sádica, de que Gisela poderia se acidentar naquela estrada.

Em 1905, a mãe de Ernst faz planos de casamento para o filho. Gisela era simples, e tanto a mãe como o pai a viam como pobre e doentia; no fundo, esperavam que o filho se casasse com uma outra prima, que era rica. Freud percebe a presença de uma repetição de cenas da história do pai na vida do filho (1909/2013, p. 60).

Lacan frisa esse aspecto da história do Homem dos Ratos (1952/2008). Heinrich também fora apaixonado por uma moça simples e teve de escolher entre ela e uma moça rica, escolhendo por fim a segunda - a mãe de Ernst, Rosa. Outro aspecto da identificação com o pai foi que Heinrich também tinha uma dívida de jogo de seu tempo no Exército, o que fazia dele um Spielratte (um rato de jogo, literalmente). Ele nunca havia conseguido quitar a dívida, então é interessante que, quando Ernst esteve no Exército, reviveu a trama do endividamento, como se a houvesse herdado do pai.

Em 1907, período no qual Ernst servia o Exército, ocorrem manobras militares na Galícia, durante as quais o Homem dos Ratos escuta sobre a existência de uma tortura que lhe causa uma profunda impressão, contada pelo capitão Nemeczek, um homem que apreciava crueldades.

A tortura provavelmente proviesse de um best-seller erótico da época, O jardim das torturas, de Octave Mirbeau (Mahony, 1986/1991, p. 29). Consistia em amarrar um pote ao traseiro do condenado, junto com um rato, que penetraria no seu ânus. A descrição da tortura, por parte do paciente, leva Freud ao seu famoso comentário: "Nos momentos mais importantes da narrativa percebe-se nele uma expressão facial muito peculiar, que posso entender apenas como de horror ante um prazer seu que ele próprio desconhecia" (Freud, 1909/2013, pp. 26-27, grifo do autor).

Na mesma época das manobras militares, o paciente também perdeu seu pince-nez e precisou encomendar um novo. Era necessário que ele pagasse um valor ao correio para que pudesse receber a encomenda. Contudo, uma série de contratempos ocorreu no processo de pagamento e de entrega.

Uma moça que trabalhava na agência de correio, a agência responsável pela entrega do pince-nez, paga a encomenda de Ernst e ainda profere palavras gentis sobre ele. O paciente, contudo, recalca esse fato e cria uma história extremamente confusa, que só faz sentido depois se decifrada.

A história começa com o capitão acima mencionado dizendo ao Homem dos Ratos que este devia 3,80 florins ao primeiro-tenente A. Ernst, então, faz o juramento de que pagaria ao primeiro-tenente A. Este, todavia, lhe informa que quem havia pago a dívida, na verdade, era o primeiro-tenente B. Contudo, desde o princípio, Ernst sabia que quem havia pago a dívida de fato era a moça do correio, mas então por que realizou o juramento de pagar ao primeiro-tenente A?

Freud interpreta o sentido do sintoma por meio do complexo paterno do paciente. Quando o capitão informou ao paciente que ele devia o dinheiro ao primeiro-tenente A, o Homem dos Ratos teve o pensamento obsessivo: "'Sim, pagarei o dinheiro a A. quando meu pai e minha amada tiverem filhos', ou: 'É tão certo que lhe pagarei o dinheiro quanto meu pai e ela poderem ter filhos'" (Freud, 1909/2013, p. 80).

Com o pai morto e a dama venerada estéril, o pensamento obsessivo do paciente pode ser considerado um desaforo, expressando sua ambivalência em relação ao pai e à dama, mas também desafiando o capitão cruel. O juramento, em compensação, pode ser entendido como uma forma de reparar a sua agressão, como se ficasse assustado com o seu próprio ódio.

Freud destaca que há uma identificação inconsciente com o pai, pois o pai, entre a mulher rica e a mulher amada, optou pela primeira, assim como tinha, com a esposa, planos de casamento para o filho que correspondiam a uma continuação da tradição familiar, isto é, optar pelo dinheiro, não pelo amor.

De um lado, há a funcionária do correio, aquela que quitou a sua dívida, além de ter dedicado palavras carinhosas a Ernst; no mesmo vilarejo da agência postal também residia uma bela moça, filha do estalajadeiro e que se mostrava amável com Ernst. Freud interpreta que o Homem dos Ratos desloca o conflito da escolha entre a garota rica e a pobre para os primeiros-tenentes A e B (Freud, 1909/2013, pp. 72-73).

Segundo Freud há um "conflito entre a persistente vontade do pai e sua própria inclinação amorosa" (Freud, 1909/2013, p. 62). Ademais, Heinrich foi um Spielratte (rato de jogo), então há um jogo com os significantes Raten (prestações), Ratten (ratos) e heiraten (casar), que tornam a tortura relatada pelo capitão significativa para o paciente de Freud.

Sabemos que o pai do Homem dos Ratos tinha um gênio irascível e até perdia as estribeiras com os filhos. Casou-se não por amor, mas por interesse. É coerente que tanto Freud como Lacan tenham dado uma ênfase muito grande à identificação com o pai e à dívida não liquidada. Essa questão é, evidentemente, fundamental. Contudo, o que sabemos, afinal, da mãe do Homem dos Ratos?

Em uma importante passagem do manuscrito, encontramos um comentário de Freud sobre a identificação primária do Homem dos Ratos: "Se identifica com sua mãe em seu comportamento e na transferência dentro da cura" (Freud, 1974, p. 195).

Freud prossegue com a afirmação de que seu paciente confirma uma construção sua, demonstrando que, para referir-se à família de sua prima, emprega palavras idênticas às usadas pela mãe. Conclui: "É provável que na sua crítica ao pai se identifique também com a mãe e assim prossiga interiormente o conflito entre seus pais" (Freud, 1974, p. 195).

Considerando que a mãe do Homem dos Ratos desvalorizava o marido, entendemos por que Ernst passa a fazer o mesmo, debochando da simplicidade do pai. Um sonho antigo do Homem dos Ratos, por exemplo, estabeleceu uma correspondência direta entre as suas razões e as da mãe para odiar o pai (Freud, 1974, p. 195 e p. 197). Podemos dizer que a desvalorização do pai compunha a identificação com o pai, isto é, a identificação de Ernst com seu pai era carregada de ambivalência.

Sobre a mãe do Homem dos Ratos, Mahony faz observações relevantes:

mal aparece como uma mãe pré-edípica ou edípica que funcionasse como um fator estabilizador consistente de desenvolvimento, ou alguém que mantivesse um diálogo aberto com seu filho e que promovesse e consolidasse, constantemente, o funcionamento do seu ego. Ela não foi adequada com relação a ajudar o seu filho a lidar com suas angústias não resolvidas, frustrações e raivas.

(Mahony, 1986/1991, p. 51)

Mezan, por sua vez, diz que a mãe "autoriza, por assim dizer, a análise, e a sombra dela paira sobre essas páginas. Curiosamente, ela foi expurgada na sua quase totalidade do caso publicado; lendo-o, mal se imaginaria que esse paciente teve uma mãe" (1998, p. 149).

As relações entre os familiares do Homem dos Ratos indicam uma falha na interdição do incesto. Já que a figura paterna, no discurso da mãe, ocupa um lugar marginal, a desvalorização da palavra do pai pela mãe leva a uma falha da função paterna.

A própria mãe protege Ernst da punição mais severa de todas. Quando Rosa lavou o filho dos pés à cabeça - o que não deixa de ter uma conotação sedutora e invasiva -, pretendia punir o filho, que havia começado a imitar o pai nos gestos grosseiros.

Além disso, o Homem dos Ratos descreve sua relação com o pai como a de "dois ótimos amigos". Freud diz, sobre o pai do Homem dos Ratos: "Quando os filhos cresceram, diferenciou-se de outros pais por não querer se arvorar em autoridade indiscutível, mas por revelar aos filhos, com benévola franqueza, os pequenos fracassos e infortúnios de sua vida" (Freud, 1909/2013, p. 62). A história clínica sugere, portanto, que Heinrich tinha dificuldade de ocupar o lugar paterno, além de ser desvalorizado pela esposa diante dos filhos.

No mesmo ano das manobras militares na Galícia, em 1 de outubro de 1907, Ernst dá início à análise com Freud, que durará pouco mais de onze meses - de acordo com Mahony (1986/1991), quatro meses.

 

 

O ódio é precursor do amor

A afirmação de que o ódio precede o amor provém de um artigo de 1913, chamado "A predisposição à neurose obsessiva: contribuição ao problema da escolha da neurose". Nele, Freud escreve:

deve ser incluída na predisposição à neurose obsessiva uma aceleração temporal do desenvolvimento do Eu ante o desenvolvimento libidinal. Tal antecipação requereria a escolha de objeto por influência das pulsões do Eu, enquanto a função sexual ainda não atingiu sua última configuração, e assim deixaria uma fixação no estágio da ordem sexual pré-genital. Levando em conta que os neuróticos obsessivos têm que desenvolver uma supermoral para defender o seu amor objetal da hostilidade que por trás dele espreita, estaremos inclinados a ver certo grau dessa antecipação do desenvolvimento do Eu como típica da natureza humana, e achar que a aptidão para a gênese da moral baseia-se na circunstância de no desenvolvimento o ódio ser precursor do amor. Este seria talvez o significado de uma frase de Wilhelm Stekel, que na época pareceu-me incompreensível, segundo a qual o ódio, e não o amor, é a relação emocional primária entre os seres humanos. (Freud, 1913/2010a, p. 335-336, grifo nosso)

Como compreender essa passagem? Buscaremos a resposta em "Os instintos e seus destinos" (1915/2010b). Um dos pontos fundamentais deste texto é que nele, pela primeira vez, Freud defende o masoquismo primário, supostamente introduzido com a pulsão de morte, em 1920. Contudo, em uma manifestação velada, um masoquismo primordial já era cogitado no artigo de 1915. Apesar de Freud escrever que o masoquismo é um sadismo que se volta contra a própria pessoa, ele também escreve:

Mas a psicanálise parece mostrar que infligir dores não se relaciona com as originais ações da pulsão dotadas de objetivo. A criança sádica não leva em conta a imposição de dor e não tem esse propósito. Uma vez efetuada a transformação em masoquismo, porém, as dores se prestam muito bem para uma meta masoquista passiva, pois temos todas as razões para supor que também as sensações dolorosas, como outras sensações de desprazer, invadem a excitação sexual e produzem um estado prazeroso, em virtude do qual se admite também o desprazer da dor. Quando sentir dores se torna uma meta masoquista, pode surgir também, retroativamente, a meta sádica de infligir dores, que o próprio indivíduo, ao suscitá-la em outros, frui masoquistamente na identificação com o objeto sofredor. (Freud, 1915/2010b, p. 66-67, grifo nosso)

Freud defende um masoquismo primário nessa passagem, uma vez que o sadismo é o resultado de uma identificação com o objeto, ou seja, o prazer sádico é resultado da identificação masoquista com o sofrimento do objeto.

Estamos no terreno da reciprocidade imaginária, como Lacan o chamou, significando que a "identificação com o objeto está no fundo de toda relação com este" (Lacan, 1956-1957/1995, pp. 25-26).

A outra questão que precisamos abordar é por que o ódio é primordial ao amor. Freud demonstrará que essa tese está em plena conformidade com o princípio do prazer. É o que ele descreve nesta passagem:

Na medida em que é autoerótico, o Eu não precisa do mundo exterior, mas recebe dele objetos, devido às experiências das pulsões de autoconservação do Eu e, portanto, não pode deixar de sentir estímulos pulsionais internos como desprazerosos por algum tempo. Sob o domínio do princípio do prazer se efetua nele mais uma evolução. Ele acolhe em seu Eu os objetos oferecidos, na medida em que são fontes de prazer, introjeta-os (conforme a expressão de Ferenczi) e por outro lado expele de si o que se torna, em seu próprio interior, motivo de desprazer. ... Logo, há uma mudança do Eu-realidade inicial, que distinguiu interior e exterior conforme um bom critério objetivo, em um purificado Eu-de-prazer, que põe o atributo do prazer acima de qualquer outro. (Freud, 1915/2010b, p. 74-75, grifo do autor)

Em outras palavras, inicialmente, o mundo externo não é investido de interesse, então é indiferente para o sujeito. As experiências de prazer, por sua vez, são introjetadas, o que significa que o Eu coincidirá com elas, razão pela qual se torna um purificado Eu-de-prazer. Freud prossegue: "O exterior, o objeto, o odiado seriam sempre idênticos no início" (1915/2010b, p. 76).

Por que, seguido à indiferença, há o ódio ao mundo externo? Novamente, a resposta está no princípio do prazer. O Eu introjetou tudo o que era prazeroso e projetou o que era desprazeroso, de maneira que o mundo externo se tornou o recipiente de todas as projeções de experiências desprazerosas.

Por conseguinte, não parece forçoso concluir que para a teoria freudiana a primeira reação à alteridade é sempre o ódio: "Enquanto relação com o objeto, o ódio é mais antigo que o amor, surge da primordial rejeição do mundo externo dispensador de estímulos, por parte do Eu narcísico" (Freud, 1915/2010b, p. 79).

Agora, estamos em condições para compreender os impulsos suicidas do Homem dos Ratos. Nas duas situações relatadas por Freud, temos uma explicação em comum, que é o ciúme do Homem dos Ratos, porque sua dama, Gisela, viajaria para cuidar da avó doente, no primeiro incidente, enquanto no segundo o primo de Gisela, Richard, a acompanharia em uma estação de férias. Por meio de uma identificação com a avó e com o primo de Gisela, as autopunições eram também agressões aos objetos com os quais o Eu estava indiferenciado.

A identificação com Richard se dá por via do significante Dick, que é o apelido de Richard. Dick também significa "gordo" em alemão. É por essa razão que a mania de emagrecer do Homem dos Ratos, interpretada por Freud como um impulso suicida, era, ao mesmo tempo, um impulso homicida. Quando Ernst pensa em cortar a própria garganta, ocorre a ele um desejo de matar a velha.

Por que o impulso homicida do Homem dos Ratos se manifesta como impulso suicida? Em "Os instintos e seus destinos", Freud responde que a pulsão pode voltar-se contra a própria pessoa. Isso é o que transcorre na neurose obsessiva. Nela, o sadismo se volta contra o sujeito, manifestando-se como masoquismo.

Freud não explica, de maneira explícita, por que a pulsão se volta contra a própria pessoa na neurose obsessiva, mas agora podemos responder a essa pergunta: a pulsão volta-se contra a própria pessoa porque existe uma indiferenciação entre sujeito e objeto.

Ora, nós vimos que existe um ódio primordial que se manifesta como ódio narcísico. Mas, nesta situação, existe uma indiferenciação com o objeto, razão pela qual a agressão ao outro se manifesta como agressão a si; então, por trás do impulso suicida, está oculto um impulso homicida. Em Luto e melancolia (1917 [1915]/2010c), Freud mantém essa hipótese, pois explica as autorrecriminações como, na verdade, recriminações a um objeto.

 

Conclusão

Lacan aponta a relação da agressividade com o imaginário. Ele lembra que a intenção agressiva frequentemente surgiria como "ação formadora de um indivíduo sobre as pessoas de sua dependência" (Lacan, 1948/1998, p. 107). Haveria, portanto, uma relação entre a "ambivalência estrutural" e a constituição do Eu: "Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu" (Lacan, 1948/1998, p. 116, grifo do autor).

Por via da tradição hegeliana, Lacan pensa como seria "a identificação primária que estrutura o sujeito como rival de si mesmo", ou seja, poderíamos compreender "a noção de agressividade como tensão correlata à estrutura narcísica no devir do sujeito" (Lacan, 1948/1998, p. 119).

Para o autor, haveria uma oposição entre a identificação narcísica, na qual perceberíamos a presença das relações parciais, e a identificação edipiana, que "é aquela através da qual o sujeito transcende a agressividade constitutiva da primeira individuação subjetiva" (Lacan, 1948/1998, p. 120).

Poderíamos, dessa maneira, localizar no fracasso da identificação edípica - da possibilidade simbólica a favor da imaginária - uma série de sintomas neuróticos ligados a uma agressividade primordial.

A paranoia como paradigma do funcionamento primário do aparelho psíquico não se encontra presente apenas em Freud, na ideia de que o ódio é precursor do amor, ou em Klein, com a descrição das angústias persecutórias, mas também no início da obra de Lacan, que, a partir de 1945, fez "do imaginário a dimensão própria da experiência analítica" (Miller, 1988, p. 17).

Miller prossegue:

a agressividade ambivalente do homem com relação a seu semelhante, que é sempre aquele que o suplanta, sempre aquele que está em seu lugar, justamente porque é um semelhante, quer dizer, porque é outro, sendo ao mesmo tempo ele mesmo sobre o modelo dessa imagem primeira. Essa teoria explica também a relação fundamentalmente paranoica do homem com seu objeto (Miller, 1988, p. 20).

Com essa reviravolta na metapsicologia freudiana, que situou o ódio como a reação mais primária à alteridade, abre-se a possibilidade de que a histeria deixe de ser a psicopatologia paradigmática.

A partir de então, a paranoia passa a ser o âmago da subjetividade, pois se a diferenciação com o objeto se dá por meio do ódio narcísico, então haverá sempre persecutoriedade na relação com o objeto primário.

 

Referências

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Recebido em: 29/4/2019
Aceito em: 1/6/2019

 

 

1 Este artigo é o resultado de uma pesquisa financiada com bolsa de mestrado do CNPq (São Paulo, SP). Os autores agradecem o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
2 Mezan chama a atenção para esse termo, "venerar" (verehren) (1998, p. 135). Afirma que significa prestar honrarias a alguém, mas mais que isso, é o que se faz com as imagens de santos. Verehrter, por sua vez, é uma forma respeitosa de começar uma carta, que seria equivalente ao nosso "prezado" ou ao dear do inglês. Portanto, o termo comporta a ambiguidade: reverência absoluta e distância ao mesmo tempo.

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