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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

THANATOS

 

Mente fascista

 

Fascist mind

 

Mente fascista

 

L'esprit fasciste

 

 

Amnéris Maroni

Professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), psicanalista e antropóloga. São Paulo. amneris@plugnet.com.br

 

 


RESUMO

O artigo discute o estado de mente fascista a partir da contribuição de Christopher Bollas. Dialoga também com filósofos que se interessaram pelo tema: Hannah Arendt e Giorgio Agamben. A mente fascista não é parlamentar (com vários pontos de vista em confronto, em diálogo), mas imperial: com um único ponto de vista fixo. Torna-se inumana. Para chegar a isso os fascistas desencadeiam uma guerra permanente primeiro contra si - por meio de múltiplos assassinatos contra as partes de seu self amoroso, reparador, compassivo - e depois contra os outros, eleitos para esse fim. Para eliminar toda a oposição interna, a mente fascista conta com a ideologia, crença, convicção - antídotos da dúvida, da hesitação -, convergindo para um campo de certezas. Projeções de partes do seu self serão lançadas para o outro: partes más, preconceituosas, desdenhadoras. Também se valem da introjeção extrativa, como defesa letal: roubando do outro - o inimigo eleito - partes de seu self.

Palavras-chave: mente fascista, identificação projetiva, introjeção extrativa, campo de concentração, mortos-vivos, inumano


ABSTRACT

The article discusses the state of the fascist mind, taking into account Christopher Bollas' contribution. It also establishes a fruitful dialogue with other philosophers who are interested in the subject: Hannah Arendt and Giorgio Agamben. The fascist mind is not parliamentary (with several conflicting points of view, in dialogue) but imperial: with a single fixed viewpoint. It becomes inhuman. In order to do that, fascists unleash an ongoing war, first against themselves - through multiple murderous actions against the parts of their loving, repairing, compassionate self - and, then, against the "others" chosen for that end. To eliminate all internal opposition, the fascist mind relies on ideology, belief, conviction - antidotes to doubt, hesitation - converging to a field of certainties. Projections of parts of her self will be thrown at the other: evil, biased, scornful parts. They also use extractive introjection, as a lethal defense: stealing from the other - the elect enemy - parts of their selves.

Keywords: fascist mind, projective identification, extractive introjection, concentration camp, undead, inhuman


RESUMEN

El artículo discute el estado de la mente fascista a partir de la contribución de Christopher Bollas. Dialoga también con otros filósofos que se interesaron por el tema: Hannah Arendt y Giorgio Agamben. La mente fascista no es parlamentaria (con varios puntos de vista en confrontación, en diálogo) pero si imperial: con un único punto de vista fijo. Se convierte en inhumana. Para llegar a eso los fascistas desencadenan una guerra permanente primero contra sí mismos - a través de múltiples asesinatos contra las partes de su propio self amoroso, reparador, compasivo - y luego contra los otros, elegidos para ese fin. Para eliminar toda la oposición interna, la mente fascista cuenta con la ideología, creencia, convicción - antídotos de la duda, de la vacilación - convergiendo hacia un campo de certezas. Las proyecciones de partes de su self serán lanzadas para el otro: partes malas, preconcebidas, despreciadoras. Se valen también de la introyección extractiva, como defensa letal: robando del otro - el enemigo elegido - partes de su self.

Palabras clave: mente fascista, identificación proyectiva, introyección extractiva, campo de concentración, muertos vivientes, inhumano


RÉSUMÉ

L'article discute l'état d'esprit fasciste à partir de la contribution de Christopher Bollas. Il dialogue également avec d'autres philosophes qui s'intéressent à cette thématique: Hannah Arendt et Giorgio Agamben. L'esprit fasciste n'est pas parlementaire (avec plusieurs points de vue en confrontation, en dialogue), mais impérial (avec un seul point de vue fixe). Il devient ainsi inhumain. Pour y arriver, les fascistes développent une guerre permanente, d'abord contre eux-mêmes - par des multiples assassinats contre de parts de leur self amoureux, réparateur, compatissant - et puis contre les autres, élus pour cette fin. Pour supprimer toute opposition interne, l'esprit fasciste compte sur l'idéologie, la croyance, la conviction - antidotes du doute, de l'hésitation - de façon à converger vers un champ de certitudes. Projections de parts de son self seront lancées vers l'autre: des parts méchantes, pleines de préjugés, méprisantes. Il s'utilise également de l'introjection extractive, en tant que défense létale: il vole de l'autre - l'ennemi élu - des parts de son self.

Mots-clés: esprit fasciste, identification projective, introjection extractive, camps de concentration, morts-vivants, inhumain


 

 

Introdução

Vamos partir da pergunta implícita de Márcia Tiburi - "Como conversar com um fascista?" (Tiburi, 2015) -, discordar da autora e responder essa mesma questão por meio da psicanálise de Christopher Bollas, em "O estado da mente fascista" (1998).

A pergunta de Tiburi, reverberando Adorno em A personalidade autoritária, foi uma espécie de isca lançada de maneira inteligente, no momento certo, pois estamos sendo atravessados por variadas manifestações de ódio à política e do retorno de preconceitos contra as mulheres, a liberdade sexual, os gays, os negros, os nordestinos, contra tudo que é diferente e, sim, temos de admitir que esse ódio à diferença é tipicamente fascista.

A proposta de Tiburi, sedutora, instigante e sobretudo irônica, apela para o diálogo com os fascistas, muito embora a autora saiba que isso é impossível! O fascista vive da recusa da alteridade, da recusa da diferença e, todavia, Tiburi sugere ao longo do seu livro que os fascistas precisam confrontar-se com o outro, com a diferença.

Na chave psicanalítica diremos não, não é possível conversar com um fascista, pois a mente fascista é incapaz de manter um diálogo - consigo e com os outros! Não podemos sustentar, na psicanálise, a ironia em relação aos fascistas. Não há diálogo possível com eles, isolá-los é a melhor política. Fortalecer os vínculos entre os não fascistas, os democratas, é a saída. Isso ficará claro ao longo do presente artigo.

Hannah Arendt (1983) causou uma verdadeira comoção filosófica quando apostou na banalidade do mal. Fascista não pensa! Eichmann não pensava - não tinha a capacidade de se deslocar até o outro e examinar seus pontos de vista, não dialogava e trazia à tona clichês repetidos, fórmulas deslocadas típicas do vazio de pensamento no qual estava mergulhado. Em uma palavra, para Arendt (1983), não é possível conversar com um fascista. O vazio do pensamento da mente fascista não suporta, claro está, o diálogo, a conversa.

Como conversar com alguém que não construiu em si alteridade, não se des-loca para o outro, para o ponto de vista do outro, está fechado em si com muito ódio e pronto a viver uma "paranoia às avessas": já que é o paranoico, supõe-se, quem se sente perseguido. Ora, no caso do fascista, é ele quem persegue suas potenciais vítimas, e persegue-as implacavelmente porque quer "algo" delas, no limite, a vida - pode-se, porém, roubar muitos bens psíquicos de uma vítima antes de matá-la!

Aí está uma chave, a meu ver, muito importante das práticas fascistas, e vou discuti-la dando a palavra a Primo Levi, em É isto um homem? (1947/1988), e então às vítimas do fascismo.

Levi (1919-1987) formado aos 24 anos em Química, foi deportado, em 1944, para o campo de extermínio de Auschwitz. Lá viveu como trabalhador comum por onze meses e escreveu um livro de memórias sobre o cotidiano no campo e sobre as relações entre os prisioneiros, bem como dos nazistas com os prisioneiros.

Definitivamente, são as vítimas quem detêm o segredo da mente fascista porque, na relação que estabelecem com os nazistas, elas compreendem afinal qual é a qualidade desse horror que a modernidade abriu como possibilidade aterradora. Um dia antes da libertação dos campos pelo Exército russo em 1945, 20 mil pessoas sumiram sem deixar rastros. Uma das razões para a compreensão das palavras de Adorno: depois de Auschwitz não há mais poesia.

 

A mente fascista na obra de Christopher Bollas

Como é a mente fascista para a psicanálise? Quais defesas a constituem e, particularmente, como se dá, nessa mente, o processo que a torna desumana? O Estado Fascista foi um movimento especial na história do mundo, com aspectos singulares e datado. Mas, como diz Bollas, fascista é agora uma metáfora no nosso mundo para tipos especiais de pessoas, e é possível reconhecer nelas um determinado perfil psíquico.

A tese de Bollas, implícita mas legível no artigo, é de uma relação especular: os campos de concentração constituem uma metáfora da mente nazista, que não faz senão reproduzir-se nos campos de concentração. Todavia, o acesso a essa compreensão está na relação nazista-vítima dos campos, mediante defesas especiais, as identificações projetivas e mortíferas da mente fascista, a introjeção extrativa (Bollas, 2015).

Cito Bollas:

Existe uma visão agora bastante comum em psicanálise de que o sujeito é composto de várias partes de self ... É quase como uma organização parlamentar, na qual os instintos, lembranças, necessidades, ansiedades e respostas aos objetos buscassem representação na psyche para seu processamento mental. (Bollas, 1998, p. 158)

Forças em confronto, em disputa na mente - empatia, perdão, reparação, inveja, agressão, desejo - nos obrigam a uma série infindável de soluções de compromisso entre as contraditórias partes! Eis a função parlamentar da psique.

O contínuo envolvimento com pontos de vista opostos, e os conflitos que isso gera, são o que faz de uma mente um parlamento avesso à violência fascista. A mente fascista deixa de ser parlamentar, e então humana, com uma pluralidade de pontos de vista em confronto e em diálogo, para tornar-se imperial: com um único ponto de vista fixo. Inumana.

Para chegar a isso os fascistas precisam desencadear uma guerra permanente primeiro contra si - por meio de múltiplos assassinatos contra partes do seu self amoroso, reparador, compassivo - e depois contra os outros, eleitos para esse fim. Livrar-se da oposição - interna e externa - requer violência permanente.

Cada um de nós pode, sim, desenvolver um estado de mente fascista (Bollas, 1998, p. 158). Um impulso especialmente intenso (inveja, cobiça), uma força ou ansiedade, tudo isso junto, podem desfazer a função parlamentar da psique e evoluir para uma ordem interna menos representativa. Não raro, esse processo vem acompanhado de projeções de partes diferentes do self para fora: objetos externos são eleitos para esse fim. Os nazistas não só projetam, mas também extraem bens psíquicos de suas vítimas!

Outras operações intervêm nesse processo maior de desfazimento do parlamento da psique, tornando a mente inumana. A distorção é uma das práticas corriqueiras de uma possível mudança para um estado de mente fascista. A visão do oponente é distorcida, lida como menos inteligente do que se supunha, descontextualizada, denegrida, ridicularizada. Ridicularizado é o próprio indivíduo que sustenta uma visão oposta, e seu caráter é desacreditado. O indivíduo deixa de ser João e/ou José e torna-se "o avarento", "o macaco", a "puta", o "baiano". Torna-se Nine, como Sérgio Moro passou a chamar Luiz Inácio Lula da Silva, que perdeu um dedo trabalhando em uma máquina quando metalúrgico, denegrindo-o como trabalhador em ato de violência simbólica ímpar.

O indivíduo oponente também pode ser transferido para um coletivo, perdendo a identidade: "Ah, mas é claro que ele é judeu", "É claro que é freudiana", "É claro que é junguiana". Genocídio intelectual muito comum no nosso cotidiano: é assim que uma mente fascista começa a se insinuar como tal (Bollas, 1998, p. 166).

Apoiando-se em H. Rosenfeld, J. B. Pontalis e Robert J. Lifton, Bollas também discute a presença organizada do narcisismo mortífero, na mente, de gangues poderosas, que agem como se fossem dispostas por um líder que controla os diversos membros para ver se eles se apoiam e agem em uníssono, a fim de que sua obra destrutiva seja mais eficaz (1998, p. 159).

Impossível não comparar essas gangues internas com o que acontecia nos campos de Buchenwald e Dachau - e de Auschwitz. Nos campos de concentração existiam gangues dominadas por clones de Hitler "que se observavam uns aos outros cometendo atrocidades para garantir que ninguém da gangue saltasse fora do ethos do terror" (Bollas, 1998, p. 159).

Não poderia haver oposição interna na operação das gangues dos campos de extermínio; e, claro, o terror se torna total quando fica independente de toda oposição. Assim funcionam as gangues dos SS, mas também é assim que funcionam as "gangues internas" na mente fascista. Não raro uma mente fascista se duplica: bons país de família, bons amigos, amantes da música convivem com partes da mente facínora, torturadora, assassina. Vimos no cinema argentino recentemente O clã, ficção com base na realidade histórica, dirigido por Pablo Trapero (2015), que ilustra essa duplicação: papai Puccio, mamãe Puccio e seus filhos, principalmente Alejandro e Daniel, compõem uma típica família da classe média, amados por todos, simples, trabalhadores, até heroicos no rúgbi, e, todavia, são também torturadores, sequestradores e assassinos. O self se divide em duas metades de maneira tal que um self parcial atua como self completo (Bollas, 1998, p. 159).

Os médicos nazistas contavam com esse recurso, o recurso da duplicação, para exercerem-se nos campos de concentração. Em O clã, todos os membros da família aparecem duplicados, sob a força da duplicação da mente: de um lado, os torturadores; de outro, pais de família amorosos. Selves parciais atuando como selves totais e um adendo aterrador: as vítimas sequestradas e torturadas pelos Puccio habitavam o sótão da casa, metáfora perfeita da mente fascista.

Daí a adesão a uma ideologia, crença, convicção - que mantêm sua certeza por meio da utilização de mecanismos mentais destinados a eliminar toda a oposição - é um passo. Ali não há lugar nem para a dúvida, nem para a incerteza, nem para o autoquestionamento: sinais de fraqueza para quem é guiado por ideologias. Eliminando toda oposição, essa ideologia, certeza ou crença torna-se total; e, claro, a mente assim constituída não é só política, pode também vestir a roupagem teológica e até psicanalítica.

A mente fascista é então simples e unida por signos políticos, ideológicos. São os signos que doravante preenchem os espaço dantes ocupado pela "polissemia de ordem simbólica" (Bollas, 1998, p. 161).

As palavras deixaram de ligar-se a quaisquer outras palavras, expressando a autêntica liberdade do inconsciente na sua autorrepresentação: deixaram de ser significantes, para usar uma expressão de Lacan, e tornaram-se signos de uma ordem simbólica congelada. A eliminação do simbólico, da polissemia, é um dos assassinatos fundamentais perpetrado por esta ordem, já que o simbólico é a verdadeira subversão da ideologia.

Dessa violência simplificadora - das ideologias que explicam tudo - que não toleram oposição alguma nasce o vazio moral. Neste ponto, faz-se imperioso para a mente fascista encontrar uma vítima para conter esse vazio e, com isso, a mente fascista completa seu ciclo de violência.

O self-nuclear-morto da mente fascista é projetado nas vítimas. Identificadas com o self-morto e com o vazio moral, as vítimas podem ser destruídas, pois a mente fascista conquistou, por meio de cisões, assassinatos internos, projeções, múltiplas negações, o álibi da destruição do outro; a negação das qualidades do outro, pela via da extinção deste, gera na mente fascista uma grandiosidade delirante, com a idealização do processo de aniquilamento - uma idealização da capacidade de destruir o self (Bollas, 1998, p. 164).

A mente fascista se sente contaminada e anseia por um processo de purgação daquilo que a contamina. O estado da mente fascista exalta o ser puro, descontaminado. "Nós podemos encontrar este fenômeno, entretanto, na vida normal, seja ele pronunciado pelos que ousam reivindicar a posição de cristianismo puro, objetividade pura, ciência pura, ou, ousando dizer, análise pura" (Bollas, 1998, p. 163).

Para transformar suas vítimas em espectros ambulantes, os fascistas valem-se, a meu ver, de uma defesa mortífera, a introjeção extrativa, cujo afeto de base é a inveja, extraindo partes do self daqueles que estão sob sua vigilância nos campos de concentração: a solidariedade, a compaixão, a empatia, a reparação, o pensamento, tudo aquilo que desde sempre nos torna humanos. Essa defesa, nos campos, produzem o inumano.

Exatamente por isso os campos estão organizados de uma determinada maneira. Não é possível conversar com um fascista, como sugere Márcia Tiburi, mas é necessário conversar - por meio de livros, de filmes inspirados em histórias verídicas - com vítimas do fascismo, como Primo Levi e outros que deixaram suas preciosas narrativas; é por meio delas, das narrativas, que podemos compreender a relação entre as vítimas e os nazistas, com a consequente produção do inumano. A aposta que faço é que dessa defesa da mente fascista - roubo/introjeção extrativa das partes humanas do self, inclusive roubo do próprio self como caminho das vítimas - emergem os espectros ambulantes, os mortos-vivos, os muçulmanos!

Diz Agamben: "somente agora, quase cinquenta anos depois, ele [o muçulmano] começa a tornar-se plenamente visível, e apenas agora talvez possamos extrair as consequências dessa visibilidade" (Agamben citado por Giacóia, 2013, p. 128).

Ao tornar-se visível, o muçulmano permitiu uma mudança do paradigma do extermínio que orientava a interpretação dos campos de concentração. Não uma substituição de paradigma, mas uma soma, um outro olhar, uma outra perspectiva:

Antes de ser o campo da morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda impensado, no qual além da vida e da morte, o judeu transforma-se em muçulmano e o homem em não homem: não compreenderemos que coisa foi Auschwitz, se não tivermos compreendido primeiramente que coisa é o muçulmano, se não tivermos aprendido a olhar, com ele, a Górgona. (Agamben citado por Giacóia, 2013, p. 128)

 

Primo Levi: o testemunho das vítimas

As vítimas dizem muito da mente de seus carrascos fascistas e revelam esse novo paradigma de interpretação dos campos, mostrando como se produziu neles a figura do morto-vivo, do indiscernível entre o humano e o não humano. Um dos mais tocantes testemunhos continua a ser É isto um homem? (1947/1988), de Primo Levi, o italiano judeu que sobreviveu ao campo de Auschwitz. Esse grande clássico foi publicado em 1947.

A maturidade de Levi é extraordinária, pois, aos 27 anos, quando escreveu esse livro fragmentado de memórias, ele não pretendeu "fazer denúncias" sobre o que aconteceu no campo; antes, é um documento que nos ajuda a compreender aspectos importantes da alma humana. Diz ele no Prefácio: "Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto de imaginação" (Levi, 1947/1988, p. 4).

A introjeção extrativa, a defesa mortífera antes citada, ajuda-nos e muito a elucidar a "produção" dos mortos-vivos nos campos de extermínio. Essa defesa não se confunde, antes, convive com um mecanismo por demais conhecido na psicanálise, que é a identificação projetiva - evacuação e projeção de partes da personalidade no oponente, geralmente as partes más, indigestas.

Introjeção extrativa é mais rara no cotidiano e infinitamente mais letal. Só consigo reconhecê-la na perversão psicopática e, na política, na mente fascista perversa. Pais perversos-psicopatas não hesitam em roubar partes do self de seus filhos, atrelando-os definitivamente a si, principalmente quando roubam o caminho, eu diria, o destino de seus filhos.

Vimos isso no filme O clã, em que papai e mamãe Puccio roubavam de seus filhos o verdadeiro self, no que dizia respeito a um destino, a um caminho na vida. Alejandro e Daniel nos mostraram bem, nas suas vidas e na película de Pablo Trapero, o que significa ficar sem caminhos, ter selves roubados! Uma vez roubadas, essas partes do self dificilmente serão recuperadas pelas vítimas; o processo é irreversível.

Depois de ter lido inúmeras vezes o livro citado de Levi, fui chegando à conclusão do tipo de defesa que a mente fascista ali operou. No livro, estão presentes descrições sobre o dia a dia no campo, sobre a crueldade dos alemães e dos prisioneiros não judeus em relação aos judeus, sobre a economia que ali se organizou.

Levi (1947/1988) discorre com maestria sobre as relações, os vínculos entre carrasco e vítimas e entre as vítimas. A profanação da intimidade e da privacidade era um dos alvos preferidos dos fascistas: a tortura que era dividir uma cama com um completo desconhecido, em que cada um ficava com a face próxima aos pés do outro, torcendo para que o companheiro na noite anterior não tivesse sido escalado para limpar as latrinas.

A solidariedade e a compaixão eram também alvos importantes da mente fascista: se um trabalhador caísse quase morto de fome e de trabalho e alguém o ajudasse, era morto sumariamente. Cortar todo e qualquer vínculo entre os prisioneiros era o objetivo dessa máquina letal.

Reparar qualquer dano - entre prisioneiros - era também motivo de morte sumária. Estar sob contínua vigilância do inimigo, amargando uma solidão solitária e sem redenção, era técnica cotidiana para que a máquina de morte nazista produzisse não a escravidão ou o aprisionamento, mas o inumano.

Os campos de extermínio não visam só aprisionar e humilhar os diferentes, desnudando-os, despojando-os de sua cultura, cortando os vínculos com seus entes queridos; visam também roubar-lhes partes de seu self verdadeiro: sentimentos, lembranças, compaixão, solidariedade, pensamentos, caminho, destino. Ao final desse processo, a morte física. Não se trata também só de extorqui-lhes trabalho, escravizando-os; trata-se, como vimos, de desumanizá-los, valendo-se de uma defesa psíquica mortífera. Levi (1947/1988) descreve a figura do muçulmano [judeu].

A história - ou melhor, a não história de todos os muçulmanos que vão para o gás é sempre a mesma... a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los de vivos, hesita-se em chamar "morte" à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la. Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar em uma imagem todo o mal de nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento. (Levi, 1947/1988, p. 91)

Por isso é irresponsável facilitar o progresso da mente fascista. Hoje, depois do horror que vivemos no século XX, temos condições de perceber a emergência de mentes fascistas e o caminho que a energia psíquica, fatalmente, percorrerá nessas mentes: a paranoia às avessas, os tipos de defesa, o genocídio intelectual de seus opositores e o seu ápice, a organização de um imenso aparato burocrático para o exercício da introjeção extrativa que visa à desumanização em massa dos diferentes.

Acompanhamos atônitos o circuito inteiro da mente fascista no século XX e, sabedores desse circuito, não podemos vacilar quando as mentes fascistas começam a emergir ainda uma vez, já que não lhes resta senão cumprir a destinação inscrita na sua própria desumanização.

 

Referências

Arendt, H. (1983). Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Diagrama.         [ Links ]

Bollas, C. (1998). O estado da mente fascista. In C. Bollas, Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Bollas, C. (2015). Introjeção extrativa. In C Bollas, A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Giacóia Jr., O. (2013). Heidegger urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas.         [ Links ]

Levi, P. (1988). É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco. (Trabalho original publicado em 1947)        [ Links ]

Tiburi, M. (2015). Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Trapero, P., Almodóvar, P., Almodóvar, A., Sigman, H., Mosteirín, M., Kuschevatzky, A. et al. (Produção), & Trapero, P. (Direção). O clã [Filme-vídeo]. Argentina: Fox.

 

 

Recebido em: 6/5/2019
Aceito em: 7/6/2019

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