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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

De Hiroshima à Guerra do Golfo e depois: expressões sociopolíticas de ambivalência1, 2

 

 

Hanna Segal

Hanna Segal foi uma psicanalista britânica e seguidora de Melanie Klein. Foi presidente da Sociedade Psicanalítica Britânica, vice-presidente da Associação Psicanalítica Internacional, e foi nomeada para a Cadeira Memorial de Freud no University College, em Londres, em 1987. Londres

 

 

Geralmente se aceita que a psicanálise fale com autoridade só de psicologia individual e de seu trabalho na sala de consultas. Fenômenos sociopolíticos deveriam ser reservados, portanto, a especialistas de outras áreas - economistas, sociólogos, políticos e até, na área da guerra, generais. Defendo, porém, que a psicanálise tem, no seu campo, inúmeros aspectos da mente humana e de suas atividades, e que, portanto, a exploração dos fatores sociais é uma área legítima de investigação psicanalítica. Além disso, penso que a psicanálise possa oferecer uma contribuição especial ao entendimento desses fenômenos; especialmente em razão da nossa experiência a respeito do conflito entre as atitudes construtivas e as destrutivas, no indivíduo, que nos qualifica a lançar alguma luz sobre forças destrutivas com que temos de lidar socialmente. Começarei, portanto, discutindo a natureza e o desenvolvimento da ambivalência, como aprendemos a compreender na psicanálise e, depois, fazendo algumas observações sobre o conhecimento adquirido no estudo de grupos. Finalmente, aplicarei essas considerações à extensa área do manejo da agressão em situações sociais e seu uso equivocado no nosso fracasso quanto a prevenir guerra e, acima de tudo, quanto a conseguir que o mundo escape da catástrofe nuclear.

Nos anos 1920, na sua teoria final das pulsões, Freud postulou um conflito entre as pulsões de vida e as de morte. Ele acreditava que este conflito, e a ambivalência resultante, salientassem outros conflitos e se refletissem não só na patologia ou nos sonhos, mas também em todo comportamento, individual ou de grupo. Esse conflito entre pulsões de morte se exprime como ambivalência em relação aos objetos primitivos, o que não é necessariamente patológico e, na verdade, faz parte da natureza humana.

Em "Luto e melancolia" (1917), talvez Freud tenha feito a melhor descrição do papel central da ambivalência. Esse artigo prenuncia sua descrição do superego e sua teoria das pulsões de vida e de morte. Ele diferencia o luto pela perda do objeto, que requer uma retirada gradativa da libido investida no objeto perdido, e o estado de melancolia. Na melancolia, o trabalho de luto é limitado pela ambivalência em relação ao objeto, uma ambivalência que continua mesmo depois de ele ter sido internalizado, e que resulta num ódio mútuo, penoso, entre este objeto interno e o ego, o ódio que está em conflito com o amor também existente entre eles. Este artigo esclarece, mais vivamente do que os anteriores, a importância da ambivalência com relação ao objeto interno. O complexo de Édipo, com a expressão simultânea de amor e ódio a ambos os objetos paternos, é o foco da ambivalência, e é a introjeção dessas figuras, ambivalentemente amadas, que forma o núcleo do superego.

Em "Além do princípio do prazer", Freud (1920) descreveu como a pulsão de vida, que deseja e tem por objetivo a vida, o amor, a integração e o crescimento, está em conflito com a pulsão de morte, que Freud considerou um desejo de voltar ao estado inorgânico. Freud demonstrou que o "organismo", pretendendo evitar a morte, desvia (deflete) a pulsão de morte para fora e, desse modo, a transforma em agressão contra objetos. Ele comenta que nunca observamos diretamente a pulsão de morte na prática clínica - seu trabalho sendo feito silenciosamente, por dentro do organismo -, mas a vemos quando fundida com a libido. Agora reconhecemos, contudo, que se pode observar a defusão das duas pulsões, ao menos no caso das psicoses, neuroses graves e perversões sádicas, o que permite ver a pulsão de morte em forma quase pura.

Melanie Klein, ao começar a trabalhar, nos anos 1920, defendeu que o conflito entre pulsões amorosas e destrutivas é experimentado desde o início da vida em relação a objetos, inicialmente em relação ao seio materno. Do seu pomo de vista, o ego rudimentar é que deflete a pulsão de morte, e essa deflexão funciona do nascimento em diante, como um mecanismo de defesa. Ela vê essa deflexão como projeção num objeto e como uma agressão dirigida contra o objeto. Tal projeção cria um objeto "odioso", que é percebido como pleno de ódio, bem como odiado. Cindida a isso, a pulsão de vida busca o objeto que precisa, e de certo modo o cria, mediante a projeção. Más experiências se ligam e são atribuídas ao objeto mau, e boas experiência, ao objeto bom. Klein chamou "esquizoparanoide" essa etapa inicial, em virtude da ansiedade paranoide relacionada a um objeto mau também impregnado pela destrutividade projetada da criança, e em virtude da cisão esquizoide entre experiências idealizadas e persecutórias. Com certeza, essas não são as únicas características da posição esquizoparanoide, mas são as principais no lidar com a ambivalência.

À medida que essas projeções vão sendo recolhidas e uma figura mais realista do objeto e de si própria, se forma, a criança tem de experimentar sua própria ambivalência. As crianças começam a perceber a mãe como um objeto inteiro - isto é, não cindida em duas, ou fragmentada em partes, mas como uma pessoa tanto gratificadora quanto frustradora. Elas também passam a se percebem como pessoas, com sentimentos conflitivos, e que tanto amam quanto odeiam a mãe.

Essa etapa, em que a criança reconhece a mãe como pessoa inteira, Klein chamou "posição depressiva", porque a percepção da ambivalência traz consigo a ameaça de perda do objeto e os sentimentos depressivos associados. Vista desse ângulo, a capacidade de experimentar ambivalência é uma realização fundamental, um novo passo no desenvolvimento. É essencial para a integração de sentimentos e de objetos cindidos, e para o reconhecimento da realidade, tão gratificante quanto frustradora. Traz também consigo uma nova ordem de sentimentos, como o medo da perda e a culpa. A culpa substitui a perseguição, e isso tem grande importância, já que a perseguição não tem solução; ódio acarreta perseguição, e perseguição acarreta ódio. De outro lado, quando a ambivalência é reconhecida, a agressão é sentida como lesando um objeto que também é necessário e desejado, e traz em sua esteira não mais ódio, mas, ao contrário, a mobilização de impulsos amorosos e o desejo de reparar e restaurar. Isso, do ponto de vista de Klein, é a base da sublimação construtiva. Mas o reconhecimento da ambivalência, da culpa e do medo da perda são muito penosos, e poderosas defesas podem se estabelecer, defesas maníacas, paranoides e outras, todas requerendo algum grau de regressão a formas anteriores de funcionamento.

A posição depressiva acarreta uma reorientação fundamental, para a realidade. Com a retração das projeções, tanto o objeto quanto o self são percebidos mais de acordo com o princípio da realidade. Passamos a assumir responsabilidade por nossos próprios impulsos, e a obra da ambivalência pode ser vista como um grau maior de desenvolvimento. Além disso, a fuga da ambivalência acarreta a regressão a mecanismos mentais anteriores, de negação, cisão, projeção e fragmentação, característicos da posição esquizoparanoide.

Penso ser essencial diferenciar a existência da ambivalência, presente desde o início, da realização viva da nossa ambivalência, aceitando-a e elaborando-a. Tal elaboração é consumada, inicialmente, pelo reconhecimento da culpa e da perda acarretadas pela ambivalência, levando à capacidade de mobilizar reparação e restauração. Isso não significa que a agressão esteja ausente, mas que se torna proporcional à causa, da mesma maneira que a culpa a ela associada.

Minha descrição, no entanto, soa como se eu estivesse ignorando problemas do ambiente. Não é o caso. O ambiente ajuda, ou prejudica, a resolução do conflito de ambivalência. Obviamente, experiências boas incrementam amor, e experiências más o prejudicam. Além disso, para modulá-lo, é de fundamental importância como os objetos parentais lidam com a destrutividade e a autodestrutividade da criança. Claro que este fato é decisivo no uso da psicanálise como instrumento terapêutico. O paciente traz seus impulsos infantis e seus objetos internos para serem reexaminados de um novo modo, num ambiente diferente.

Lidei até aqui apenas com psicologia individual, mas os conflitos descritos também se exprimem em nosso comportamento grupal. Os humanos são animais sociais, o que promove a vida. Formamos grupos para nos ajudarmos, uns aos outros, e para encararmos, juntos, os problemas. Mas, ao mesmo tempo, os grupos abrigam e dão expressão a pulsões de morte, perigosas para eles mesmos e para os outros grupos.

Com relação ao campo sociopolítico, é claro que o bebê e a criança se relacionam desde o começo com outras pessoas, inicialmente os pais, e que a família é protótipo e núcleo dos demais engajamentos sociais. No início, o bebê se relaciona e depende do seio como um objeto parcial. Depois, quando passa a perceber a mãe como uma pessoa inteira, também percebe que ela tem outras relações, e passa a se relacionar com o pai e a família em sua totalidade. Muito cedo isso se estende a grupos, como os vizinhos e os companheiros de escola. Todos pertencemos a vários grupos, alguns escolhidos, outros nos quais nascemos, como a nação e, às vezes, a religião. A preocupação do analista não é só com o indivíduo, mas com sua interação com o ambiente, iniciando pelo grupo familiar, na infância, e se estendendo mais tarde a grupos mais amplos.

Uma razão pela qual a psicanálise tem uma contribuição especial a dar à compreensão do fenômeno social deriva de que o comportamento do grupo é frequentemente muito irracional. Para que a sociedade proceda de modo tão irracional, o que é evidente em nossas atividades destrutivas com relação ao planeta do qual dependemos, especialmente a destruição de nosso próprio hábitat, por meio da poluição e da exploração insaciável, bem como da continuação da corrida armamentista nuclear louca, é necessário admitir que forças inconscientes poderosas estejam em ação.

Freud afirma, em seus artigos sobre grupos, que eles se estabelecem sob a égide da libido, com funções como de uma força em direção à realização da harmonia dentro do grupo, de modo que o capacite a levar adiante suas tarefas. Mas esse processo é perturbado pelas contínuas rupturas causadas por impulsos e fantasias derivadas da pulsão de morte.

Em tudo o que se segue, adotei, portanto, o ponto de vista de que a tendência à agressão é, no homem, uma disposição instintiva original, auto-sustentada, e retomei minha opinião de que ela constitui o maior obstáculo à civilização. Até certo ponto, no curso desta investigação, fui levada à idéia de que civilização era um processo especial a que a humanidade se submete, e ainda estou sob influência dessa idéia. Poderia agora acrescentar que civilização é um processo a serviço de Eros, cuja proposta é associar seres humanos individuais, depois famílias, depois raças, povos e nações, numa grande unidade, a unidade da humanidade. Por que isso tem de ocorrer, não sabemos; o trabalho de Eros é justamente esse. Esses agrupamentos de homens são libidinalmente ligados uns aos outros. Apenas necessidade, e as vantagens do trabalho em comum, não os unem. Mas o instinto agressivo natural do homem, a hostilidade de cada um contra todos, e de todos contra cada um, se opõe a esse programa de civilização. Este instinto agressivo deriva, e é o representante, da pulsão de morte, que encontramos juntamente a Eros, com o qual divide o domínio do mundo (Freud, 1930, p. 122).

Freud não foi o único a tentar aplicar os insights derivados do divã ao comportamento de grupo e ao fenômeno social. Mas, apesar de todo esse trabalho, de certo modo a psicanálise não parece lançar muita luz no fenômeno contemporâneo real. É espantoso pensar que, embora muitos psicanalistas tenham tido papel heroico no combate ao nacional-socialismo, o corpo organizado dos psicanalistas, a Associação Psicanalítica Internacional, nada tivesse a dizer sobre o assunto, e não produzisse artigos científicos especializados lidando com o fenômeno nazi ou advertindo sobre seu significado, ainda que Freud tenha-se referido ao crescimento do nazismo, de passagem, em carta a Einstein.

Isso mudou depois da Segunda Guerra Mundial, quando surgiram alguns artigos e livros notáveis a respeito de guerra e do fascismo (Glover, 1947; Fornari, 1966; Money-Kyrle, 1968/1978). Penso que essa mudança se deu, depois da guerra, em parte porque analistas estavam começando a trabalhar diretamente com grupos, e em parte pelo progresso na nossa compreensão da psicose. O funcionamento do grupo é muitas vezes basicamente influenciado e despedaçado pelo fenômeno psicótico. Freud disse que formamos grupos por duas razões: uma, para "combater as forças da natureza"; outra, para impedir "a destruição do homem pelo homem". Os grupos lidam com essa destrutividade tipicamente por meio da cisão, o próprio grupo sendo idealizado e tomado de amor fraternal, o amor coletivo como um ideal, enquanto a destrutividade é voltada para outros grupos. Geralmente tendemos a projetar no grupo partes de nós mesmos que não conseguimos elaborar individualmente, e por serem nossas partes psicóticas as mais perturbadas e difíceis de lidar, tendemos a projetá-las principalmente em grupos.

Mecanismos de defesa de grupos são usados principalmente nas ansiedades psicóticas de que os indivíduos não conseguem dar conta neles mesmos, e se utilizam de mecanismos que, se usados pelo indivíduo, seriam considerados psicóticos. Em condições normais, predomina o funcionamento construtivo e realista, e os traços psicóticos são mantidos sob controle. Ainda assim, contudo, os grupos se comportam de modo que, no indivíduo, seria considerado louco. Por exemplo, quase invariavelmente os grupos são autoidealizantes, grandiosos e paranoides, e podem se isentar de culpa por permitir sancionar a agressão, o que, no indivíduo, seria imperdoável.

Wilfred Bion (1961) ampliou a hipótese de Freud sobre o funcionamento de grupos. De acordo com ele, um grupo desempenha duas funções. Uma, denominada "grupo de trabalho", em que o grupo é capaz de funcionar em nível realista e dar conta da tarefa. Outra, que ele chamou "grupo de suposição básica", em que o grupo funciona baseado numa premissa psicótica. Tal premissa psicótica ressalta, por exemplo, nosso senso de superioridade com relação a outros grupos, nossa injustificada hostilidade ou medo deles, e assim por diante. Nossas partes psicóticas estão fundidas na nossa identidade grupal, e não nos sentimos loucos desde que nossa opinião seja sancionada pelo grupo. Se predomina no grupo a função de trabalho, os elementos psicóticos são mantidos em xeque, e podemos exprimir nossas opiniões loucas de modo bastante inócuo.

Um grupo grande, como um estado ou uma nação, também pode delegar funções igualmente psicóticas a subgrupos, mantidos sob controle do grupo - subgrupos como o Exército, por exemplo, em que a mente e o treinamento militar se baseiam em hipóteses paranoides. Da mesma maneira, nossa dependência da onipotência e nossos delírios messiânicos, grandiosos, podem ser investidos na Igreja e na religião em geral.

Esse tipo de delegação de uma função a um grupo circunscrito falha, caso o grupo se torne muito poderoso. Um agrupamento político, como o fascismo ou o comunismo, pode combinar a mentalidade do Exército e a mentalidade religiosa, levando à destruição isenta de culpa. O mesmo pode acontecer quando o grupo chamado nação é regido pelo nacionalismo.

Membros de um grupo formado pelo trabalho de qualquer espécie têm em comum o interesse individual e o grupal, e neste caso a segurança do indivíduo e do grupo é ligada ao sucesso do trabalho. Rivalidades são inevitáveis, mas são temperadas pela necessidade de sobrevivência e de sucesso do grupo. Assim como uma criança numa família, o grupo pode enfrentar a rivalidade com outros grupos, e isto também pode assumir uma forma saudável - ou então se tornar uma força insana, destrutiva, que ameaça liquidar ambas as partes.

O predomínio de processos psicóticos sobre a produção, num grupo, é um perigo típico dos agrupamentos políticos, nacionalistas ou ideológicos. Isso porque o trabalho dos grupos nacionalistas ou políticos é menos definido. Se um grupo de cientistas e outros funcionários de um laboratório fosse dominado não pela função de trabalho, mas por suposições psicóticas, o trabalho verdadeiro não poderia ser realizado. Isto não ocorre nos grupos políticos, que abarcam mais facilmente sentimentos de superioridade, missões messiânicas, convicções e paranoia. Talvez isso aconteça porque os grupos políticos têm como meta principal a busca do poder.

Realmente, políticos fazem parte de quaisquer grupos. É irreal pensar que se pode ter uma organização, ou sociedade, sem política. Sempre haverá pontos de vista sobre estratégias a serem seguidas, dando origem a tensões políticas, e também haverá mais tensões destrutivas em virtude de rivalidades e busca de poder. Mas, num grupo comum, que funciona bem, tais tensões destrutivas serão submetidas à função de trabalho do grupo - do mesmo modo que, numa família bem-funcionante, amor e bondade podem conter e modificar violência e ódio. Pode-se dizer: "muita politicagem não será tolerada, porque perturba o trabalho". Não é assim num grupo político, que não tem outro trabalho que não a política. O grupo escolhe seu líder de acordo com essa orientação. Grupos sob a influência de mecanismos psicóticos tendem a selecionar ou tolerar líderes que representam sua patologia. Mas esses grupos não só escolhem líderes desequilibrados; eles também os influenciam. Os grupos infundem onipotência em seus líderes, e os empurram, além do mais, para a megalomania. Há uma interação perigosa entre um grupo perturbado e um líder perturbado, cada qual incrementando a patologia do outro.

Um grupo político pode ser uma organização, como um estado ou um partido político dentro do estado. Mas há um grupo político mais amplo, indefinido, que somos, na verdade, todos nós. Todos temos algum pensamento político, inevitavelmente, mesmo aqueles que não se preocupam com partidos políticos. E nosso pensamento político é muito controlado pelo grupo, quer ele seja baseado em raça, religião ou nação. Sem nos darmos conta, adotamos a postura mental do grupo a que pertencemos, uma postura que pode ser muito irracional e perigosa para a nossa sobrevivência.

Debati anteriormente que a própria existência de armas nucleares deu nova dimensão aos problemas de guerra e paz (Segal, 1998b). Meu próprio interesse em tentar aplicar a compreensão psicanalítica à cena sociopolítica foi estimulado pela consciência dessa situação, que me levou ao problema da sedução da onipotência destrutiva e da autodestrutiva, e ao terror que elas induzem. Sustentei que a própria existência da bomba desperta as mais primitivas ansiedades psicóticas de aniquilação, e mobiliza as mais primitivas defesas. Não vou repetir este argumento, a não ser para ressaltar um de seus aspectos; especificamente que, no problema social da destrutividade, um novo elemento é introduzido com a criação das armas nucleares.

Penso que a existência de armas atômicas mobiliza e atualiza o que eu descrevi como o mundo do esquizofrênico, em que ocorre uma obliteração dos limites entre realidade e fantasia, característica da psicose. A onipotência se tornou real, mas apenas a onipotência destrutiva. Podemos realmente aniquilar o mundo ao apertar um botão, ao passo que, se, em fantasia, podemos também onipotentemente reconstruí-lo, na realidade, não podemos fazê-lo. Neste mundo da onipotência primitiva, o problema não é de desejo e medo da morte, típico do mundo mais maduro depressivo e edípico, mas, ao contrário, de se estar governado por desejos de aniquilação do self e do mundo, com os terrores a estes associados.

É nisso que o ponto de vista de Lifton (1982) é tão convincente. Ele descreve como a aniquilação atômica destrói a possibilidade da sobrevivência simbólica. Na morte natural, ou mesmo na guerra convencional, as pessoas enfrentam a morte - conservando ao mesmo tempo a convicção de sobrevivência simbólica em seus filhos, netos, em seu trabalho, ou na própria civilização de que fazem parte. Como resultado de sua morte, luto, reconciliação e reparação podem eventualmente acontecer. Chegar a um acordo com relação à perspectiva da própria morte é uma etapa necessária do amadurecimento e na atribuição de significado completo à vida. A existência de armas nucleares e a perspectiva da guerra nuclear torna impossíveis a aceitação da morte e a sobrevivência simbólica. A perspectiva de morte na guerra atômica deixa um vazio inimaginável e produz um terror diferente. Aqueles que trabalham com psicóticos têm uma noção desse tipo de terror. No desenvolvimento normal, como Freud descreveu, e depois Klein elaborou, Eros, a força de vida, tendo sucesso em integrar e submeter pulsões destrutivas e autodestrutivas, converte-os em agressão promotora de vida. Mas, nas profundezas de nosso inconsciente, tais desejos e terrores não integrados ainda existem. Somos todos apenas parcialmente sãos, e circunstâncias como as que agora prevalecem mobilizam nossas partes mais primitivas. A sedução da onipotência é poderosa; e também o é, de certa maneira, a sedução da morte.

Contra as ansiedades e a culpa relativas a essas pulsões destrutivas, são mobilizadas as defesas mais poderosas. Cisão e projeção terão crescido, criando impérios de maldade. Isso, em contrapartida, incrementa tanto ansiedade irracional quanto medos realísticos. Então a megalomania tem de ser incrementada como uma defesa, e ela passa a ser investida na onipotência da bomba. A desumanização do inimigo tem de ser feita, tornando-o um monstro ou um objeto mais do que desprezível. Mas não apenas o inimigo; também nos desumanizamos, e a nossos aliados.

Este tema foi mais aprofundado no Capítulo 13 deste livro (Segal, 1998b), em que se descreve o modo pelo qual a linguagem é usada equivocadamente, para negar a realidade da catástrofe nuclear. Sustento que isso leva a uma espécie de pensamento que, com certeza, foi ativo em ambos os lados da divisão Oriente-Ocidente, produzindo um equilíbrio instável, baseado em premissas loucas e defesas esquizoparanoides.

Neste artigo, pretendo examinar de que modo o sistema foi minado pela perestroika, depois da qual o sistema paranoide não pôde ser mantido, por requerer um inimigo. A perestroika foi uma época de esperança, pela possibilidade de uma mudança de atitude. Mas também foi uma época de novos perigos, associados à busca de um novo inimigo.

Isso foi um problema especial para a Otan, que precisava de um inimigo que justificasse a continuação de seu poderio militar. Apesar do desaparecimento da suposta ameaça soviética, a razão palpável para conservar o arsenal nuclear era que os países ocidentais não podiam tolerar a ideia de desarmamento nuclear ou conceber um mundo sem a bomba atômica. Era uma espécie de vício. Embora aparentemente muito tenha mudado com a perestroika, algo não mudou. O poder de fogo nuclear tem sido permanentemente incrementado, no processo da assim chamada modernização.

Então, o que se passava? Clinicamente, temos familiaridade com esses momentos de esperança em que um paciente paranoide começa a abandonar seus delírios, ou quando um viciado começa a se desfazer da droga, e a ficar melhor. A melhora é genuína. Mas, assim que melhoram, têm de encarar a realidade. Com a redução da onipotência, eles têm de encarar sua dependência, possivelmente desamparo, e o fato de que estão doentes. Com a retração das projeções, têm de encarar sua própria destrutividade, seus conflitos internos e a culpa: têm de encarar suas realidades internas. Além disso, frequentemente têm de encarar perdas e estragos enormes, que sua doença ocasionou na realidade externa. Defesas maníacas formidáveis podem ser mobilizadas contra essa dor depressiva, com o renascimento da megalomania e, na esteira desta, o retorno da paranoia.

De modo semelhante, no campo social, quando deixamos de acreditar no império da maldade, tivemos de nos voltar para nossa situação interna, e tivemos de encarar nossos problemas sociais: declínio econômico, desemprego, culpa em relação ao Terceiro Mundo. Especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, tivemos de encarar o efeito de nosso gerenciamento equivocado de recursos, e a culpa relativa ao desperdício de recursos com armas nucleares excessivas, desnecessárias, loucas, contra um perigo inexistente - recursos que poderiam ter sido transformados em educação, saúde, infraestrutura industrial, e assim por diante. Um dos fatores da prosperidade da Alemanha e do Japão foi o fato de que lhes foi vetado desenvolver armas.

Já que uma função importante do grupo, uma das primeiras observadas por Freud e amplamente confirmada pela observação e pela experiência clínica de grupos, é a defesa contra os sentimentos de culpa do indivíduo, é quase impossível que os grupos enfrentem a culpa coletiva. Esse é um ponto destacado por Fornari (1966), que sustentou que as guerras são frequentemente iniciadas como uma defesa contra culpas relativas a guerras anteriores. No caso dos Estados Unidos, a culpa relativa à Guerra do Vietnã, tanto pelo dano feito ao inimigo quanto pela falha e pela humilhação dos próprios Estados Unidos, não foi reconhecida, até recentemente, e está sendo encarada apenas parcialmente. Essa culpa não reconhecida foi um dos fatores que tornaram necessária a Guerra do Golfo; esta tinha a intenção de dissipar a depressão relativa ao Vietnã.

Na época da perestroika, ao contrário de encarar a culpa, nos voltamos para defesas maníacas: particularmente ao triunfo. A perestroika foi sentida como o triunfo do nosso sistema e poder superiores, e a nossa mentalidade nuclear não mudou. A busca megalomaníaca de poder e a adição à bomba estavam fadadas a criar mais inimigos, substitutos da Rússia Soviética - primeiro, porque a megalomania de fato cria novos inimigos, e, segundo, porque precisamos de um novo império da maldade para justificar a agressão arrogante que projetamos.

Einstein disse que, com o advento do poder atômico, tudo mudou, exceto nosso modo de pensar. E, de certo modo, ele está certo. Nada mudou para melhor. Nós não nos conscientizamos de que o advento das armas atômicas tornaram sem sentido a ideia de guerra justa e a da defesa militar dos valores civilizados, uma vez que uma guerra destruiria esses valores. Nosso pensamento não mudou no tocante a perceber que nossos narcisismos nacional, racial, religioso ou político são não só insignificantes, mas também letais, e que nossa preocupação deveria ser com a sobrevivência da humanidade. Mas receio que a bomba atômica tenha mudado nosso pensamento para pior, produzindo uma cultura de mentalidade nuclear que se baseia em medo de aniquilação e que incrementa defesas esquizofrênicas. Essa mentalidade sobreviveu ao término da Guerra Fria e nos impediu de usar construtivamente o colapso do Império da Maldade.

Eu e meus colegas do PPNW,3 principalmente por artigos não publicados apresentados a diversas plateias, advertimos sobre os perigos inerentes à situação pós-perestroika. Mas a insensibilidade e a apatia entraram em cena. Organizações contra a guerra nuclear perderam muitos associados. Encontros públicos foram pouco assistidos. Havia um sentimento de muito alívio, e um desejo de acreditar que tudo estaria bem agora - incrementando a negação de que os perigos ainda estavam lá. Especificamente, advertimos que, a menos que as atitudes relativas ao problema mudassem, correríamos o risco de encontrar um novo inimigo.

A Guerra do Golfo foi um exemplo impressionante de se encontrar, ou criar, um inimigo para preencher esse vácuo. Achamos um novo inimigo no Iraque e em Saddam Hussein, que tinha sido apoiado, quase até a eclosão da guerra, tanto pelo Leste quanto pelo Oeste. Sua agressão franca ao Irã e sua tirania local não impediram ambos os blocos de supri-lo de armamentos sofisticados. Do dia para a noite, então, ele se tornou um monstro, e aceitou prontamente o papel, já que, como o Ocidente, tinha perdido seu inimigo, e precisava repô-lo. O enorme poder destrutivo usado naquela guerra deu ao Ocidente o triunfo de que precisava; e parece que, se fosse necessário expor armas nucleares para demonstrar supremacia, elas teriam sido usadas.

A Guerra do Golfo está esquecida, como se fosse uma história antiga. Há uma negação universal do que fizemos e das consequências. As vítimas incontáveis, a devastação da área e a continuação do desastre humano e ecológico são ignoradas. A culpa também permanece ignorada, e os perigos permanecem conosco. Os que não se lembram de sua história ficam fadados a repeti-la, mas encarar a realidade dessa história nos expõe ao que é mais insuportável. Isso é particularmente difícil em grupos cuja tarefa é admitir que cometemos um erro de grandes proporções e ter de assumir a responsabilidade pelas consequências. Mas, a não ser que o façamos, nossas defesas maníacas e esquizoides nos tornarão cegos para essas realidades e nos levarão a outros desastres.

Voltando ao tema da "mentalidade nuclear", os perigos da guerra nuclear não são menores do que eram durante a Guerra Fria, e talvez tenham aumentado. Os perigos com que me preocupei ainda existem, e penso que agora novos perigos são acrescentados, em razão da fragmentação do saber e dos recursos nucleares, a partir da fragmentação da União Soviética. Olhando a situação friamente, penso que teríamos de encarar, além da culpa pela atitude de mentalidade nuclear em geral, a culpa específica pelas várias guerras em que estivemos engajados, mais especificamente a Guerra do Vietnã e a Guerra do Golfo, e suas consequências. A menos que possamos admitir nossa parte nesses acontecimentos devastadores, o velho caminho da paranoia e da fragmentação trará todos esses perigos.

Tentei resumir as constelações psicológicas como as vejo se desenvolvendo depois de Hiroshima por meio da Guerra Fria e da perestroika, na direção da inevitabilidade de outras guerras. Como pode a psicanálise contribuir em tal situação? Penso que ela tenha algo especial para oferecer, e que resulta da nossa compreensão de processos mentais que observamos na situação clínica em que trabalhamos com nossos pacientes. É aqui que o estudo da ambivalência, e a necessidade de aceitar e encarar o que aconteceu, apesar da enorme culpa envolvida têm importância primordial. Penso que o único remédio que possamos talvez oferecer é argumentar que nem sempre é necessário engolir mentiras, e que as circunstâncias reais aparecem quando encaramos os fatos. Esses fatos incluem as motivações psicológicas subjacentes à ambivalência, e sua compreensão pode ajudar na luta por um vislumbre de insight e sanidade.

Eu, e outros, fomos acusados de ser partidários - não só pessoalmente, que é nosso direito, mas também envolvendo a psicanálise, e como analistas. Não concordo com esse ponto de vista. Penso que a neutralidade psicanalítica não pode ser confundida com uma neutralidade ética que nos permitiria ser neutralizados. Penso que devemos falar não tanto da neutralidade do analista, mas de sua objetividade. A tarefa do analista é tentar compreender e avaliar a situação, e comunicar essa compreensão a outros. E aí pode não haver neutralidade, digamos, como entre Hitler e suas vítimas. Pode-se apenas lutar pela compreensão dos fatores que produzem certas situações, e nós somos habilitados, e na verdade eticamente orientados, a tornar conhecidos nossos pontos de vista sobre os perigos que prevemos. Qui tacet consentire videtur.4

Temos também sido acusados de idealismo. Isso eu não refuto inteiramente, mas não o considero "não analítico". Tem-se de distinguir idealização de ter ideais. Idealização é uma distorção de realidades e é uma postura perigosa, já que é invariavelmente acompanhada de cisão e projeção - idealizando a si e às próprias ideias ou grupos, às expensas de atitudes paranoides com relação a outros. Ter ideais é muito diferente: não é patológico esperar por um futuro melhor - por exemplo, pela paz - e lutar por isso, mesmo sabendo quão difícil é consegui-lo, e que a oposição a isso vem não só dos outros, mas também de nós mesmos.

 

Referências

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Segal, H. (1998a). De Hiroshima à Guerra do Golfo e depois: expressões sociopolíticas de ambivalência. In E. M. R. Barros (Coord.), Psicanálise, literatura e guerra: artigos 1972-1995 (pp. 167-177). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Segal, H. (1998b). O silêncio é o verdadeiro crime.In E. M. R. Barros (Coord.), Psicanálise, literatura e guerra: artigos 1972-1995 (pp. 153-166). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Hanna Segal (1918-2011)
1 Capítulo 14 do livro Psicanálise, literatura e guerra: artigos 1972-1995 (Segal, 1998).
2 Este capítulo combina material de dois outros artigos: "O resultado da ambivalência" (Segal, 1992) e "Hiroshima, a Guerra do Golfo e depois" (Segal, 1995). Inclui também algum material de conversas e artigos não publicados. Há, portanto, alguma repetição de temas discutidos no Capítulo 13 (Segal, 1998).
3 O PPNW (Psicanalistas para a Prevenção da Guerra Nuclear) foi fundado em 1983 pela Dra. Segal com o Dr. Moses Laufer. Funcionou tanto como um grupo de pressão política dentro da Sociedade Psicanalítica Britânica quanto como um fórum para o estudo da guerra nuclear e sua prevenção por psicanalistas e outros. Subsequentemente, em 1985, foi fundada uma associação internacional.
4 Quem cala consente.

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