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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

A exaltação da norma versus a desordem da boa vontade1

 

The exaltation of rule versus The disorder of good will

 

La exaltación de la norma versus El desorden de la buena voluntad

 

L'exaltation de la règle versus Le désordre de la bonne volonté

 

 

Liana Pinto Chaves

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Atual secretária de seleção do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, SBPSP. São Paulo. lianapchaves@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto identifica algumas questões importantes encontradas no decurso da formação psicanalítica, mais especificamente porque muitos membros filiados não conseguem completá-la ou só a completam a muito custo, depois de muito tempo. Aborda também a responsabilidade recíproca pela formação, isto é, a responsabilidade que cabe tanto aos analistas em formação quanto à instituição formadora.

Palavras-chave: formação psicanalítica, limbo, escrita


ABSTRACT

This text attempts to identify some important issues met with in the analytical training, particularly why an expressive number of candidates do not complete the training or only complete it after a long time and at a considerable cost. It also deals with the reciprocal responsibility for the training, in other words, the responsibility both of the candidates and of the training institution.

Keywords: psychoanalytical training, limbo, writing


RESUMEN

Este texto identifica algunas importantes cuestiones encontradas en el curso de la formación psicoanalítica, más específicamente porque muchos miembros afiliados no logran completarla o sólo la completan a mucho costo, después de mucho tiempo. Aborda también la responsabilidad recíproca por la formación, es decir, la responsabilidad que corresponde tanto a los analistas en formación como a la institución formadora.

Palabras clave: formación psicoanalítica, limbo, escritura


RÉSUMÉ

Ce texte identifie des problèmes importants rencontrés au cours de la formation psychanalytique, notamment parce que de nombreux membres affiliés ne peuvent pas compléter ou ne le terminent qu'à un coût élevé, après une longue période. Il aborde également la responsabilité réciproque de la formation, c'est-à-dire celle des analystes de la formation et de l'institution de formation.

Mots-clés: formation psychanalytique, limbes, écriture


 

 

Introdução

Estamos aqui hoje para fazermos uma dr, isto é, nomear, explicitar e conversar sobre alguns pontos que merecem reflexão no nosso convívio institucional. Meu foco estará nas formações intermináveis e nos fatores que contribuem para essa situação.

Uma rápida pesquisa no Google me informou sobre algumas acepções da palavra limbo. Vou começar com esses estímulos para deles extrair algumas metáforas que serão úteis para o desenvolvimento do que pretendo abordar.

Dentre as várias possibilidades, as que nos interessam são:

No catolicismo, o limbo é a morada das almas que, não tendo cometido pecado mortal, estão afastadas da presença de Deus, por não haverem sido remidas do pecado original pelo batismo (em especial, as crianças que morrem sem terem sido batizadas).

Estado de indecisão, incerteza, indefinição.

Por extensão: ausência de memória, olvido, esquecimento.

Informal: depósito de coisas inúteis.

Quanto à sua etimologia, a palavra vem do latim e significa "orla, margem, beira, borda, no exterior de algo". Na Igreja Católica, é um lugar fora dos limites do céu, onde se vive de forma esquecida e sem a visão plena da eternidade e privado da visão beatífica de Deus.

Esse lugar não deve ser confundido com o estado de purificação do Purgatório, que segue o juízo particular e antecede o ingresso das almas na beatitude celeste. No limbo, não há penas nem purificações a serem realizadas. É um estado de suspensão.

Este último é um sentido forte, útil para a nossa discussão sobre algumas questões referentes à formação psicanalítica: é um estado de estase, de embotamento. Parece um estado que não é nem bom, nem ruim; é estacionário, acrítico, desvitalizado. Quero tratar das formações que não se completam.

Mesmo com essa descrição de um estado um tanto acomodado, desconfio que para muitos membros filiados seja um estado doloroso, sim, conflitivo, e com uma sensação de impotência e de enclausuramento, manejado às custas de cisão, negação e desorientação. É preciso conferir essa impressão, se ela procede. É preciso investigar esse limbo mais de perto, conhecê-lo na sua muito provável diversidade.

Nem tanto ao céu nem tanto à terra. Como eu não sou religiosa, vou usar essas metáforas até um certo ponto, apenas enquanto elas ajudarem, e vou descartá-las quando não servirem mais.

Partindo de dados factuais para considerações de outra ordem. O crescimento da SBPSP parece contribuir para a pouca participação dos membros filiados na vida societária em suas muitas outras atividades, além da formação propriamente dita. As exigências da vida e algo mais faz que essa participação fique bastante pulverizada e direcionada àquilo que é do interesse individual, por exemplo, grupos de estudo.

Detectamos um saudosismo de uma sociedade pequena, uma espécie de taba amiga, em que todos se sentiam visíveis, importantes e em que todos se conheciam pelo nome.

O Instituto de Psicanálise de São Paulo tem atualmente 380 membros filiados. Desses, 60 estão em formação há mais de 15 anos e 58 entre 10 e 15 anos. A soma deles corresponde a 31% da população de pessoas em formação. Essa população merece uma atenção especial da nossa parte, porque questiona diretamente o papel da instituição, a que ela está servindo e de que maneira tem sido usada.

Em São Paulo temos pensado sobre a formação continuada e suas distorções. Criada em 2001 justamente como uma tentativa de não deixar que os membros filiados que não conseguiam terminar sua formação ficassem por muito tempo desconectados da instituição. Estabeleceu-se a exigência de que eles, enquanto não se qualificassem como analistas, deveriam cursar pelo menos um seminário teórico por semestre, o que serviria como manutenção de vínculo à instituição.

Foi uma boa iniciativa naquele momento, mas agora constatamos que ela tem seus limites. Quase 20 anos depois, temos de rever e reavaliar esse curso dos acontecimentos: foi útil, rendeu frutos, sua eficácia venceu? É válido deixar sem limite essa tendência ao eterno aprendiz, ou a instituição toma para si a responsabilidade de estimular o desenvolvimento e, ao mesmo tempo, limitar o limbo?

 

O limbo: questões variadas

O que mantém as pessoas no limbo? Essas pessoas não são de modo algum um conjunto homogêneo. Como a formação é longa, toma muitos anos, as pessoas lutam com suas vidas pessoais e algumas, um número significativo, não negligível, dão um lugar secundário às exigências da formação, em especial à escrita dos relatórios.

Todos nós, naturalmente, estamos sujeitos aos reveses da vida. Alguns desses membros filiados têm dificuldades emocionais que os impedem de prosseguir na formação, numa espécie de alienação diante da passagem do tempo, e enfrentar a escrita de um relatório se torna algo praticamente impossível. Outros revelam uma incompreensão quanto ao no que consiste a escrita em psicanálise, sua relevância, o que se espera dela, como a prática clínica se corporifica num texto.

Devemos considerar o trânsito de mão dupla entre os fatores individuais do membro filiado e os fatores institucionais que dificultam uma formação verdadeiramente consistente.

Diante desses números e dessa angústia que muitos expressam, podemos dizer que o processo de encarnar a teoria falhou - essa frase tão nossa. Uma parte dessa conquista ou desse fracasso diz respeito aos supervisores e ao Instituto, para não falar das análises. O problema é dos dois lados, o limbo é produto dos dois.

A colega Dora Tognolli, atual secretária de acompanhamento do Instituto, está realizando uma pesquisa qualitativa com membros filiados que se encontram em formação há mais de 15 anos (há 60 deles) e não conseguem finalizá-la. Uma segunda rodada da mesma pesquisa, em andamento, dirige-se aos membros filiados em formação entre 10 e 15 anos (58 deles).

Dentre os mais antigos, alguns responderam que só cumprem os seminários (exigência da formação continuada) para não serem desligados. Como considerar esse tipo de colocação? Serão essas pessoas um peso morto para a Sociedade? Elas contribuem de algum modo para a vida institucional? Estão se beneficiando do que a Instituição tem a oferecer, nessas circunstâncias? Até que ponto é importante cumprir o combinado - as exigências formais?

Dora conclui que os dados qualitativos levantados geraram mais indagações e hipóteses do que conclusões. Importantes questões têm sido identificadas e enunciadas com base nas respostas dessa pesquisa. Por exemplo, o sistema vigente não garante que o membro filiado conclua os relatórios e as supervisões. Seria importante ou imprescindível que conclua?

Acredito que escrever organize os pensamentos. Quando escrevemos, prestamos um serviço não só a nós mesmos, mas também aos colegas, pois lhes oferecemos algo pensado, concatenado, que ajuda na discussão. Didier Anzieu preconizava a autoanálise por escrito, com um recolhimento e uma certa disciplina, numa atitude de concentração e introspecção.

Há uma falsa dicotomia, ainda muito presente no Instituto e talvez na própria carreira de psicanalista, que deve ser desfeita: a de uma oposição entre analista escritor e analista de divã. O analista escritor não seria um bom analista clínico. Isso é uma grande bobagem; revela um certo desprezo pelo trabalho intelectual, que passa a ser visto como intelectualismo, defesa; escrever, pensar, produzir seriam "atividades acadêmicas".

O Instituto de Psicanálise não é a universidade, mas não deixa de ser um curso de pós-graduação. Portanto, escrever faz parte do tornar-se psicanalista.

Há sempre alguma tensão no convívio dos grupos. Aqui entre nós se poderia dizer que há uma certa "luta de classes" entre analistas em formação e o Instituto, algo natural e que não precisa ser um problema, um antagonismo. Pelo contrário, é bom identificar e fazer uso dessa tensão para que ela seja produtiva e leve a avanços, a uma discussão de interesse de todos.

Aqui, ali, nas respostas, nas conversas, aparece a perda do sentido de hierarquia, entendida não como submissão, mas como respeito por valores sentidos como significativos, organizadores de uma experiência formadora. O ar dos tempos se faz presente numa pressão direcionada a uma horizontalização nas trocas, num certo desmonte da noção de hierarquia.

Mais uma pergunta: a análise pessoal, nem digo a didática, ainda tem o grande valor que tinha? Quero dizer valor real, e não apenas formal.

Outra questão tem a ver com status: as pessoas querem pertencer a um agrupamento que tem visibilidade, reconhecimento público, mas essas, do limbo, não se dispõem a fazer a sua parte em trabalho intelectual. Contentam-se em ser eternos membros filiados, está bom assim.

Estará mesmo? Trata-se de uma desistência, de uma acomodação ou de uma atitude de descaso ou de desafio? Ao se recusarem a passar pelos ritos do desenvolvimento, não estariam se condenando a uma condição subalterna?

Aqui entra um grande paradoxo - a instituição é simultaneamente valorizada e desvalorizada. Valorizada quando não se quer abrir mão dela (algum valor ela tem), desvalorizada quando se argumenta que ela deveria abrir mão dos relatórios (há quem diga isso), que não há tempo para essas coisas (há quem diga isso), a vida pessoal tem prioridade. Quando dizem: "fiz tudo, só faltaram os relatórios" (como se eles fossem um obstáculo pesado, desagradável e desnecessário), não, não fizeram tudo.

Há muitas situações que atrapalham o curso da formação (questões de saúde, familiares, crise econômica etc.), mas a principal para nossa discussão é a ideia de que formação não é prioridade e de que falta sentido na escrita do relatório, pois psicanalista não precisa escrever, relatório não tem nada a ver com psicanálise. Isso pode ser uma mera racionalização para encobrir uma impossibilidade pessoal, mas suscita uma nova rodada de novas perguntas.

Com certa dureza e com algum preconceito, a ser desfeito mais adiante, o Instituto torna-se uma espécie de clube; pagando a mensalidade, está tudo certo, e a pessoa tem um lugar de pertinência, ainda que bastante ambígua e duvidosa. Só querer pertencer ao clube, pode? Não pode?

Num clube pode, perfeitamente, desde que o indivíduo pague a mensalidade e não atente contra as regras. Mas não é esse o nosso conceito do que seja uma boa formação e uma vida científica estimulante. Há sempre os mais brilhantes que têm uma trajetória animada, cheia de vida, participam de comissões, do jornal, da revista, são engajados na vida grupal. Estou preocupada com os acomodados, os que pagam para não pensar.

A questão mais difícil é sobre o papel do Instituto de Psicanálise. De fato, a parte que compete à instituição é a mais desagradável, para nós que a representamos, próxima do caráter da função de educar crianças: ensinar boas maneiras, bons hábitos, cumprir regras, cobrar atitudes e resultados, construir a atitude psicanalítica com a sua ética.

Como estamos lidando com adultos, esperamos que eles se comportem como tais e sejam parceiros ativos no empreendimento. Se não querem cumprir com os requisitos, em que condição querem continuar pertencendo a essa instituição?

Não se trata de obediência cega, e, sim, de apresentar o seu trabalho, a parte da tarefa a que se propuseram quando escolheram esta instituição para dela fazer parte. Em suma, o que o Instituto pretende e como pode ajudar os membros filiados a alcançarem os objetivos que ambos os lados se propõem?

Radmila Zygouris, uma analista lacaniana totalmente avessa ao peso das instituições de formação, que advoga uma estrutura maleável, porém sólida (quem não concordaria com essa afirmação?), diz: "podemos desejar formar analistas sem, no entanto, confundir formação, formatação ou titularização ... Se quisermos evitar a exaltação da Norma ou a desordem da Boa Vontade" (Zygouris, 2001, p. 87). Foi daí que eu tirei o título da minha participação nesta mesa.

Não somos lacanianos com o seu sistema de passe. Temos um conjunto de normas segundo o qual o membro filiado se torna psicanalista ao se apresentar, validando-se pela escrita, perante a comunidade de colegas, participando e dando a conhecer o seu trabalho e o seu percurso. Oferecemos inúmeras oportunidades para isso, mas a escrita dos relatórios é a primeira situação de exposição aos pares e de pertinência mais clara.

Quanto à questão da autorização para alguém se considerar psicanalista, cito outra frase que surgiu como resposta ao questionário: "Passar para membro associado não é imprescindível. Afinal me sinto psicanalista". Este, parece-me, é um dos sintomas mais expressivos desse problema: eu acho, eu digo, eu me sinto e pronto. A instituição se torna incômoda e é vista como invasiva, controladora, infantilizadora e, no limite, dispensável.

A ideia de uma formação sem fim acaba substituindo a vida científica da sociedade, com a desvantagem de permitir pouca circulação de elementos novos, além de um quê de condescendência.

O valor e a vitalidade de uma instituição e seus modelos de formação exigem uma reflexão permanente. Não podemos ignorar as mudanças históricas e as contradições que se renovam continuamente. Para isso, é importante haver conversas como a de hoje, para podermos trocar experiências.

Para finalizar, uma curiosidade: o limbo foi abolido em 2007. A Igreja Católica, como as evangélicas, agora afirma que as crianças que morrem antes de chegarem à idade da razão vão para o Céu. Se até a igreja católica está procurando rever noções que aprisionam os seres humanos, nós também podemos (e devemos) nos rever continuamente, no que se refere a manter as instituições de formação vivas, interessantes, atraentes e pulsantes, sem medo de enfrentar perguntas espinhosas. Essa é e sempre foi a vocação da psicanálise.

 

Referência

Zygouris, R. (2001). Stardust. Jornal de Psicanálise, 34(62/63), 85-97.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 1/4/2019
Aceito em: 2/5/2019

 

 

1 Participação na mesa "Democracia na instituição psicanalítica", no evento promovido pela Associação dos Membros Filiados (AMF) - "Democracia: complexidades", realizado no dia 30/03/2019.

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