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Jornal de Psicanálise

versión impresa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo enero/jun. 2019

 

AULA INAUGURAL DO INSTITUTO DE PSICANÁLISE

 

Os veios de ouro da formação analítica1

 

 

Julio Frochtengarten

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. juliofro@uol.com.br

 

 

Pode parecer estranho que numa aula inaugural de um instituto de formação de psicanalistas não se trate dos elementos sempre lembrados como essenciais para aqueles que se iniciam nesta profissão: análise didática, supervisões e seminários teóricos e clínicos, elementos que compõem o célebre tripé da formação; ou mesmo do ambiente institucional, assim compondo o que muitos preferem como o quadripé da formação. Justifico minha escolha não por considerar tais elementos supérfluos - muito pelo contrário - mas por querer tratar de questão menos lembrada, não propriamente psicanalítica, mas que deveria permear esses elementos fundamentais da formação. Estou me referindo à importância da curiosidade, fonte da exploração, investigação, aprendizado e conhecimento.

A maior parte de nós provém de formação médica ou psicológica nas quais as ideias de cura e sanidade são fortes e norteiam o exercício do trabalho. Além disso, estamos imersos numa cultura judaico-cristã impregnada das ideias de cura, e que muitas vezes ganha matiz moral e religioso através da ideia de uma segunda vida. É com esse arsenal que a maioria de nós inicia sua formação para vir a ser psicanalista. Devemos lembrar que a própria psicanálise se originou da medicina; e até hoje muitas vezes se mostra impregnada das noções de patologia, doença, prognósticos e resultados. Uma leitura desavisada, norteada por esta disposição mental prévia, dos "Estudos sobre a histeria" (1893-1895/1976b) de Freud, e de algumas ideias provenientes tanto da primeira tópica - como a de "tornar consciente o inconsciente" -, como também da segunda - como a de "onde era id será ego" -, podem nos levar ao engano de que conseguiremos alcançar, plena e definitivamente, estes fins; e consequentemente alcançar o esgotamento dos conflitos, sua cura e a sanidade. Também podemos considerar que talvez o próprio Freud oscilasse entre o modelo da medicina e o da nova ciência que começava a surgir.

Compreendida dessa forma, à formação caberia o aprendizado de tirarmos o máximo proveito dos sonhos, atos falhos e malícias; de superarmos qualidades vistas como más (ciúme, inveja, gula) e alcançarmos aquelas vistas como boas (bondade, justiça). Enfim, formar-se psicanalista corresponderia ao desenvolvimento da capacidade de promover a cura dos sintomas e a saúde. Penso ser este um engano comum, baseado no princípio do prazer, na onipotência e na supremacia da sensorialidade; pelo menos foi este meu caso, exigindo todo um trabalho mental para compreender a verdadeira natureza da psicanálise.

Mas se, atentos a esse viés curativo, relermos os escritos de Freud em "O eu e o id" (1923/2016b), em que ele expõe a segunda tópica, podemos ver que as noções de instâncias psíquicas em conflito e de um ego com função de síntese entre estas várias instâncias, postas lado a lado, já contêm o germe da impossibilidade da solução plena dessa função.

Neste mesmo trabalho, ele apresenta uma bela metáfora ao comparar o ego com um cavaleiro que dirige seu cavalo (o id), mas para onde este quer ir, mostrando assim que a essencial força animal impõe um limite à função sintetizadora do ego. Desse modo, tal função nunca realiza plenamente seu fim. De minha parte, entendo que o ego funciona, como já ouvi algum dia, como um anfitrião de uma festa que apresenta seus convidados um ao outro e deixa que eles se entendam como lhes for possível.

A proposta formulada por Freud (1920/2016a) da existência de instintos de morte que, em oposição aos instintos de vida, se manifestam como agressão, destrutividade e discórdia, introduz outra dificuldade para uma psicanálise com fins curativos, na medida em que demarca os limites para o exercício da capacidade amorosa e criativa.

Com base no conjunto dessas ideias, compreendo que o funcionamento mental estará sempre às voltas com conflitos, progresso e retrocesso, crescimento mental e retração. Consequentemente, o trabalho psicanalítico e a formação não deveriam mais se pautar pelo aprimoramento na utilização de vias régias: elas não estão disponíveis como caminhos prontos para nosso uso, têm de ser arduamente construídas na experiência emocional, em cada momento e com cada analisando.

Em "Análise terminável e interminável" (1937/1976a) - o penúltimo trabalho de Freud publicado em vida -, ele mostra que fatores diversos, como a influência dos acontecimentos passados, a força dos instintos na situação atual e o que ele chama de alterações do ego vão definir o curso da análise, e que a força relativa desses fatores pode obstaculizar a evolução das análises.

Não penso que Freud estivesse sendo pessimista quanto à psicanálise, mas, sim, examinando o que vemos realmente se passar nas análises quando não dominadas por desejos messiânicos. A citação que ele faz de um satirista da época, Johan Nestroy, é bastante expressiva: "Todo passo à frente tem somente a metade do tamanho que parece ter a princípio" (Freud, 1937/1976a, p. 261).

Considerando a presença de forças construtivas e destrutivas ligadas aos instintos de vida e morte nos aproximamos de uma concepção de mente em que os fenômenos mentais se dão em múltiplas dimensões e direções que coexistem.

Com essa vertente, a natureza do trabalho psicanalítico passa a ser um lidar permanente com esse suceder de experiências de amor e ódio, áreas de pensamento e não pensamento, indagação e acomodação, descobertas e repetições. O trabalho psicanalítico tem a qualidade de um processo empírico de observação e aprendizagem sobre o próprio psiquismo do analista e do analisando em relação.

Aqui chego, finalmente, à questão da curiosidade. Na clínica, pensar com base nas teorias psicanalíticas traz a sensação de segurança e conforto, mas pode nos privar de deixar surgir algo novo na medida em que nos amarra ao já conhecido e formulado, e nos leva à calcificação.

Por outro lado, uma clínica com base na observação traz enormes dificuldades e angústia e só pode se sustentar por nossa curiosidade em relação ao que se passa conosco e na relação com o outro.

Essa curiosidade precisa ser cultivada, primeiro em nós e depois nos analisandos: é muito agradável darmos respostas e sentirmos que somos autoridades inquestionáveis sobre os seres humanos e seus sentimentos, ideias, emoções e pensamentos.

Ao contrário, a curiosidade pode ser um incômodo, no mínimo, por nos impedir o descanso, mas entendo que essa seja a contribuição que podemos dar a quem nos procura por sofrimento. Afinal, nem Freud nem a psicanálise explicam, mas, sim, estimulam perguntas que contêm o potencial de expandir o universo mental e promover evolução do pensamento.

Relembro aqui a tônica do discurso da poetisa polonesa Wislawa Szymborska, ao ser contemplada, em 1996, com o Prêmio Nobel de Literatura. Somente então, aos 73 anos, passava a ser conhecida fora de sua terra natal. Falando sobre poesia, disse:

Todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa... Em casos extremos, bem conhecidos desde a Antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à sociedade. É por isso que dou tanto valor à pequena frase "não sei". É pequena, mas voa com asas poderosas... Se Isaac Newton nunca tivesse dito "não sei", as maçãs do seu pequeno pomar poderiam ter caído no chão como uma chuva de granizo - no máximo, teria parado para pegá-las e devorá-las com deleite. Se a minha compatriota Marie-Curie Sklodowska2 nunca tivesse dito a si mesma "não sei", na certa acabaria lecionando química em alguma faculdade particular para mocinhas de boas famílias, e terminaria seus dias cumprindo esse trabalho, de resto perfeitamente respeitável. Mas ela não parou de dizer "não sei", e essas palavras levaram-na, não só uma vez, mas duas, a Estocolmo, onde espíritos inquietos, indagadores, são de tempos em tempos contemplados com o Prêmio Nobel. Poetas, se autênticos, também devem repetir "não sei"... Todo poema assinala um esforço para responder a essa afirmação. (Szymborska, 1996/2007)

Gostaria de assinalar que a curiosidade a que me refiro não é a curiosidade intrometida, mas, sim, a disposição mental aqui exaltada pelo repetido "não sei". Poderia chamá-la de "curiosidade passiva", algo que deveria nos impregnar a todo o momento em nossa prática clínica.

Não se trata de uma passividade que se opõe à atividade, mas de uma passividade feita de paixão, paciência, atenção, receptividade, padecimento e disponibilidade para recebermos o que nos vem do outro e de nós mesmos (Bondía, 2002).

Conflitos são da natureza do homem, e a psicanálise não pode curá-lo de sua natureza. Na obra de Freud, isso se tornou mais claro já a partir da formulação dos instintos de vida e morte em contraposição, deslocando a psicanálise da condição de prática médica-curativa para uma atividade com qualidades próprias.

E o que é próprio do vértice psicanalítico? Penso que seja a possibilidade de acompanhar e observar os aspectos psíquicos que vão se apresentando na experiência. Na minha, esse acompanhamento, como me é possível, vai trazendo percepções novas e momentos que podem levar ao aprender com a experiência emocional, a uma expansão da responsabilidade pelas escolhas diante dos conflitos e a um melhor convívio conosco.

Bion (2017) repetiu inúmeras vezes a citação de Maurice Blanchot que ouviu de André Green: "A resposta é a desgraça da questão". Esta frase condensa de forma feliz suas ideias a respeito do excesso de conhecimento, que pode levar a um entorpecimento que mata a curiosidade e inviabiliza a observação, não permitindo que se atente para fatos que não compreendemos.

Sua preocupação em manter a mente ativamente insaturada deve ter contribuído para sua ampliação na capacidade de observar e também para a organização dessas observações.3 Entendo ser este nosso campo enquanto psicanalistas, como podemos contribuir para o desenvolvimento e crescimento de quem nos procura buscando ajuda.

Tenho me servido (Frochtengarten, 2016) do modelo do flanêur e da flanêurie para exprimir o que entendo clinicamente por acompanhar com curiosidade: o andar desprovido de propósito - protótipo da observação moderna, um modo privilegiado de apreensão e representação da vida, que permite nos aproximarmos da multiplicidade, do efêmero, da beleza do acidental, instantâneo e transitório.

Esse modelo foi proposto por Walter Benjamin, o filósofo da Modernidade, a partir da personagem do conto de Edgar Allan Poe, "O homem da multidão" (1999), tomada como protótipo do herói moderno, o homem comum.

O episódio se passa em Londres, no final do século xix: o narrador é um homem que, sentado junto à janela do bar de um hotel, observa a multidão na rua, contempla os transeuntes e sente um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Identifica o que supõe serem funcionários, jogadores, camelôs, inválidos, bêbados, batedores de carteiras e garotas de vida fácil, beldades infelizes.

Repentinamente, um rosto absorve toda a sua atenção, e o homem resolve segui-lo na multidão. Deixa o hotel e o segue pelas ruas, por horas e horas, desde o entardecer até o alvorecer do outro dia. Atento aos passos, movimentos e atitudes do homem, procura depreender os sentimentos e intenções que o movem para, ao final do conto, concluir, dizendo para si: "Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos... talvez seja uma das mercês de Deus que er lässt sich nicht lesen - ele não se deixa ler" (Poe, 1999). Há certos segredos e mistérios que não se deixam revelar.

Penso que o modelo do flanêur, este homem que procura por experiência em certa medida pura, inútil, em estado bruto, fruto do olhar ingênuo, aponta para essa qualidade de curiosidade passiva de quem acolhe tudo o que se apresenta - em si e no outro - como produto da imaginação, fantasias, sonhos, pensamentos, alucinações...

Corresponde, como atitude mental, às palavras que o poeta John Keats usou em carta a seus irmãos para falar de capacidade negativa, em trecho que Bion escolheu para epígrafe do Capítulo 13 de Atenção e interpretação (1970/2007). Escreveu ele: "Capacidade negativa é a capacidade de permanecer em meio a incertezas, mistérios e dúvidas, sem ter de alcançar nenhum fato e razão...". Keats prossegue: "O único meio de fortalecer o próprio intelecto é não decidir sobre coisa alguma - deixar a mente ser uma via para todos os pensamentos, não uma facção selecionada".4

Para terminar, algumas palavras do que entendo pelos veios de ouro da formação. Não sei dizer mais do que está contido nos elementos já consagrados como fundamentais: a análise do analista, as supervisões, os seminários, o ambiente institucional. Mas penso que, independentemente de teorias freudianas, kleinianas, bionianas, nada disso terá valor se não estiver imerso e permeado por nossa curiosidade e interesse, nossa capacidade de nos espantarmos frente ao que surge a cada momento e nossa capacidade de fazer perguntas.

 

Referências

Bion, W. R. (1963). Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bion, W. R. (2007). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970)        [ Links ]

Bion, W. R. (2017). Seminários na clínica Tavistock. São Paulo: Blucher.         [ Links ]

Bondía, J. L. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, 19, 20-28.         [ Links ]

Freud, S. (1976a). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (Vol. 23, p. 261). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1976b). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (Vol. 2, pp. 39-319). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1893-1895)        [ Links ]

Freud, S. (2016a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud (Vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (2016b). O eu e o id. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud. (Vol. 19, pp. 23-83). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Freud, S. (2016c). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas de Sigmund Freud. (Vol. 21, pp. 81-71). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Frochtengarten, J. (2016). O conhecido, o desconhecido e o incognoscível. Caliban - Revista Latino-Americana de Psicanálise,14(2),22-29.         [ Links ]

Poe, E. A. (1999). Os melhores contos de Edgar Allan (O. Mendes e M. Amado, Trads., 3ª edição). São Paulo: Globo.         [ Links ]

Szymborska, W. (2007). O poeta e o mundo. Revista Piauí, 8. https://piaui.folha.uol.com.br/edicao/8/. (Discurso proferido em 1996)        [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/2/2019
Aceito em: 20/3/2019

 

 

1 Aula inaugural do Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). realizada em 16/2/2019.
2 Criadora da Teoria da Radioatividade, professora da Universidade de Paris e a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel (nota minha).
3 Refiro-me à grade construída por ele e desenvolvida em Elementos de psicanálise (1963)
4 "Cartas de John Keats", Cambridge: Harvard University Press, 1958 e citado, em tradução livre minha, por James Grotstein em "Wilfred R. Bion: o homem, o psicanalista, o místico. Uma perspectiva de sua vida e trabalho" e publicado em "Do I dare disturb the Universe?", Maresfield Reprints, 1983.

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