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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

CONVERSANDO E ESCREVENDO - ENCONTRO DO JORNAL DE PSICANÁLISE

 

Esporte sem atividade física é esporte?1

 

Is sports without physical activity a sport?

 

¿El deporte sin actividad física es deporte?

 

Le sport sans activité physique est-il un sport?

 

 

Pedro Colli Badino de Souza Leite

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes" da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Representante da Associação dos Membros Filiados (AMF) na Comissão de Ensino da SBPSP entre 2017 e 2018. São Paulo. pedrocolli@gmail.com

 

 


RESUMO

o artigo explora a distância entre método e técnica em psicanálise e em outros campos da cultura. O material clínico do trabalho com um paciente lança a discussão para dentro dos esportes eletrônicos, fenômeno contemporâneo crescente. O debate sobre tal hiato segue nos terrenos da psicanálise e da poética, com ajuda da obra de Fabio Herrmann e Manuel Bandeira. Por fim, a presença da psicanálise na formação psiquiátrica conclui o percurso do texto. O autor tem a expectativa de que tais ideias possam contribuir diretamente na clínica e na formação psicanalíticas.

Palavras-chave: psicanálise, método, técnica, esporte eletrônico, poética


ABSTRACT

the article explores the distance in between method and technique within psychoanalysis and other fields of culture. Clinical data from work with a patient launches the discussion into electronic sports, a growing contemporary phenomenon. The debate on this hiatus follows in the fields of psychoanalysis and poetry, with assistance of Fabio Herrmann and Manuel Bandeira`s work. Finally, the presence of psychoanalysis in psychiatric formation concludes the course of the text. The author hopes that such ideas can directly contribute with clinical work and psychoanalytic formation.

Keywords: psychoanalysis, method, technique, electronic sport, poetics


RESUMEN

lo artículo explora la distancia entre método y técnica en psicoanálisis y en otros campos de la cultura. El material clínico del trabajo con un paciente lanza la discusión dentro de los deportes electrónicos, fenómeno contemporáneo creciente. El debate sobre tal hiato sigue en los terrenos del psicoanálisis y de la poética, con ayuda de la obra de Fabio Herrmann y Manuel Bandeira. Por último, la presencia del psicoanálisis en la formación psiquiátrica concluye el recorrido del texto. El autor tiene la expectativa de que tales ideas puedan contribuir directamente a la clínica y a la formación psicoanalítica.

Palabras clave: psicoanálisis, método, técnica, deporte electrónico, poética


RÉSUMÉ

cet article explore la distance qui sépare méthode et technique en psychanalyse et dans d'autres domaines de la culture. Le matériel clinique issu du travail avec un patient lance la discussion sur le sport électronique, un phénomène contemporain en pleine croissance. Le débat sur cette interruption suit dans les domaines de la psychanalyse et de la poésie, avec l'aide des travaux de Fabio Herrmann et Manuel Bandeira. Enfin, la présence de la psychanalyse dans la formation psychiatrique achève le déroulement du texte. L'auteur espère que de telles idées pourront directement contribuer à la travail clinique et formation psychanalytique.

Mots clés: psychanalyse, méthode, technique, sport électronique, poétique


 

 

1.

Como é habitual em nosso ofício, vou partir da clínica para poder desenvolver algumas ideias.

Rafael procurou análise por constatar que se boicotava a todo instante e que estava completamente paralisado em sua vida. Filho de pais que sempre hipervalorizaram o estudo formal, estava sendo pressionado por eles e por si a tomar o rumo universitário. Segundo ele, tal pressão revelava ainda um princípio rígido que conheceu logo nos primeiros momentos da adolescência: viver é fazer faculdade e depois trabalhar - sem nenhuma variação que possa ser considerada legítima. No entanto, Rafael já havia abandonado três cursos superiores e, em sua quarta tentativa, a mesma repetição se manifestava: faltava-lhe ânimo para sair da cama e ir até as aulas, não conseguia progredir nas matérias e, em meio a inúmeras recuperações e dependências, desistiu do curso mais uma vez - logo depois das entrevistas iniciais. Olhando com mais cuidado, não era apenas o ânimo que lhe faltava. No fundo, Rafael não conseguia ver sentido no caminho que tentava trilhar pela quarta vez. Sob associação livre, com a voz vacilante e tateando o que dizer em seguida, ele foi descobrindo que aquele projeto não lhe pertencia. Mas então o que fazer com sua vida? O que tinha sentido para esse paciente?

Rafael gosta de jogos eletrônicos - desde muito cedo ele usa grande parte do seu tempo para jogar videogame, computador ou fliperama. E também desde muito cedo, seus pais olharam com desconfiança para esse seu gosto. Sempre enxergaram isso como uma fuga, como um perigoso desvio do bom caminho a se tomar, do único caminho a se tomar: o estudo formal, a escola. Ressentido, ele tem muita raiva dos pais por isso, pois nunca puderam reconhecer a legitimidade do amor que ele sempre teve pelos jogos. Há algum tempo, nas sessões, ele tem se arriscado a dizer em voz alta qual é seu verdadeiro sonho: tornar-se um atleta eletrônico. Sua modalidade de escolha é um jogo de fliperama chamado Pump it Up, ou apenas Pump, para os íntimos.Trata-se de uma máquina na qual se deve dançar conforme o ritmo e a melodia de uma música por meio de bo- tões que ficam no chão. Enquanto toca a música, o jogador deve pisar nesses botões de acordo com a sequência de passos que é proposta pela máquina a cada instante da música. Há um brilho em seus olhos quando ele me fala qualquer coisa a respeito de seu querido Pump.

Conforme meu paciente diz com mais propriedade sobre aquilo que o desperta, começo a perceber uma mudança no registro contratransferencial. Havia notado que desde as entrevistas eu era tomado de um certo compadecimento por ele, mas quando ouvi sobre sua paixão, sobre sua ideia de ser um atleta virtual, passei a pensar que aquilo nunca iria para a frente. Em primeiro lugar me peguei julgando que achava um pouco exagerado o uso do termo atleta para um jogo de fliperama. Além disso, muitas vezes me ocorria a ideia de que seus pais estavam certos, de que ele estava vagabundeando, tentando escapar da faculdade e de trabalhar. Em certa sessão, cometi um lapso, perguntei se naquele dia ele havia ido brincar no Pump. Ele me flechou com seu olhar e disse que, para ele, aquilo não era uma brincadeira. Assim, uma vez revelada minha identificação com tal objeto, eu pude assumir uma nova posição de escuta, e uma série de afetos raivosos começaram a eclodir em transferência: que merda! Nunca ninguém botou fé em mim! A análise se tornou dura, pesada, o tempo que antes fluía com facilidade agora se arrastava para passar ao longo de uma sessão. Um dia, como uma fresta nesse clima fechado, Rafael me dirá que já há alguns meses está conseguindo acordar cedo e pôr em prática sua rotina de trabalho.Desde o início da análise ele se queixava de não conseguir acordar cedo, de procrastinar tudo (menos a vinda às sessões), de sentir-se preso à sua cama.

Ele trabalha duro, são cerca de catorze horas por dia. Pela manhã, acorda, toma seu café e começa a estudar e a jogar pôquer em um site de apostas. Ele me explica que esse jogo de cartas não é um simples jogo de azar - há uma técnica a ser estudada, praticada e aprimorada. Para minha surpresa, ele começa a ganhar algum dinheiro de forma regular, e em breve planeja não precisar mais do suporte financeiro de seus pais. Eu me pergunto se essa surpresa que sinto não seria mais uma vez a dificuldade para poder me desidentificar do objeto que não bota fé nele. Depois do almoço ele sai com seu equipamento para treinar o Pump durante toda a tarde em shoppings e fliperamas pela cidade. Chega em casa, toma banho, janta e logo abre a sua transmissão online. Nela, milhares de pessoas o acompanham enquanto ele joga e comenta ao vivo o que está se passando na tela. Rafael é um ótimo comunicador, e pessoas do seu meio já lhe disseram inúmeras vezes que ele tem potencial não só como atleta, mas também como youtuber de games. Nos finais de semana, sempre há eventos, competições ou congressos. É uma vida cheia para um rapaz de vinte e poucos anos. Nos últimos tempos, um patrocinador o procurou. Está sondando sua capacidade, para dar-lhe apoio financeiro contínuo tanto em sua prática de atleta como em seu canal de transmissão, no qual sua audiência vem crescendo dia após dia. Nesse ponto, seu sintoma retorna, boicotes intensos aos seus ganhos, novos jogos identificatórios, reação terapêutica negativa. Nada é fácil em análise, não? Outras camadas de sentido vão se constituindo, mas até aqui já tenho material que considero suficiente. E ao menos o brilho nos seus olhos persiste.

O caso de Rafael abre uma questão que me intriga bastante: o surgimento e o desenvolvimento dos esportes eletrônicos bem à nossa frente, um fenômeno contemporâneo. Eles também são chamados de e-sports e atualmente movimentam uma indústria bilionária. Há algumas semanas eu estava zapeando pela televisão até passar por um canal esportivo que transmitia imagens de um jogo de computador. Lembrando a cena, percebo que ainda está comigo o impacto de ver um jogo eletrônico ser transmitido em um canal de esportes na televisão pela primeira vez. Logo descobri que se tratava do campeonato mundial de League of Legends (também chamando carinhosamente pelos seus fãs de LóL), que se passava na Coreia do Sul.Lembrei-me imediatamente de meu paciente e assisti a algumas partidas. Descobri que, atualmente, este é o jogo mais popular de todos os e-sports, e que esse campeonato era o maior evento já realizado nessa área. Transmitido também pela internet, cada confronto teve a média de 46,4 milhões de espectadores, e a final do campeonato foi assistida por mais de 200 milhões de pessoas. São números que ultrapassam os maiores eventos esportivos tradicionais no mundo todo.

Para além do impacto populacional e econômico, o que me interessa nesse fenômeno contemporâneo é a possibilidade de relançar uma antiga questão: se tomamos em nossas mãos aquilo que entendemos como esporte e, pouco a pouco, começarmos a despi-lo de cada um de seus aspectos, até que ponto o que vai restando ainda pode ser chamando de esporte? A questão que nos divide quando confrontados com os esportes eletrônicos é a seguinte: o esforço físico é parte inerente e fundamental da prática dos esportes? O esforço físico é parte intrínseca e indissociável do método esportivo? Ou ele é um elemento da técnica, por meio do qual nosso olhar ficou viciado, por sempre observarmos os esportes enquanto sua prática coincidia com o esforço físico? Rafael é um atleta? No final de 2017, o Comitê Olímpico Internacional se posicionou de forma inédita. Após estudar a questão com detalhe, a instituição declarou de forma oficial: "Os e-sports podem ser considerados uma atividade esportiva, e os jogadores envolvidos se preparam e treinam com uma intensidade que pode ser comparável a atletas de esportes tradicionais".

No fundo, trata-se de uma mesma questão que de tempos em tempos é relançada (ou ao menos deveria sê-lo) por diversas áreas da cultura humana: a arte, a ciência e, talvez, também a psicanálise. Estamos diante da distinção entre técnica e método.

 

2.

O método de trabalho de um psicanalista foi em parte criado e em parte descoberto por Freud e seus pacientes. Há mais de cento e vinte anos, esse método vem sendo aplicado à clínica e à cultura. O resultado é um corpo de conhecimento que ao longo das gerações vai sendo armazenado e transmitido nas formas escrita e oral. Na minha opinião, uma das características centrais da psicanálise de hoje é justamente tal acúmulo. Dessa maneira, duas perguntas se apresentam: um paciente que busca um analista hoje tem melhores chances de encontrar uma experiência analítica do que há cem anos? Um indivíduo que busca formação nos dias de hoje encontra-se necessariamente em melhores condições do que nossos antepassados, os pioneiros?

Um dos desdobramentos do acúmulo de conhecimento psicanalítico ao longo de todos esses anos é a adoção, por parte das instituições psicanalíticas, daquilo que poderíamos chamar de técnica-padrão. Esse termo descreve um conjunto de procedimentos práticos que já se provou inúmeras vezes útil para favorecer o processo psicanalítico. Em outras palavras, a técnica-padrão inclui a série de injunções solicitadas pelos institutos de formação aos seus membros filiados. No nosso caso: análise na frequência de quatro vezes por semana durante cinco anos; prática clínica em alta frequência supervisionada regularmente e a escrita dos relatórios; seminários clínicos e teóricos - tudo isso, preferencialmente, ocorrendo de forma concomitante. Mas aqui existem desafios da clínica e da formação de nossos tempos.

Há não muito tempo, recebi para entrevista uma paciente que buscava, com todas as letras: "quero fazer análise quatro vezes por semana". A mim, um pedido incomum, ao menos em comparação com a minha prática, em que o aumento de frequência costuma ser fruto de uma trabalhosa conquista da dupla. Além disso, algo no modo de ela dizer pareceu dar mais destaque para a frequência do que para a sua queixa - certos sintomas de ansiedade que amarravam parte de sua vida. Pelo que consigo lembrar, tive uma reação ambígua: estranhamento e satisfação. Satisfação por receber uma nova paciente e poder praticar psicanálise segundo a técnica-padrão, e estranhamento atrelado, equivocadamente, ao fato de ela não poder me pagar muito.

Então começamos, e não demorou muito para que o estranhamento fosse tomando uma forma mais nítida para mim: tratava-se de um clima de artificialidade. Enquanto a escutava, frequentemente eu pensava nessas novelas mexicanas, em que os atores exageram ou atrofiam seu papel, fracassando em verossimilhança. O resultado era a criação de um simulacro de realidade. Era isso o que se passava entre nós durante as sessões, cada um uma caricatura de si. Ela chegava, deitava-se e associava, mas aquilo não era uma análise. Era um simulacro de análise, uma análise em falso self - para quem prefere o jargão. Em seguida, o lento e doloroso manejo e a interpretação da situação transferencial levaram à interrupção das sessões. Um dia, quando não estava mais tão frustrado com tudo isso, a paciente me mandou um novo WhatsApp. Chegou, sentou, falou que seu sintoma havia retornado; ela queria retomar o trabalho, e eu não me lembrei de nenhuma novela mexicana. Ela disse que poderia me pagar o mesmo, mas queria vir uma vez por semana e agora não queria mais se deitar. Aceitei, e sua análise continua até o momento, numa frequência variável. Ainda há novela, mas agora é das boas, daquelas que envolvem e das quais não se quer perder o capítulo.

Entendo este caso como muito relevante para se poder pensar sobre a técnica-padrão, uma espécie de herdeira do conhecimento psicanalítico acumulado até aqui. O divã, a alta frequência e a intenção de neutralidade facilitam o processo psicanalítico? Minha análise pessoal e minha clínica me levam a responder que sim, e que isso ocorre em muitos momentos e em muitos casos. Mas tais elementos padronizados não garantem que o processo analítico ocorra em todas as situações que se apresentam. No caso citado, não apenas os elementos tradicionais se mostraram acessórios, mas também penso que eles estavam obstruindo a análise.Em outras palavras, quando ela retorna, penso que trabalhar com essa paciente na técnica-padrão não seria apenas difícil, seria impossível. Se eu recusasse sua proposta de diminuir a frequência e de fazer sessões sentada, provavelmente nada acontecesse.

Assim como nos e-sports, a questão se repete: se tomarmos a psicanálise em nossas mãos e passarmos a despi-la pouco a pouco, até quando aquilo que resta ainda poderá ser caracterizado como nosso campo de conhecimento teórico-clínico? Em nossa própria instituição essa questão já foi relançada, em especial por Fabio Herrmann. Encontramos essa discussão em seu artigo "Clínica extensa" (2003). Ele nos explica que não devemos entender a ideia de extensão apenas no plano geográfico, ou seja, levar a psicanálise para se encontrar com novas modalidades clínicas ou com outras áreas do conhecimento humano. Em primeiro lugar e, sobretudo, clínica extensa é a medida em que o método analítico ultrapassa a sua técnica, incluindo a técnica-padrão. Ele nos conta, por exemplo, como precisou inventar uma técnica sob medida para poder atender uma paciente que odiava o método psicanalítico, ele a atendia escondida:

Lembro-me, por exemplo, de uma paciente que me fez ver o quanto necessitava de um analista, ao mesmo tempo que odiava a ideia de estar em análise. Foi um trabalho produtivo, muito longo, aliás, em que foi preciso recriar o instrumento concreto, sem fugir ao método. Ao cabo de muitos anos de tratamento, perdi a cabeça certo dia e exigi meus direitos constitucionais: você sabe muito bem que o que estamos fazendo é análise! Claro que sei, Fabio, mas se ficar falando, estraga; estou fazendo análise escondida. Atônito, perguntei: escondida de quem? Ela abriu um sorriso cândido e angelical: ora, escondida de mim.

(Herrmann, 2003, p. 25).

Assim, uma vez que houve Fabio Herrmann e seu esforço incessante em explicitar nosso método de romper os campos, estamos à vontade para debater a experimentação técnica que praticamos no dia a dia? Como exemplo, tomemos os atendimentos de baixa frequência. Por que ele está tão presente em nossa clínica, em nossas conversas de corredor ou em frente à mesa de bolachinhas, ao passo que dificilmente se trata desse tema em artigos ou eventos públicos? Quando será possível debater abertamente entre as semelhanças e as diferenças das psicanálises de alta frequência e as psicanálises de baixa frequência?

 

3.

A poesia já esteve nesse mesmo lugar, tentando responder a si sobre aquela mesma pergunta: havendo variação formal, até que ponto ainda reconheço algo como poesia? Saturado do tradicionalismo parnasiano, Manuel Bandeira responde a essa questão em versos livres, ao ler sua Poética na semana de arte moderna de 1922:

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem-comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário

o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja

fora de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante

exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes

maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

(Bandeira, 2015, pp. 105-106)

E cada um fica livre para trocar o termo lirismo pelo que preferir.

 

4.

Lançando o olhar para trás, considero que minha formação teve início com a leitura de A interpretação dos sonhos. Eu estava em um ano de transição, entre o final da faculdade de medicina e o início da residência em psiquiatria. O contato com a obra freudiana produziu ou revelou a minha demanda por análise, e tomo o início desta como o segundo passo nessa trajetória. Em seguida, uma experiência decisiva - o início dos atendimentos clínicos sob supervisão de orientação psicanalítica já no contexto da formação psiquiátrica. Entrei no último ano de residência já tomado pela psicanálise, precisava fazer isso, e foi naquele ano em que me inscrevi no processo seletivo de nosso instituto. Após o final da residência, fui convidado a fazer parte do grupo de psicanalistas que trabalha dentro do Hospital das Clínicas, coordenado pelo meu primeiro supervisor, e hoje considero esse trabalho fundamental na continuidade de minha formação.

Faço este breve memorial para localizar e me deter no trabalho que nosso grupo vem realizando junto aos alunos da Faculdade de Medicina da USP, e junto aos residentes em formação para se tornarem psiquiatras. Freud, em seu "Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades?" (1919), defende o ponto de vista de que nosso campo é independente da universidade, mas que o estudante de medicina, o médico que se prepara para ser psiquiatra e o estudante de diversos outros cursos poderiam se beneficiar do conhecimento sobre o inconsciente. Cem anos mais tarde, de fato a psicanálise está presente na universidade.

Na faculdade em questão, os estudantes de medicina têm acesso ao ensino da psicanálise com analistas de nosso grupo por três caminhos. Nos primeiros anos, eles podem escolher uma matéria optativa chamada "Introdução ao pensamento psicanalítico". Depois, durante a graduação, eles podem participar de uma atividade de extensão acadêmica chamada "Liga de psicanálise". No quinto ano, durante o estágio de psiquiatria dentro do internato, eles têm alguns encontros sobre o tema "Psicoterapia", nos quais o vértice psicanalítico também é brevemente exposto. De acordo com nossa experiência, muitas vezes essas atividades representam o primeiro contato de um estudante universitário com a psicanálise. O trabalho não é simples, pois tentamos evitar a todo custo um ensino intelectualizado, e isso desperta inúmeras resistências. Mesmo assim (ou justamente por isso), percebemos que tais atividades favorecem o surgimento de um outro olhar sobre a relação médico-paciente e também sobre o ser humano de maneira mais ampla. Além disso, muitas vezes, os cursos terminam com pedidos de indicação de análise, e observamos que alguns médicos acabam por buscar algum tipo de formação psicoterápica, incluindo a psicanalítica. Depois da formatura, reencontraremos aqueles que optarem pela formação psiquiátrica.

Até aqui, estamos falando de ensino, de contato professor-aluno, mas não tanto da clínica analítica. Para falar sobre o estágio dos residentes em psiquiatria, considero oportuno colocar outra pergunta ao lado daquela de Freud. Em relação a essa atividade, nosso grupo de trabalho vem se perguntando: devemos experimentar a psicanálise nas universidades?

Os médicos aprovados na residência de psiquiatria do Hospital das Clínicas têm um estágio obrigatório de três anos no Serviço de Psicoterapia. Esse estágio acontece nas terças-feiras pela manhã e compreende duas partes: supervisão em grupo de casos atendidos durante a semana; e seminários teóricos que introduzem o pensamento psicanalítico e também o de outras abordagens psicoterápicas.

A segunda parte, os seminários, se assemelham às atividades já descritas, com os alunos da faculdade. No entanto, a discussão ganha corpo, uma vez que cada residente já passa por uma carga de atendimentos muito maior do que aquela do estudante de medicina. Eles parecem ter mais a dizer, com base nas questões que surgem neste início de sua vida clínica. Além disso, toda a formação médica se dá mais apoiada no sistema de aulas do que no de seminários. Então, há um desconforto a mais, uma vez que não nos colocamos no lugar de professores, mas de coordenadores de seminários que visam à apropriação do conhecimento psicanalítico de uma outra forma. Eles chegam esperando por aulas objetivas, mas nós propomos uma outra abordagem, o que muitas vezes pode produzir mal-estar e defesas que são bem conhecidas de nosso grupo. Uma vez que os residentes começam a se expor à clínica, ao campo transferencial e suas dificuldades, uma das reações comuns é a tentativa de construir uma armadura de conhecimentos objetivos que os proteja do desconhecido dos atendimentos. Nos seminários, um de nossos maiores desafios é justamente deslocar o lugar da teoria no fazer psicoterápico e psicanalítico. Usá-la como inspiração, e não como fórmula aplicável.

Mas acredito que a grande questão com os médicos residentes esteja na primeira parte, ou seja, no começo da construção de um olhar psicanalítico por meio da clínica. Em minha opinião, essa prática é uma grande área de pesquisa que nos propõe diversas questões éticas, técnicas e teóricas. Por que existe um estágio no qual médicos que desejam ser psiquiatras recebem supervisão orientada psicanaliticamente? Quais são seus objetivos? Quanto cada residente escolhe experimentar a clínica/supervisão e quanto o faz por obrigação curricular? Quais as implicações éticas de supervisionar atendimentos quando o médico nunca passou por nenhum tipo de análise pessoal? A atividade de supervisão pode favorecer o olhar psicanalítico? A mesma atividade pode obstruí-lo? Nosso grupo vem se reunindo semanalmente para esclarecer essas questões. Penso que alguns exemplos podem dar uma dimensão do que temos vivido junto aos residentes e seus pacientes.

1. Um residente que nunca passou por análise pessoal começa a frequentar um dos grupos de supervisão que tem como coordenadora uma psicanalista. Ele pede para não atender "logo de cara", pois, como não conhece nada dessa área, gostaria de assistir a supervisões de outros casos antes de iniciar sua prática. A analista gentilmente concorda. Geralmente calado, ele passa a ficar progressivamente interessado nas discussões, vai se tornando mais ativo e participativo, até o momento em que pede para começar a atender. O atendimento se inicia, e não demora muito até que a supervisora note sua tendência a sentir pena de sua paciente e a usar o lugar transferencial para sugestioná-la sobre a melhora de certos sintomas. Quando ela fica menos angustiada, ele parece tolerá-la melhor. Com muita delicadeza, a supervisora vai apontando para tal dinâmica, o que leva o médico a se tornar cada vez mais angustiado e introspectivo. Em algumas semanas ele falta a encontros sucessivos - algo que nunca havia ocorrido. Em seguida, pede para falar com sua supervisora em particular. Ele pede uma indicação de analista, pois acredita que suas dificuldades clínicas estejam relacionadas a certos sintomas e tendências de sua personalidade. Na semana seguinte ele falta mais uma vez e escreve para sua supervisora para se justificar. Faltou pois havia agendado uma sessão com sua nova analista no mesmo horário do grupo de supervisão. Após o início da análise, a supervisora percebe um nítido e progressivo desabrochar de certas capacidades analíticas.

2. Um residente chega até a primeira reunião daquele que será o seu grupo de supervisão e, de início, já avisa ao seu coordenador: eu odeio psicanálise, por favor, não me obrigue a atender um paciente pois acho que vou prejudicá-lo. O coordenador aceita seu ódio e seu pedido, decide não obrigá-lo a atender. Em seguida, questiona o motivo, mas ele não se sente à vontade para falar em meio ao grupo. Depois da reunião, em conversa privada, ambos entram num acordo: o rapaz frequentará o grupo de supervisão e, se possível, explicitará suas discordâncias durante as discussões dos casos. Ao longo do ano, isso acontece, e os dois conseguem manter um bom convívio, apesar das diferenças. O rapaz desenvolve alguma ambivalência pelo seu supervisor. Ele o critica em muitos pontos de seus comentários, mas sempre com respeito. O residente faz seu supervisor, de fato, rever alguns preconceitos e distorções que não percebia antes. O residente, em suas férias, viaja até Londres, entra no museu de Freud e compra presentes para seu supervisor. Ao final do ano, este pede que aquele escreva um trabalho criticando todos os pontos pelos quais discorda da psicanálise, o que faz surgir um trabalho teórico interessante e proveitoso para discussão. Ao final do ano, abre-se uma possibilidade, e o residente decide fazer supervisão apenas nos grupos de análise do comportamento, quando se despede de seu grupo.

3. Uma residente chega ao seu grupo de supervisão. Ela nunca havia feito análise e pede indicações já nos primeiros dias da residência. Sem muitas reservas ou constrangimentos, quer começar logo a atender, está ansiosa por isso desde que se decidiu por fazer psiquiatria. Os atendimentos começam, e com eles a maré transferencial. Sua supervisora lhe aponta os momentos em que ela está se defendendo, ou então atuando algum aspecto de sua mente. Ela parece muito permeável a tais comentários e se apropria deles rapidamente. Ela se alça ao lugar analítico em diversos momentos e consegue instalar a situação analítica. Seu paciente sonha com ela, lhe traz presentes, lhe escreve cartas, está transferido. Ela por sua vez, não toma medidas suficientes para obstruir o processo. Curiosamente, ela vai às supervisões sem saber disso, pois não conhece bem ao certo o que está se passando. Ela e seu paciente trabalham analiticamente, mas a única pessoa que parece saber disso é sua supervisora. O conjunto da situação lembra um tanto as cartas de Freud a Fliess.

Se os alunos e futuros psiquiatras podem se beneficiar dessas atividades, a psicanálise, em contrapartida, ganha uma oportunidade preciosa, porque a maioria dessas pessoas não tem acesso direto ao acúmulo de conhecimento psicanalítico que nós temos - elas não conhecem a técnica-padrão. Nós, psicanalistas, em contrapartida, nunca mais leremos A interpretação dos sonhos pela primeira vez. Justamente por isso, esses alunos e residentes nos auxiliam a revisitar a diferença entre método e técnica todos os dias. Quando não atrapalhamos, eles costumam fazê-lo com uma espontaneidade que tendemos a perder pelo conforto do hábito.

 

Referências

Bandeira, M. (2015). Poética. In M Bandeira, Antologia poética (pp. 105-106). São Paulo: Global.         [ Links ]

Comitê Olímpico Internacional (2017). https://sportv.globo.com/site/e-sportv/noticia/coi-abreportas-para-reconhecer-os-e-sports-como-um-esporte.ghtml        [ Links ]

Freud, S. (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887/1904 (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades? In S. Freud, Obras completas (P. C. L. Souza, Trad., Vol. 14, pp. 377-381). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Freud, S. (2016). A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1899)        [ Links ]

Herrmann, F. (2003). Clínica extensa. In F. Herrmann, A psicanálise e a clínica extensa, III Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos por Escrito (pp. 17-31). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 4/12/2018
Aceito em: 8/4/2019

 

 

1 Trabalho que contribuiu no Encontro do Jornal de Psicanálise em dez/2018, "Psicanálise hoje: clínica e formação".

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